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Capítulo 4 Análise de dados coletados

4.1 Constituição Federal

4.1.1 Constituição – um gênero discursivo

A compreensão de que a Constituição é um gênero discursivo fundamenta-se na concepção de Bakhtin (2003), para quem um ‘conteúdo temático’, um estilo específico e uma ‘estrutura composicional’ própria caracterizam um gênero. Acrescente-se a isso o entendimento desse mesmo autor quanto a uma determinada estabilidade e o papel desempenhado em atividades sociais específicas.

Parafraseando Magalhães (2004)156, gêneros discursivos são padrões sequenciais de uso da linguagem que determinam os textos falados, escritos, visuais ou multimodais, conferindo-lhes uma forma particular e convenções discursivas específicas. Outra consideração que colabora com a compreensão de gêneros é de a Charles Bazerman (2005, p.102):

...os gêneros moldam as intenções, os motivos, as expectativas, a atenção, a percepção, o afeto e o quadro interpretativo. O gênero traz para o momento local as ideias, os conhecimentos, as instituições e as estruturas mais geralmente disponíveis que reconhecemos como centrais à sua atividade.

Fairclough (2003) sugere uma série de características que devem ser observadas para o estudo de gêneros. Antes de focalizar esse aspecto, é importante destacar que ele desenvolve uma teorização para análise de textos na qual sugere uma relação dialética entre três maneiras de relacionar o discurso a outros elementos das práticas sociais157.

A primeira maneira refere-se aos modos de agir e interagir comunicativamente em sociedade – são os gêneros. Concretizados em textos e tendo sua realização em eventos sociais, os gêneros estão relacionados a determinadas práticas sociais e também são influenciados por estruturas sociais158. A ação de agentes sociais, do ponto de vista comunicativo, ocorre por meio dos diversos gêneros existentes no meio social. Ora, se a ação concreta dos gêneros acontece por meio dos textos e todo texto é resultado da interconexão de diversos fragmentos (implícitos ou explícitos) de outros textos, considero que a intertextualidade pode ser compreendida como pertencente à faceta que trata de ação e interação.

A segunda faceta enfoca maneiras particulares de construir / representar alguma

156

“Os gêneros discursivos determinam os textos falados, escritos, ou visuais, segundo um padrão sequencial e linguístico (semiótico), conferindo-lhes uma forma particular e convenções discursivas específicas”.

157

Ver o Capítulo 1. 158

Textos do gênero publicidade, por exemplo, em uma sociedade capitalista (contexto que influencia a

estrutura social), estão situados em práticas sociais de comercialização de bens e serviços e podem aparecer em eventos sociais concretos como nas veiculações em televisão que objetivam alcançar um público consumidor. A

aspecto do mundo (social, psicológico, físico), ou seja, discursos. Esses podem ser depreendidos nas análises textuais e nomeados, por exemplo, na identificação do que seria um ‘discurso da globalização’. É preciso destacar que tal concepção vincula-se a uma perspectiva mais complexa e abstrata, a qual envolve as práticas sociais e compreende o discurso (no singular) como um dos momentos dessas práticas159, que envolvem também o mundo material, relações sociais, as pessoas com suas atitudes e crenças. Essa perspectiva de que ‘nem tudo é discurso’ e a compreensão dialética de sua existência, por relacionar diferentes momentos das práticas sociais (Chouliaraki e Fairclough, 1999), embasam teoricamente a relação entre linguagem e sociedade.

A terceira maneira relaciona-se a formas de ser, considerando os aspectos comunicativos / discursivos – o que Fairclough (2003) denomina ‘estilos’. O cerne dessa faceta está na análise dos processos de identificação (constituição de identidades) nos textos.

Essas três facetas da abordagem dialético-relacional (Fairclough 2003, 2009) são consideradas indissociáveis. A separação / distinção ocorre por razões analíticas. Neste trabalho, o enfoque em gênero e discursos também tem esse motivo.

QUADRO 9: Constituição – características e estrutura

Para analisar a Constituição160 como um gênero, este estudo seguirá principalmente o que sugere Fairclough (2003). Observar as características abstratas e a estrutura textual pode ser uma maneira de iniciar as análises. O Quadro 9 apresenta uma síntese comentada a seguir.

