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Ciência e literatura – Traduzindo, metaforizando, interpretando

3 TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE

3.2 Ciência e literatura – Traduzindo, metaforizando, interpretando

É impossível falar de pesquisa científica sem levarmos em consideração as questões acadêmicas e, assim, inevitavelmente nos depararmos com discussões sobre o conceito de ciência. O texto Narrativa literária e ciência (2006), de Susana Souto Silva, traz uma discussão interessante, particularmente para nós que estamos na academia, pois reflete sobre a separação entre ciência e arte que a nossa tradição escolar impõe.

Silva (2006) cita Ítalo Calvino, um autor que pensa a literatura como um espaço em que diversos campos se cruzam. Para exemplificar o que pretende discutir em seu artigo, a autora discorre sobre o livro As Cosmicômicas, no qual Calvino problematiza a separação

entre arte e ciência. A tradição escolar frequentemente nega as semelhanças existentes entre a arte e a ciência, baseando-se numa visão maniqueísta, segundo a qual a arte estaria no campo da imaginação, da invenção, do lúdico, do ilógico, do não verdadeiro; e a ciência – seu polo oposto, como discurso – corresponderia ao domínio do racional, do lógico, do comprovado, do verdadeiro.

Sabemos que na academia existem divergências, e que encontramos, às vezes dentro de um mesmo programa de graduação ou pós-graduação, pesquisadores com ideias bastante diversas acerca do que é considerado ciência. No entanto, mesmo os adeptos da ciência mais leve, precisam se adequar às normas acadêmicas de realização de trabalhos, projetos e relatórios.

Silva (2006) aponta que Calvino problematiza a pretensão de objetividade e verdade do discurso científico, mostrando, com o humor, que há muito de imaginação no que sabemos do passado, de tempos remotos dos quais não poderíamos ter participado como observadores, e mais: “[...] a observação tampouco nos garantiria o estatuto de verdade desse discurso, pois a observação nunca é neutra, é orientada por modelos, é formatada pelo imaginário que nos constitui” (pp. 6-7).

Para a autora, a ciência constrói modelos de compreensão muitas vezes para elaborar, a partir deles, aquilo que não poderia ter sido vivido e, portanto, testemunhado pelos humanos. Assim, essas formas de compreensão são modelos humanos para suprir lacunas do nosso limite humano.

Não há possibilidade de alguém ter visto o início da formação da Terra, muito anterior ao surgimento dos homens. Ora, essa impossibilidade coloca em xeque, ou ao menos sob suspeita, essas construções. Remete-nos ao que elas carregam de imaginação, de incerteza. Para suprir as faltas, as lacunas dessa história, o cientista é levado a imaginar, a pressupor, por mais rigorosos que sejam seus esquemas, eles, os esquemas, atuam no desconhecido, e, às vezes, o texto científico pode incorporar essa inexatidão (SILVA, 2006, p. 5).

Partindo do exposto por Silva (2006), pensamos também que é mais adequado afirmar que Freud construiu uma teoria, uma linha de pensamento, e não que ele “descobriu” a teoria da sexualidade, como é colocado por seu tradutor inglês, conforme veremos adiante. Muitas das lacunas que ele encontrou em suas observações diretas foram preenchidas com os discursos dos pacientes que ele analisava – ou seja, a imaginação dos pacientes que falavam

sobre suas vidas, suas lembranças – e também com a imaginação, dedução ou intuição do próprio Freud.

A arte, para a psicanálise, exerce uma função importante e constituinte de sua teoria, de modo que, desde seu nascimento, a psicanálise busca e investiga a criação artística. Freud dizia que os grandes escritores tinham um conhecimento direto e intuitivo do inconsciente, enquanto ele mesmo só o encontrava por meio de muito esforço. Em seu texto Escritores Criativos e Devaneio, Freud (1908/1996) comenta: “Se ao menos pudéssemos descobrir em nós mesmos ou em nossos semelhantes uma atividade afim à criação literária!” (p.136).

Muitos autores, influenciados por Freud, estiveram envolvidos em determinados momentos com diversas formas de arte, para buscar uma compreensão do funcionamento psíquico ou, ainda, tomando emprestada a sensibilidade de escritores para melhor ilustrar conceitos (BONANÇA, 2009). Mesmo antes de Escritores Criativos e Devaneio, no qual aborda diretamente a criação literária, Freud já evidenciava seu interesse pelas narrativas em tempos mais remotos. Na Interpretação dos Sonhos, de 1900, ele já tratava os sonhos como narrativas literárias, relatos imaginários. Assim, com essa forte influência da literatura, a teoria psicanalítica é, em grande parte, a narrativa de casos clínicos que Freud produziu a partir de sua escuta aos pacientes, e que podem ser lidos como ficções, romances.

