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Capítulo 4 Análise de dados coletados

4.6 Considerações preliminares

Conforme é possível perceber, ao longo desta tese (principalmente no Capítulo 2), o processo social que gera a situação de rua não brotou da natureza – é um processo de intensificação das desigualdades sociais. Sabe-se também que esse processo é multifacetado e relaciona-se a desemprego, necessidades materiais, problemas relativos à vida familiar; problemas com drogas e/ou álcool (que pode iniciar-se nas ruas como forma de fuga ou sociabilidade, ou pode levar alguém para as ruas); problemas de resultados negativos de uma migração esperançosa; problemas de desestruturação do mercado de trabalho (ao qual foi destinada especial consideração neste estudo por ser um problema crescente e que necessita tornar-se um dos primeiros tópicos para se tratar do processo, em vez de manter-se os limitadores estigmas – da loucura, do alcoolismo, da vadiagem, da mendicância).

Ideologicamente, a ‘discriminação’, a ‘naturalização’ da situação de rua (uma das expressões radicais da questão social) vivenciada por cidadãos e cidadãs, têm sido reforçadas nas práticas sociais (por isso mesmo, perpassam os aspectos discursivos).

Outra questão é a forma de tentar ‘resolver’ o problema. Pensando metaforicamente em um processo de gotejamento é possível dizer que alguns procuram ‘retirar’ a ‘água’ do local onde está de diferentes maneiras (explícitas ou camufladas), outros tentam resolver o problema ‘secando o chão’ (albergue, capacitação) que obviamente fica molhando. Quem está se preocupando em fechar a torneira? Há quem esteja deixando de habitar as ruas, porém há quem esteja começando. Ações preventivas precisam ser pensadas para que não se chegue ao ponto de estar morando nas ruas. A expressão ‘estar morando nas ruas’ deveria causar

estranhamento, pois é um absurdo social – sua naturalização precisa ser questionada, precisa ser desfeita.

Retomando os textos por meio de uma inversão da ordem de apresentação, temos que, a notícia televisiva do Jornal Nacional é emblemática para observar o silêncio nacional quanto à séria situação humana por que passam aqueles/as que precisam viver da / na rua. O poder da instituição ‘Rede Globo’, o poder do programa ‘Jornal Nacional’, o poder do gênero ‘notícia televisiva’, tudo isso não está colaborando para a discussão, reflexão e resolução do problema que afeta toda a sociedade, mas que dói no corpo e na mente desses cidadãos e dessas cidadãs. “Pode-se considerar que a mídia de notícias efetiva o trabalho ideológico de transmitir as vozes do poder em uma forma disfarçada e oculta” (Fairclough, trad. 2001, p. 144). Por outro lado, essa mesma mídia pode colaborar para transformações sociais atuando como uma resistência / oposição ao poder estabelecido’ (mesmo que seja em determinados casos especificamente).

Embora em segundo plano, no apensar da notícia ‘principal’, a Folha de S. Paulo permite a divulgação da voz de indivíduos minorizados, e o que é mais significativo, não são indivíduos que falam, é uma instituição que fala por eles – os movimentos sociais que os representam diretamente. As mudanças sociais dependem muito de mobilizações sociais. As ‘lenhas’ precisam estar juntas em um ‘feixe’ para adquirir peso, força e resistência. Grande parte dos direitos constitucionais é individual e os indivíduos deveriam ser respeitados em suas singularidades, contudo não é assim que ocorre. É preciso então tomar posse das formas instituídas de poder e visibilidade e isso também passa pelo uso de gêneros. Os documentos apresentados ao presidente (citados na notícia) são resultados de vozes individuais e particulares agrupadas em um coro que se expressa em uníssono e dentro de padrões linguístico-semiótico-discursivos estabelecidos socialmente.

