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3 TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE

3.6 Um texto nunca é inocente

Embora não declare especificamente, Steven Marcus parece fazer uma leitura desconstrutiva dos Três Ensaios de Freud, e é a partir dessa perspectiva – de desconstruir o texto escrito por Freud – que ele escreve sua introdução à obra. Na desconstrução, parte-se da perspectiva de que nenhum texto é inocente, pois possui estratégias para levar o leitor numa determinada direção. Marcus faz exatamente esta leitura da obra de Freud, afirmando:

Eu proponho que o que temos perante nós – como de costume, com Freud – é algo que não pode ser pensado como um texto inocente. Esta proposição não deve surpreender, já que foi Freud, mais que qualquer outra pessoa na história do mundo moderno, que nos ensinou a suspeitar da pretensa ou aparente inocência de qualquer tipo (MARCUS, 1975 In: FREUD, 1905/1975, p. xx).

O trecho acima é um dos que demonstra a passionalidade de Marcus ao falar de Freud, conforme dito anteriormente. Ao falar que foi Freud, mais que qualquer outra pessoa na história do mundo moderno, quem ensinou a suspeitar da aparente inocência das coisas, ele exclui outros autores que partiam também desse pressuposto. Talvez Freud tenha sido o primeiro, ou um dos primeiros autores a declarar essa suspeita em relação à inocência das coisas, mas certamente não foi o único.

Como Marcus estava falando do texto escrito de Freud, ele poderia ter citado autores como o próprio Derrida (constantemente evocado quando se fala em desconstrução e estratégias textuais). No entanto, entendemos que não era o propósito de sua introdução falar sobre a sua própria estratégia de leitura. Em outras palavras, embora ele estivesse aparentemente desconstruindo o texto de Freud, ele não fala de sua própria estratégia de

leitura do texto freudiano. As considerações que fazemos no momento já se referem a uma desconstrução nossa do texto de Marcus em relação ao texto de Freud.

Segundo Marcus, os Três Ensaios não são inocentes em sua forma, conteúdo ou intenção. Desde o início, um dos objetivos declarados deste trabalho foi afirmar o fim de uma inocência histórica. Com a publicação dos Três Ensaios, Freud deu visibilidade a “uma era de inocência cultural” (MARCUS, 1975 In: FREUD, 1905/1975, p. xx), na qual a infância era considerada inocente, livre de desejos, de busca por prazer, de autoestimulação. “Muito do ódio ligado ao nome de Freud deve ser entendido nessa perspectiva. Em nome da verdade e da realidade, ele se dedicou a negar os mitos santificados da cultura ocidental” (Ibid, p. xxi). Marcus salienta que, em geral, as culturas não aceitam bem tais desmistificações e, assim sendo, não é de surpreender que dentre os construtos teóricos de Freud, aqueles que se referem à sexualidade infantil foram os que sofreram mais resistências.

No texto de Freud em português, encontramos o termo “sexualidade infantil”. No entanto, na introdução de Steven Marcus, quando ele fala sobre o assunto, usa o termo “infantile and childhood sexuality”. Na tradução, adotou-se mais amplamente sexualidade infantil, mas, no inglês, infancy ou infantile se referem aos estágios mais iniciais da infância, ou o que chamamos comumente de primeira infância. Já childhood se refere à infância de um modo mais geral, contemplando também os anos posteriores, até a pré-adolescência. Assim, o termo em inglês se mostra mais específico, ou seja, é possível verificar melhor de que fase da infância o Freud está falando, enquanto “sexualidade infantil” ficou mais abrangente. Embora não traga grandes prejuízos para o entendimento da obra, este é mais um exemplo de abertura de sentidos que a tradução entre idiomas proporciona.

