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Capítulo 4 Análise de dados coletados

4.1 Constituição Federal

4.1.5 Práticas sociais e interdiscurso

É preciso relembrar que a Constituição é um gênero e identificar o texto da DUDH como pertencente também a um gênero: a ‘declaração’. Uma diferença fundamental inicia-se nesses enquadramentos: um texto faz uma declaração; o outro é lei.

Os gêneros e seus respectivos textos não são responsáveis por nenhuma ação ou interação por si mesmos, eles fazem parte de práticas sociais e nelas cumprem suas funções. Por ‘práticas’, Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 21) entendem as “maneiras habituais, ligadas a tempos e espaços particulares, nas quais pessoas aplicam recursos (materiais e simbólicos) para atuarem juntas no mundo”. As práticas sociais articulam diferentes elementos sociais, como ação e interação; relações sociais; pessoas (com crenças, atitudes, histórias etc.); o mundo material; discurso (Fairclough, 2003, p. 25).

Dentro dessa compreensão dialética das práticas sociais, é possível destacar que a DUDH é um texto de grande poder político e social, uma ‘declaração’ que é também um documento básico da ONU, texto legitimado pela própria instituição e por seus países membros, contudo ela mesma apresenta-se “como o ideal comum a ser atingido” (Nações

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No artigo 6º e 203, em dois momentos, agentes sociais da sociedade brasileira são representados por meio do masculino genérico: ‘desamparados’ e ‘idoso’ (ver discussão sobre o uso do masculino genérico em Magalhães, 2006).

Unidas no Brasil, 2007). A Constituição Brasileira é o texto instituído e reconhecido como lei máxima do país, a compreensão imediata é: se é lei, deve ser cumprida. Ora, se “todos são iguais perante a lei” (Artigo 5º, Presidência da República, 2007), por que a tamanha diferenciação172 diante da legislação?

Considerando as práticas sociais, e por isso uma perspectiva transdisciplinar173, é possível tratar dessas questões com base em uma reflexão linguístico-discursiva. As diferentes construções / representações do mundo ou de aspectos do mundo podem ser depreendidas em análises textuais, ou seja, é possível perceber que discursos estão presentes e como se relacionam entre si – interdiscursividade.

O mundo vivia um período conturbado e de grandes reflexões sobre o futuro da humanidade e das nações após a segunda guerra mundial. Nesse contexto, é proclamada a DUDH e um dos discursos principais que se pode identificar é o ‘discurso da igualdade’, lexicalizado em elementos textuais como: “todo ser humano...”. Porém, é recorrente ouvir-se e constatar-se que o Brasil é um dos países com maior desigualdade social do mundo. Esse ‘discurso de desigualdade’ convive174 com o ‘discurso da igualdade’ presente na Constituição.

Avançando nas análises das práticas sociais é possível compreender melhor essas relações interdiscursivas e as razões do ‘descumprimento’ da lei. Na perspectiva jurídica, José A. da Silva (2002) distingue diferentes formas de aplicabilidade das normas constitucionais: há as que entram em vigor desde a promulgação e podem produzir todos os seus efeitos; as que também entram em vigor de maneira imediata, porém podem / devem ter seus efeitos regulados posteriormente; e as que não são de aplicabilidade imediata por dependerem de complemento legislativo, as quais também têm eficácia limitada, seja de princípios intuitivos (esquemas gerais de estruturação de órgãos etc.) ou programáticos (princípios para programas que atendam aos fins sociais do Estado).

Esse último é o que interessa principalmente a este trabalho. Direitos ‘assegurados’ no artigo 6º, por exemplo, enquadram-se nessas normas de aplicabilidade limitada quanto aos princípios programáticos. Seriam regras jurídicas que traçam diretrizes para orientar os Poderes Públicos. Ainda segundo Silva (2002), a Constituição de 1988 considera os direitos sociais como direitos fundamentais (Título II) e não meras garantias sociais, e acrescenta:

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A exemplo da desigualdade social no Brasil. 173

Uma perspectiva de diálogo entre diferentes disciplinas e teorias no desenvolvimento de uma pesquisa (Fairclough, 2003). No caso da ADC, procura-se avançar especialmente na relação entre o social e o linguístico (Chouliaraki e Fairclough, 1999).

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Não lhes tira essa natureza o fato de sua realização poder depender de providências positivas do Poder Público. Por isso, caracterizam-se como prestações positivas impostas às autoridades públicas pela Constituição (imposições constitucionais). (Silva, 2002, p. 151)

Considerando a ‘imposição’ às autoridades, transparece um ‘descumprimento’ da lei no que tange aos direitos sociais. O grupo social das pessoas que estão morando nas ruas não goza do direito à moradia175, além de outros. Então, onde cobrar?

Ingo W. Sarlet (2003) pondera que a existência do artigo não elimina os problemas e dificuldades para concretizá-lo, e diz que: “Com efeito, não é pelo fato de o art. 6º da CF176 referir expressamente um direito ao trabalho, que se pode simplesmente extrair a consequência de que ao particular cabe o poder de reclamar judicialmente que lhe seja concedido um emprego” (p. 289). Uma das dificuldades estaria relacionada ao ‘postulado da reserva do possível’, que se refere ao limite de recursos de que o Estado dispõe. Contudo, o mesmo autor considera controverso até que ponto essa dificuldade pode ser um obstáculo para o reconhecimento de um direito.

