• Nenhum resultado encontrado

Interdiscurso na notícia da Folha de S.Paulo e a prática social

Capítulo 4 Análise de dados coletados

4.4 Notícia do jornal Folha de S.Paulo

4.4.5 Interdiscurso na notícia da Folha de S.Paulo e a prática social

Duas questões de linguagem precisam ser observadas de maneira direta. A primeira refere-se à diferença para a identidade dos indivíduos entre uma qualificação que os posicione de forma menos negativa ou mais negativa227 diante dos demais membros da sociedade, exemplo: ser ‘catador/a de materiais recicláveis’ versus ‘ser catador/a de lixo’. Além de homens, muitas mulheres e famílias inteiras trabalham com coleta e/ou estão passando pela terrível experiência de habitar nas ruas. Aqui está a segunda questão: o uso do masculino genérico em termos mais ou menos pejorativos, independente de receber qualificação por ‘materiais recicláveis’ ou ‘lixo’, é quase sempre um ‘catador’ ou ‘catadores’, da mesma maneira ‘morador’ e ‘moradores’. Um apagamento da figura da mulher, a qual aparece poucas vezes no uso linguístico, mas está muitas vezes nas ruas e com necessidades específicas, como no caso de gravidez ou lactação – a visibilidade do feminino nesse universo é outra demanda para escancarar essa problemática social.

Tratando-se de mídia, sabe-se que noticiar a agenda do presidente, ouvi-lo sobre algum tema social, político ou administrativo recente, relatar parte de suas falas em algum evento do qual tenha participado, são práticas quase que diárias dos veículos de comunicação de atuação nacional. O que atrai, em grande parte, o jornalismo é o interesse de leitores e leitoras sobre notícias do presidente da República, pois muitas vezes todo o país é afetado de maneira direta ou indireta pelas ações do ‘chefe’ do poder executivo nacional.

O que aconteceu com a notícia da Folha de S. Paulo guarda relação com isso. A visibilidade das pessoas da ‘notícia 2’ deve-se, em grande parte, à visibilidade de Lula (no

227

caso do texto em análise). Todavia, é preciso lembrar que se trata de um grupo menorizado, cuja notícia veio ‘em anexo’ de outra notícia avaliada como mais importante. Se fossem empresários, aconteceria o mesmo? E qual poderia ser a ordem: ‘presidente esteve com empresários’ ou ‘empresários estiveram com o presidente?

E quais discursos estão presentes no texto? Identifiquei alguns. O primeiro é o ‘discurso da moradia’. Em um país com déficit habitacional e com o grave problema social de pessoas em situação de rua, é esperado que esse discurso tenha visibilidade, mas nem sempre é assim. No texto da Folha de S. Paulo, quem aparece reivindicando habitação são aquelas pessoas que mais precisam dela e têm menos condição para possuí-la. Trabalhadores e trabalhadoras solicitam maior efetividade nas ações para disponibilização de crédito para quem faz coleta e quem tem vivido nas ruas.

Nas eleições de 2006, um ‘dossiê’ contra o PSDB (‘tucanos’) tomou conta do noticiário por vários dias. Foi, inclusive, tema de discussão no horário de propaganda eleitoral gratuita. Esse assunto desponta na notícia por meio de um ‘discurso político-eleitoral’. José Serra (PSDB), que seria um dos possíveis prejudicados com o dossiê, foi eleito governador de São Paulo. Quem disputou as eleições com ele foi Aloizio Mercadante (PT), acusado de estar envolvido na tentativa de compra do dossiê. O presidente é, então, convocado a dizer o que pensa sobre o indiciamento de um membro importante de seu partido. Uma nova ‘onda’ da notícia do dossiê iniciou-se por conta do indiciamento e quem ficou no topo da onda foi o senador. A palavra do presidente ganha então muito valor para tratar do tema e a notícia da ‘onda’ se sobrepõe sobre a ‘calmaria’ das notícias de problemas sociais.

Outra questão a se pensar é a ‘gratidão’. O “muito obrigado” destinado ao presidente é explicado na ‘notícia 2’ como sendo por causa da renovação de uma medida provisória e da ‘doação’ de 15 mil reais da Petrobrás para comprar uma máquina que colaboraria com os trabalhos do grupo. Inegavelmente, as ações são positivas, assim como é positivo, política e socialmente falando, um presidente se encontrar com indivíduos minorizados. A cautela diante dessas percepções deve permitir a constatação da responsabilidade do poder executivo diante desses cidadãos e dessas cidadãs, principalmente a responsabilidade de efetivar os direitos constitucionais. O avanço, que deixa para trás o encantamento de pequenos favores e a presença do presidente, ocorre nas reivindicações documentadas que apresentam as falhas que precisam ser corrigidas.

O ‘discurso da violência’ se sobressai de quatro maneiras: a violência das forças de discriminação que conduzem ao problema social; a violência do policiamento que às vezes usa a força (principalmente contra cidadãos minorizados e contra cidadãs minorizadas) para

manter determinada ‘ordem’; a violência da exploração de quem está na pobreza extrema feita por indivíduos que exercem a função de ‘intermediários’ e ‘atravessadores’; e a violência física que chega ao ponto de provocar a morte.

Destaco, por fim, o ‘discurso institucional’. A organização, o agrupamento, a criação de movimentos sociais dá forças e estruturas para ações que necessitam tramitar conforme o modus faciendi socioinstitucional. Dessa maneira, o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e o Movimento Nacional de Luta e de Defesa dos Direitos da População em Situação de Rua abrem espaço junto à Presidência da República, à mídia e por conseguinte a um maior número de brasileiros/as, para reivindicar seus direitos. No caso da notícia, não se trata de um protesto, nem de uma manifestação. É um documento com reivindicações, um documento institucional. A linguagem vai colaborando para o fortalecimento por meio do domínio e da utilização de ‘gêneros discursivos do poder’.