Ao abordar o formato dos Três Ensaios, Marcus afirma que Freud tinha a intenção clara de ser sistemático, já que cada ensaio é dividido em várias seções, cada uma delas com um título, e cada uma ainda é dividida em subseções menores. Assim, o trabalho como um todo é composto desses blocos de material justapostos. Marcus oferece duas analogias para falar dos Três Ensaios. Ele diz que a obra se parece com um palimpsesto na perspectiva de tempo histórico, ou seja, ele se refere à justaposição de notas de rodapé, que retratam o que havia antes; o que fora retirado; as incorporações de novos elementos ao próprio texto, etc. Ao mesmo tempo, ele diz que o texto se parece com um mosaico, tanto em relação à diagramação, ao espaço impresso, quanto na minúcia necessária em cada lida do texto. Os Três Ensaios lembram um mosaico justamente nesse sentido de ter partes muito pequenas que

se juntam para compor uma unidade, ou um texto unificado, mas que podem ser separadas, completas em si mesmas.

Em contraste à varredura explicativa que geralmente associamos à escrita de Freud, o discurso presente nos Três Ensaios é formado desses fragmentos que são tanto conectados quanto fáceis de separar, manipular, revisar, ou remover. Eles funcionam como partes móveis de um sistema, e a intenção complexa de Freud nesse texto inclui a explícita intencionalidade de ser sistemático, em estabelecer uma teoria coerente e sistemática (MARCUS, 1975 In: FREUD, 1905/1975, p.xxi).

É difícil precisar se a intenção de Freud, desde o início, era especificamente de ser sistemático, como destaca Marcus. Ao mesmo tempo em que sabemos que Freud sempre teve a intenção de que a psicanálise fosse reconhecida cientificamente – e isso incluiria uma sistematização da teoria – as primeiras edições dos Três Ensaios não foram publicadas nesse formato acadêmico, decomposto, dividido, sistemático.

Como afirma o editor inglês, as seções inicialmente (antes de 1924) só apareciam numeradas até a metade do primeiro ensaio, e somente depois é que a sistematização foi estendida ao segundo e terceiro ensaios, para facilitar as referências. Ou seja, durante os quase 20 anos desde a sua primeira publicação, Freud não pareceu priorizar a sistematização, mas sim os acréscimos que considerava essenciais e as modificações necessárias, de acordo com o avanço de suas pesquisas e sua clínica. Provavelmente essa extensão se deu a partir da utilização do texto em meios acadêmicos e devido à necessidade de se tornar mais compreensível. Ou seja, não parece ser algo para o qual Freud atentou desde o início, mas que surgiu com o tempo, com as repercussões à publicação da obra.

Uma segunda questão colocada por Marcus em relação ao formato do texto é sobre a estrutura dos ensaios. Ele lança as perguntas: Por que Freud começou deste modo? Por que ele começou com um ensaio sobre as aberrações sexuais e partiu destas para os ensaios sobre a sexualidade infantil e as transformações da puberdade? Ele diz que a sua estratégia – e falando aqui em estratégia, ele reforça a ideia posta anteriormente de que este texto de Freud não é inocente nem em seu conteúdo nem em sua forma – neste contexto não é difícil de entender. Ao iniciar falando sobre as aberrações sexuais, Freud estava buscando lidar primeiro com certas formas do comportamento sexual de adultos. Ademais, Marcus diz que as práticas sexuais em questão eram familiares e reconhecíveis a qualquer público a que ele

pensasse estar se dirigindo em 1905. Sendo assim, Freud procedeu de modo a decompor essas manifestações do comportamento sexual, desmembrando-as e reorganizando-as. Assim:

O conteúdo explosivo deste livro será encontrado no segundo ensaio; teria sido imprudente, no sentido mais elementar, começar imediatamente com este tópico. Uma base preparatória no assunto mais familiar e paradoxalmente menos provocativo das aberrações sexuais precisou ser apresentado antes que Freud pudesse avançar para o assunto perturbador da sexualidade infantil (MARCUS, 1975 In: FREUD, 1905/1975, p. xxii).