159

O aspecto discursivo/semiótico da ‘ordem social’ – a ‘ordem do discurso’ (Fairclough, 2003, p. 206). 160

Considerando que o intuito, nesse momento, é ter uma perspectiva geral do gênero, não será apresentada uma descrição detalhada das possibilidades textuais que o gênero ‘Constituição’ permite em diferentes países, por

Constituição características abstratas lei ordenamento jurídico direitos deveres garantias estrutura textual títulos artigos incisos alíneas parágrafos

A ‘Lei Maior’, também conhecida como ‘Carta Magna’, figura em diversos países no ápice hierárquico161 do conjunto de regras e princípios que regem direitos e garantias fundamentais, tratam da organização do Estado e dos Poderes e também da ordem econômica e social. Assim como outras leis, organiza-se textualmente em divisões e subdivisões com títulos, artigos, incisos, alíneas e parágrafos.

Outras especificidades do gênero podem ser observadas no Quadro 10:

QUADRO 10: Constituição – escala, estabilização, homogeneização

Cada Constituição restringe sua legitimidade ao país que pertence, independentemente de prever normas para relações internacionais, pois adota a perspectiva de uma nação. Para ‘grau de estabilização’ e ‘homogeneização’ estão identificados níveis que poderiam variar entre baixo, médio e alto. A estabilização está sendo considerada com um grau alto por ser um gênero que não apresentou alterações de grande relevância nos últimos séculos162. Por haver diferenças de ‘forma’163 e ‘positivação’164, por exemplo, o nível de homogeneização do gênero Constituição está sendo descrito aqui como médio. Como as possibilidades de variação não são extensivas, não se aplicaria a compreensão de uma baixa homogeneização.

Na atualidade e com os recursos tecnológicos disponíveis, é crescente o número de gêneros discursivos que mesclam diferentes modalidades165, como a linguagem verbal, imagens, sons. No entanto, ainda é inegável o prestígio social da escrita e é nessa modalidade que os textos constitucionais se apresentam. O suporte pode até ser diferente: na Internet (versão digital) ou em papel (versão impressa), mas ambos utilizam a linguagem verbal.

Como todo gênero, a Constituição relaciona-se com outros gêneros166. Considerando sua supremacia em relação às demais leis do país (é o caso do Brasil, por exemplo), todos os

exemplo. Nem tampouco se pretende apresentar todas as possíveis formas de classificação. Com base, principalmente, no texto da Constituição brasileira de 1988 é que serão apontadas as principais observações, explicitando possíveis variações quando necessário.

161

É o caso de Constituição ‘rígida’, como a do Brasil. Na Inglaterra, por exemplo, onde a Constituição é ‘flexível’, uma lei não é superior a outra.

162

Essa análise refere-se a gênero. Os textos das Constituições podem sofrer modificações via Emendas ou alterar-se substancialmente em novas Constituições.

163

‘Sintética’ – concisa –, como nos Estados Unidos; ‘analíticas’ – expansivas –, como no Brasil. 164

‘Promulgada’ por representantes eleitos, a exemplo da Constituição de 1988 ou ‘outorgada’, que decorre de um sistema autoritário, como a Constituição de 1937.

165

Os trabalhos de Kress e van Leeuwen (1996 e 2001) desenvolvem uma teorização sobre multimodalidade. 166

Discussão sobre esse tema pode ser encontrada em Fairclough (2003, p.30 – 32).

Escala nacional

Grau de estabilização alto Homogeneização média

gêneros relacionados à lei fazem parte de uma ‘cadeia de gêneros’167 da qual a Constituição é parte. Devido à sua importância, ela estabelece relação com uma variedade de outros gêneros que podem pertencer ao campo da mídia ou mesmo da vida pessoal. Veja, no Quadro 11, alguns exemplos:

QUADRO 11: Constituição – cadeia de gêneros

Os gêneros discursivos ‘decreto’, ‘portaria’, ‘resolução’, ‘sentença judicial’, estão submetidos ao que determina a Constituição. Semelhantemente, uma ‘reportagem’, um ‘editorial’ e mesmo uma ‘conversa’ podem tratar de temas específicos do gênero em análise, assim como também estão vinculados a princípios constitucionais que devem ser seguidos.

Nessa perspectiva, é preciso ter clareza que, também como outros gêneros, a Constituição apoia-se em ‘relações sociais’. Uma conversa estabelece relações entre indivíduos; uma carta comercial é uma maneira discursiva de duas empresas se comunicarem; uma propaganda televisiva pode relacionar uma organização e telespectadores/as. A Constituição estabelece relações sociais em grau hierárquico elevado e com diferentes agentes sociais. Ela é a lei máxima do Estado e o regula; delimita e determina as possibilidades de ação de organizações e empresas; demarca os direitos e deveres de cidadãs e de cidadãos – é um forte instrumento de constituição identitária.