• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 4 Análise de dados coletados

4.1 Constituição Federal

4.1.2 Constituição – intertextos

Entender a Constituição como gênero colabora para as análises de um texto constitucional (ou mesmo uma parte desse texto). Outra compreensão importante para os propósitos deste trabalho é a de que um texto não se constitui de maneira isolada em um universo textual. Textos influenciam outros textos e são influenciados por outros textos, e as marcas dessa interrelação podem estar explícitas ou implícitas. A presença de elementos de um texto em outros também expressa uma relação dialógica entre vozes (autorias) e

167

Termo empregado por Fairclough (2003).

cadeia de gêneros decretos portarias resoluções sentenças judiciais reportagens editoriais conversas

demonstra a ligação entre enunciados nas práticas comunicativas (Bakhtin, 2003). O conceito de intertextualidade abarca essas compreensões.

É evidente que o texto constitucional brasileiro de 1988 tem elementos de diversos outros textos, sejam eles constitucionais ou não. As Constituições anteriores têm marcas inequívocas no texto de 1988, seja na repetição ou negação de determinadas partes. Constituições de outros países também influenciaram a brasileira. No entanto, este estudo destaca a intertextualidade com um texto que não é constitucional: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948.

A relação é evidente com diversas partes da Carta Magna, mas será destacado aqui apenas o artigo XXV (Nações Unidas no Brasil, 2007):

1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social.

Para uma melhor observação das marcas intertextuais168, estão registrados, a seguir, o artigo 6º (do Capítulo II, Dos direitos sociais – do Título II, Dos direitos e garantias fundamentais) e o artigo 203 (da Seção IV, Da assistência social, do Capítulo II, Da seguridade social – do Título VIII, Da ordem social) da Constituição Federal (Presidência da República, 2007):

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000).

Grifos do original. Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

168

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Como é possível perceber, há muita semelhança nas proposições de cada texto. Compõem o Quadro 12, de maneira paralela, os elementos linguísticos que constam nos dois textos de forma exata ou em relação de sinonímia.

QUADRO 12: Direitos Humanos e Constituição – intertextualidade

Direito, direito à saúde, à assistência, à segurança – questões fundamentais em ambos os textos. É notório que outras comparações poderiam ser estabelecidas, mesmo sem ter uma relação direta tão explícita. A voz de um ideal de povos e nações ecoa na Constituição brasileira, mas por que tantos brasileiros e tantas brasileiras não ouvem essa voz?

4.1.3 Significado lexical

As escolhas lexicais e os significados das palavras nos textos dizem muito sobre eles. Por que dizer isto e não aquilo? Por que dizer isto de uma forma e não de outra? Que elementos linguístico-discursivos orientam / restringem a interpretação de determinado item lexical? Essas são algumas perguntas, entre uma série de outras possíveis, que podem colaborar com pesquisas que tratem da linguagem.

Conforme Fairclough (trad. 2001), um foco de análise pode ser a significação política e ideológica de lexicalizações alternativas e ainda a observação particular de “como os sentidos das palavras entram em disputa dentro de lutas mais amplas” (p. 105). Considerando que um dos objetivos desta pesquisa está voltado para a investigação discursiva da problemática social que envolve a situação de rua, é produtivo fazer-se análise lexical, pois, segundo Fairclough (2003, p. 129), essa é uma das principais maneiras de distinguir discursos – “discursos ‘lexicalizam’ o mundo de maneiras particulares”.

DUDH Constituição de 1988

direito direito família família

saúde saúde habitação moradia

segurança em caso de desemprego previdência social;

integração ao mercado de trabalho segurança em ... casos de perda dos

meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle

As próprias partes do texto constitucional em análise (art. 6º e 203), o enquadramento do gênero discursivo e o contexto sócio-histórico em que se encontra deixam claro que estamos diante de um discurso institucional e oficial, que pode ser chamado de discurso ‘do Estado brasileiro’ ou simplesmente como discurso do ‘Estado’, já considerando o recorte contextual. O Estado ‘garante’ nos excertos apresentados ‘direitos sociais’ e ‘assistência social’. Palavras como: ‘direito’, ‘trabalho’, ‘segurança’, ‘proteção’, ‘amparo’, entre outras, poderiam receber destaque nesse momento e serem analisadas; ora, no mínimo o número de indivíduos em extrema pobreza seria muito menor caso o ‘direito’ fosse assegurado – no mínimo o direito de um ‘trabalho’.

Como apresentado no Capítulo 2, o agravamentos do problema social em análise está fortemente ligado ao trabalho, ao mercado de trabalho, às mudanças no mundo do trabalho (Silva, 2009), contudo, vou dedicar-me de maneira breve à palavra ‘moradia’. Em primeiro lugar, aproveito o parágrafo para relatar o óbvio de que ‘moradia’ tem grande relação com ‘trabalho’. De um modo geral, a moradia das pessoas é próxima ao local de trabalho; com o aumento das desigualdades sociais, a sua materialização geográfica afasta, dos centros, a moradia de quem tem menos recursos financeiros (afasta também das ‘ilhas’ residenciais de quem tem mais recursos, pessoas que possuem veículos particulares para se locomover). A mesma materialização da desigualdade provoca a migração das pequenas cidades pobres e muitas vezes a ‘perambulância’ (Bursztyn e Araújo, 1997) em busca de melhores condições de sobrevivência.