A revista Veja dá notoriedade e reforço à discriminação e ao preconceito direcionados a seres humanos que estão morando nas ruas, com uma notícia vinculada à cidade de São Paulo. A demanda da faxina, da limpeza, da retirada de um público do espaço ‘público’. Considerando as ausências, as lacunas: por que não se discutem as origens dessa tragédia social, seu agravamento, as possíveis soluções? Ou seria simplesmente um fenômeno natural de problemas que ‘nasceram’ nos jardins da praça do reino, às portas do Palácio?

A última imagem da charge eletrônica demonstra o pensamento do cidadão que tem morado nas ruas e do delegado sobre o que foi dito anteriormente: um constatando para si o outro constatando de si; a inculcação de que o ‘morador de rua’ é ninguém; um processo de constituição identitária negativa. Não se apresenta qualquer indício de que a situação de

moradia nas ruas é, em geral, causada por algo que está além da condição individual, que se enraíza nas práticas sociais de discriminação e na estrutura social na qual vivem brasileiros e brasileiras. O discurso capitalista e suas implicações no mundo material e nas relações sociais fica camuflado.

Foi possível observar que os/as chamados/as “moradores/as de rua” são classificados/as negativamente no texto de diferentes maneiras, até o ponto de serem categorizados/as como ‘não pessoa’, ‘não ser humano’ – inexistentes, o que indica uma ‘discriminação’ extrema e uma forma de desconsiderar o problema social por meio de um processo de ‘naturalização’.

Os resultados das análises da CE apresentam diversas críticas ao governo / Estado, porém, não são críticas específicas relacionadas à situação das pessoas que estão morando nas ruas. Essas são representadas por meio de estereótipo visual / linguístico e ideologicamente discriminadas na sociedade. As possibilidades de recepção sempre são várias, mas, sem dúvida, afirmar no texto a inexistência de determinados seres humanos dá visibilidade à grave problemática social que é mantida tantas vezes em silêncio, como se realmente não existisse. Nesse sentido, o texto da CE desenvolve uma crítica que pode ser produtiva para a reflexão social, essa ação o difere dos demais textos analisados.

Dentro das práticas sociais na qual interage, o gênero ‘Constituição’ confere ao texto constitucional brasileiro de 1988 um poder sobre as demais leis do país e, por isso, um lugar de destaque no cenário nacional. No entanto, muitos registros verbais que apresentam avanços para a sociedade não recebem a contrapartida na eficácia esperada. São muitas vezes relegados a segundo plano, ou a menor efeito prático, via interpretações ou simplesmente à pequena ou ausente atuação do Poder Público238.

No emaranhado discursivo que circunda o problema das pessoas que moram nas ruas, parecem muito mais evidentes os resultados do ‘discurso do capitalismo’ na dialética de sua materialização nas relações sociais. O ‘discurso da desigualdade’ impera, por mais que haja um ‘discurso de igualdade’ legitimado institucionalmente. As disputas no campo discursivo são totalmente atravessadas por outros elementos das práticas sociais e o capital tem tido primazia sobre o social e sobre o próprio Estado.

A Constituição registra no Título I (Dos princípios fundamentais), Artigo 3º, Inciso III (Presidência da República, 2007), que um dos quatro “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” é “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

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sociais e regionais”. O programa Bolsa Família239, do governo federal, inibe de alguma maneira fluxos migratórios e é um apoio a famílias com necessidades materiais (de alimentos, por exemplo), as quais, no entanto, dependem de forma prática e duradoura de ações mais efetivas do Poder Público.

Ao lado das ações do governo está a demanda crescente e aviltante; ao lado do Estado está o sistema econômico240 vigente; ao lado dos direitos ‘garantidos’ está o não cumprimento – ao lado da legislação, a discriminação.

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Programa de distribuição de renda que garante uma certa quantia em dinheiro a pessoas que estejam em determinadas condições de pobreza e necessidade de apoio material.

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Que é também político, pois “existem precondições políticas para processos, relações e sistemas econômicos” (Fairclough, 2006, p. 12).