Quando ele fala em paradoxo, sustenta a tese de que as aberrações sexuais deveriam ser um assunto mais perturbador e controverso do que a sexualidade infantil. Pelo fato de as aberrações serem algo que foge do comum, do normal, e que é visto com menos frequência, estas deveriam perturbar mais do que a sexualidade infantil, que é comum a todas as crianças. No entanto, como o próprio Marcus aborda anteriormente, a questão da sexualidade infantil mexe com as bases do mito cultural de que a infância é a época da inocência, e que é feliz justamente por não ter que lidar com desejos e impulsos sexuais. Ou seja, mexe com algo que parece estar mais escondido, recalcado, do que as aberrações sexuais, por mais aberrantes e excêntricas que elas pareçam ser.

Sendo assim, Freud parece ter feito uma escolha bastante pertinente na ordem dos ensaios. Além de apresentar primeiro as aberrações sexuais, ele se dedicou a desconstruir algumas ideias estabelecidas, de que, por exemplo, as ditas aberrações sexuais só faziam parte da vida sexual das pessoas anormais ou doentes. Freud trouxe outra luz para esta questão ao apontar essas aberrações como presentes na vida sexual mesmo das pessoas normais, dando ênfase em relação ao grau e às variações (frequência, exclusividade ou não, etc.) da pulsão sexual e não aos comportamentos em si. Este foi o trabalho de base que ele realizou no primeiro ensaio ao pegar um tema já mais conhecido e ainda assim se dedicar a desconstruí- lo, de modo que a leitura do segundo ensaio pudesse se dar de forma menos impactante.

Steven Marcus assinala que nos Três Ensaios Freud estava escrevendo com um modelo em mente, que ele identifica como o modelo de Darwin, e diz que os Três Ensaios seria seu trabalho mais darwinista. A obra seria sobre origens, de várias maneiras, e teria sido escrita através de um ponto de vista consistentemente evolucionista. Tanto Darwin quanto Freud estavam interessados nas relações entre aspectos variáveis.

Darwin traçava as relações de variação entre uma espécie e outra, e em que ponto uma espécie poderia se transformar. “E assim como o tema principal do trabalho de Darwin foi a ‘transmutação’ das espécies, a preocupação fundamental dos Três Ensaios é com ‘as transformações da pulsão sexual” (MARCUS, 1975 In: FREUD, 1905/1975, p. xxiii, grifos do autor). Marcus aponta que o propósito da taxonomia de Freud não era meramente criar novas distinções e classificações, mas sim entender como essas distinções se relacionam umas com as outras, e como uma é criada a partir da transformação da outra. Freud vinha da medicina e, além disso, pretendia tornar a psicanálise reconhecida cientificamente. Provavelmente parte de seu interesse em sistematizar e criar classificações e subclassificações tenha base neste pano de fundo. No entanto, o que Marcus ressalta é que o interesse de Freud estava além desse “encaixe” na medicina psiquiátrica.

Aparentemente, Freud percebia que havia de fato muitas interações entre as variações na pulsão e que a linha divisória entre quais variações poderiam ser consideradas normais e quais seriam patológicas era muito tênue e, sendo assim, talvez a necessidade de classificar se devesse também a sua própria metodologia de construção da teoria. Talvez ele tenha precisado dividir, classificar, subdividir, para que ele próprio pudesse pensar melhor no que poderia significar a dinâmica pulsional. Apesar das classificações nosográficas, Freud sempre pareceu muito cuidadoso em não fechar determinadas questões, conceitos ou patologias, pois o estudo das relações diferentes e do dinamismo pulsional é presente em grande parte de sua obra.

Outra semelhança que Marcus encontra entre Freud e Darwin é em relação ao tempo que os dois autores levaram para publicar seu material. Segundo ele, Darwin “ruminou” seus estudos por duas décadas antes de decidir publicar, e ele só o fez pois, nesse meio tempo, Alfred Russel Wallace também havia descoberto o princípio da seleção natural. Freud vinha acumulando seu material dos Três Ensaios por quase dez anos e ele, também, “vivendo em seu autointitulado ‘isolamento esplêndido’, não estava com muita pressa de publicar seus achados teóricos” (MARCUS, 1975 In: FREUD, 1905/1975, p. xxiv, grifo do autor).