Assim, o trabalho com textos possui fortes aproximações com a clínica psicanalítica no que diz respeito, principalmente, à polissemia de sentidos. Uma obra, um texto, pode ser tanto escrito quanto lido de diversas formas, assim como um relato pode ser tanto falado pelo paciente quanto escutado pelo analista de diversas formas diferentes e, justamente aí, está a riqueza da experiência analítica.

Neste mesmo âmbito, a tradução, assim como a escrita literária, tem também uma íntima ligação com o trabalho clínico psicanalítico. Traduzir é, grosso modo, colocar em outras palavras uma mesma coisa. Ou seja, um mesmo enunciado é transposto para outro idioma. Essa transposição, por si só – e inevitavelmente – provoca uma abertura de sentidos, uma criação, um trabalho em cima de alguma coisa. Traduz-se para que se possa “entender melhor”. Na conversa informal, quando alguém fala algo complicado, o interlocutor pede: “Traduza, por favor!”, mesmo que a tradução seja feita dentro do mesmo idioma.

Traduzir, na clínica psicanalítica, estaria muito próximo de nomear, ou renomear. Talvez a dificuldade que um tradutor sente ao não encontrar uma palavra, um termo ou uma expressão correspondente no idioma para o qual está traduzindo, seja análoga à dificuldade

que o analisante sente ao querer expressar algo e não conseguir. Análoga à dificuldade de querer nomear algo que, até então, não parece ter nome ou não parece existir na língua – língua, parte do corpo, que fala a palavra; e na língua, idioma.

Helena Kon Rosenfeld, autora de um livro denominado Palavra pescando não- palavra: a metáfora na interpretação psicanalítica (1998) aborda a relação entre a psicanálise e a arte, em suas diversas formas. Ela aproxima o trabalho do artista ao do psicanalista. Poderíamos, seguindo o nosso raciocínio, incluir aí também o trabalho do tradutor. Para esta autora:

O trabalho do escritor, do poeta, é nesse aspecto muito parecido com o do psicanalista: um trabalho de nomeação da experiência emocional, mas uma nomeação especial, uma nomeação que possa dar vida a ela, que não a mate com um nome. Uma nomeação que muitas vezes não pode se dar, ou que se dá aos poucos, cada vez fazendo aparecer novas facetas da experiência, num trabalho artesanal que pode durar anos. Às vezes, o que nos resta é apenas a pergunta sem resposta: como se chama? (ROSENFELD, 1998, p. 40).

Diante da citação da autora, podemos pensar que uma análise pode durar anos, assim como um trabalho de tradução pode durar anos, assim como um livro, uma pintura, uma escultura, uma música, podem levar anos para serem concluídos ou para fazerem algum sentido. Isto reforça a ideia de que o sentido é construído, não existe em si mesmo. Os eixos que Rosenfeld (1998) escolhe para relacionar a psicanálise com a arte são a metáfora e a interpretação, justificando que “tanto um como outro pertencem aos dois campos e, portanto, podem ser usados como ponte que podemos atravessar para ir de um a outro” (p. 26).

A metáfora, figura de linguagem tão especial, aparece tanto em obras de poesia e literatura como na fala dos analistas e dos analisandos na situação analítica. A interpretação, por sua vez, aparece tanto na psicanálise - a interpretação psicanalítica - como na arte, já que esta é interpretável (Ibid, p. 26).

Sendo assim, são diversas as aproximações entre a arte e a psicanálise e, a respeito dessas aproximações, destacamos a escrita como uma das mais significativas. Em consonância com o que já expomos anteriormente, quando falávamos que a escrita de Freud tem características de um ensaio, Rosenfeld (1998) enfatiza o estilo de escrita de Freud também o caracterizando como uma mistura de tom científico e tom literário, o que remonta

ao conflito entre ciência e arte presente no pensamento freudiano sobre a psicanálise. Sobre os textos de Freud, a autora considera que estes:

[...] têm um estilo particular, são construídos com muito talento e inteligência [...] Patrick Mahony afirma que em Freud o pensador está indissociado do escritor: ele pensa através e na língua. Ama, trabalha e brinca com a palavra. Nos textos aparece aquilo que Mahony chama de "pensamento pensante": as ideias vão sendo descobertas e pensadas à medida que são escritas [...] Freud usa a narrativa e o suspense semelhante ao das histórias policiais. Ele não gostava de definições rígidas e constritivas; tinha alta tolerância para a inconsistência e a incerteza (ROSENFELD, 1998, p. 20).