Recentemente, o então ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, determinou a matrícula de uma criança menor de seis anos em creche pública, entendendo isso como obrigação do Município. No arrazoado que fez ao tratar do problema, Mello (Supremo Tribunal Federal, 2005) considera a gradação da concretização de direitos econômicos e sociais, a ‘reserva do possível’ e a impossibilidade de exigência da imediata efetivação do que estabelece a Constituição. Porém, a determinação feita tem base em uma parte (a seguir) do texto que interessa primordialmente a este trabalho:

Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004).

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

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Lembremos que a Emenda Constitucional que altera o texto original do artigo 6º efetua exatamente a inclusão da moradia como um direito (ver Seção 4.1.3).

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Dessa forma, a obrigação do Estado e a possibilidade de ação judicial abre-se para os direitos sociais. Francisco das C. Lima Filho (2006, p. 44 e 45) apresenta e refuta algumas objeções que existem relativas a essa possibilidade: a falta de especificação concreta do conteúdo dos direitos sociais; o “critério restritivo que costuma ser empregado pelo Judiciário na hora de avaliar sua faculdade de anular decisões que podem ser qualificadas como políticas”; a “inadequação dos mecanismos processuais tradicionais para a tutela desse tipo de direito”; e a própria “ausência de tradição de exigência dos direitos sociais”. Em seguida, o mesmo autor afirma, de maneira categórica, que a tese da não jurisdicionalização dos direitos sociais não procede e que o fato de serem ‘direitos’, torna-os passíveis de exigência judicial. Por fim, Lima Filha (p. 50) pondera:

fazer verdadeira a democracia tomando em sério os direitos fundamentais do homem, tal como se encontram solenemente proclamados nas constituições dos diversos Estados e nos Tratados e Pactos Internacionais, significa colocar fim ao grande e desumano apartheid social que exclui do seu desfrute uma imensa parte do gênero humano.

Fortalecido até aqui, o ‘discurso da igualdade’, inclusive com as prerrogativas jurídicas de exigência de aplicabilidade (mesmo de uma igualdade existencial mínima), fica evidente que ele existe em contraposição ao ‘discurso da desigualdade’, que por sinal é muito mais materializado nas práticas sociais.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que a abertura judicial exposta é relativamente recente e não encontra consenso entre os magistrados, além de demandar um tempo considerável para uma possível realização prática (o que não deve inibir as exigências de direitos).

Muito mais rápida tem sido a intensificação dos problemas sociais. Cristovam Buarque (1997) destaca uma crise e uma mudança nas perspectivas das pessoas, as quais procuravam as grandes cidades inicialmente com expectativas de melhores empregos e condições de vida, no entanto, muitas têm migrado em busca do ‘lixo da modernidade’. Aquilo que é rejeitado torna-se o sustento, muitas vezes o alimento, de outros seres humanos.177

O caso das pessoas que estão morando nas ruas apresenta um processo de sobreposições de direitos não atendidos. O foco deste trabalho está nas pessoas que são compelidas a essa situação degradante por restrições financeiras. Resta-lhes, entre as possibilidades de sobrevivência, a coleta de materiais recicláveis para serem vendidos. Outra saída imposta é a prestação de serviços como o de ‘guardador/a de carro’ ou a mendicância.

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Além de contrapor o ‘discurso da igualdade’ com o ‘discurso da desigualdade’, é preciso considerar nessa mesma ordem do discurso – com ampla materialização nas práticas sociais e que envolve aspectos econômicos, políticos, educacionais e tem se ramificado na vida social –, o ‘discurso do capitalismo’ (o qual guarda relações inequívocas com o ‘discurso neoliberal’ e o ‘discurso da globalização’ – Fairclough, 2003, 2006). Certamente, tem ocorrido uma série de mudanças sociais por conta da faceta mais recente do capitalismo.

Grosso modo, as adequações dos Estados para atenderem às demandas ‘necessárias’ do mercado internacional (que se pretende cada vez mais global) sufocam discussões sociais e priorizam o fluxo de capitais, colaborando assim para práticas especulativas e para um alargamento das distâncias sociais entre ricos e pobres, aumentando a extrema pobreza.

O papel da linguagem e de discursos dentro de estratégias para a globalização é importante e deve ser investigado (Fairclough, 2006). Bourdieu (1998) destaca o papel do discurso no projeto neoliberal, que adota um discurso dominante, o qual, por sua repetição, vai fortalecendo uma crença em uma tendência fatalista que carrega a aparência de liberação, apesar de ser conservador e atender a interesses particulares.

Na dialética das práticas sociais ligadas ao sistema econômico e político mais poderoso do mundo atual, os discursos a ele vinculados servem para representar um mundo transformado e em transformação. Também servem para representar de determinada maneira aquilo que é e o que deve / deveria ser, o que muitas vezes vem revestido com uma aparência de realidade já vivenciada, como na afirmação “no mundo globalizado”, com o pressuposto de que tal completude existe. Vê-se que esses discursos são mais ‘construções’ do que ‘representações’ (Fairclough, 2009).

De qualquer forma, o discurso do capitalismo passa como realidade inexorável. Nessa conjuntura, os próprios Estados se enfraquecem, com muitas consequências perversas para a humanidade (Bauman, 1999), atingindo principalmente quem mais precisa ver seus direitos garantidos. Ora, não parece aceitável que em um sistema social um semelhante (ser humano) seja ‘posto’ para morar nas ruas e conviver com as mazelas implicadas nesse contexto.

Parecem pequenos o Legislativo, o Executivo e o Judiciário diante do gigante capital. Evidentemente existem aberturas, as mudanças sociais acontecem, não só para pior.