As pessoas que têm morado nas ruas têm a rua como moradia. Essa frase que parece circular não o é por conta do contra-senso – o discurso do Estado é um discurso de igualdade, igualdade de direitos para todos e para todas: rua não deveria precisar ser local de moradia. Em poucas palavras, rua é um espaço público, espaço de passagem e não deveria precisar ser local de permanência. Moradia refere-se a um lugar de habitação, residência; em nossa sociedade é o ambiente no qual as pessoas regularmente se abrigam. A rua, ou viaduto, ou marquise, ou ponte, não oferece de maneira alguma o que uma casa (moradia de uma maneira geral) pode oferecer – os albergues sociais são uma opção mais viável, mesmo assim não podem comparar-se a um local pessoal de domicílio.

O tema da ‘moradia’ já constava na Constituição Federal no texto original de 1988 em dois trechos: no art.7º, inciso IV, como direito dos trabalhadores rurais e urbanos a um salário mínimo para atender à necessidade vital e básica da moradia (entre outras); e no art. 23, inciso IX, como competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a promoção de programas de construção de moradias.

Em 1996, foi apresentada uma proposta de Emenda à Constituição (nº 28) que incluía a ‘moradia’ no rol de direitos fundamentais. Sua justificativa estava baseada em um debate nacional e internacional sobre o déficit de habitações, com ênfase para a ‘Conferência Habitat II’ convocada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e realizada 1996. Também se destacou o receio quanto a ocupações que poderiam ser promovidas por pessoas ‘sem-teto’ e, além disso, a importância da moradia para a identidade dos indivíduos, o desenvolvimento deles e o da nação.

A partir de 14 de fevereiro de 2000, via Emenda Constitucional (n° 26), a moradia ganha status de direito fundamental, reforçando ainda mais sua importância e o comprometimento do Estado com o atendimento das demandas existentes. É inegável o avanço da lei, assim como é inegável a falta da devida contrapartida na prática. A ‘moradia’ é significativa no discurso do Estado: o que acontece nas práticas sociais (e em seus aspectos discursivos) para que a determinação legal tenha a aparência de uma falácia?

4.1.4 Representação de agentes sociais

Outra categoria de análise relevante para esta pesquisa é a ‘representação de agentes169 sociais’. Como os agentes sociais estão representados nos textos? Podem não estar presentes no texto, por quê? Podem estar presentes de maneira positiva ou negativa. O que essas alterações provocam nos textos a serem analisados? Van Leeuwen (1997) destaca a importância desse tipo de representação do ponto de vista linguístico e sociológico, além de fazer uma produtiva discussão sobre a categoria de análise e apresentar o que ele denomina de ‘inventário sócio-semântico’ de modos de representação. Por exemplo, o autor comenta (p.180) que a presença ou ausência170 de agentes sociais em textos serve a interesses e propósitos em relação às leitoras e aos leitores a quem se dirigem.

Na variedade de formas de representação de agentes sociais, podemos destacar: ‘pessoal / impessoal’, ‘específica / genérica’, ‘inclusão / exclusão’, ‘nomeação / classificação’ (van Leeuwen, 1997; Fairclough, 2003). Nos trechos do texto constitucional selecionados, temos, a princípio e de forma subentendida, dois agentes sociais: o Estado (como responsável ou aquele que garante direitos) e a sociedade brasileira (como possuidora de direitos ou beneficiária). Em relação à sociedade ainda ocorre uma ‘diferenciação’ para grupos em determinadas condições ou que se enquadrem em determinadas classificações.

169

Estou empregando o termo ‘agente’ no lugar de ‘ator’. Comento essa escolha no Capítulo 1. 170

Van Leeuwen utiliza os termos ‘inclusão’ e ‘exclusão’, estou empregando os termos ‘presença’ e ‘ausência’ com sentido similar.

Como o texto é para a sociedade, evidentemente não cabem nomeações. Dessa maneira, as pessoas são representadas como ‘desamparados171’, ‘crianças’, ‘adolescentes’, ‘pessoa portadora de deficiência’, ‘idoso’, e também inseridas em categorias que as representam de forma impessoal como a ‘maternidade’ e a ‘infância’.

Alguém poderia pensar na inserção de ‘cidadãos e cidadãs em situação de rua’ (ou outra designação mais coerente) na Constituição, pois esses cidadãos e essas cidadãs pertencem a um grupo que precisa de um atendimento diferenciado. Talvez, se houvesse essa inserção o problema ganharia maior visibilidade e, quem sabe, recebesse medidas mais efetivas (lembremos aqui da inclusão de ‘moradia’ como direito fundamental). Por outro lado, considerando o problema social em que vivem, são claramente pessoas destinatárias das atenções / obrigações constitucionais. Não será necessário repetir completamente os dois artigos citados, basta lembrar a proteção a pessoas desamparadas e idosas, e também que uma parte atualmente vive o problema com a ‘família’, em fase de ‘infância’, ‘adolescência’ e muitas vezes envolvidas com a ‘maternidade’ em seu período mais delicado (últimos meses de gravidez e primeiros meses de vida da criança).