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Mutações culturais, antropológicas, históricas

5 O HOMEM SEM GRAVIDADE

5.4 Mutações culturais, antropológicas, históricas

Conforme já explicitado, segundo Melman (2008a), estamos lidando com uma mutação que nos faz passar de uma cultura fundada no recalque dos desejos e, portanto, cultura da neurose, a outra que recomenda a livre expressão, o gozo, e promove a perversão. Melman elege o termo mutação cultural para falar dessas mudanças que estamos vivenciando. De forma semelhante, Dany-Robert Dufour – filósofo francês, professor de ciências da educação na universidade Paris VIII – fala sobre uma mutação antropológica e uma mutação histórica em seu livro A arte de reduzir as cabeças, publicado originalmente em 2003, ou seja, no mesmo ano em que Melman publicou O homem sem gravidade. Os dois autores, partindo de lugares diferentes – Melman da psicanálise clínica, e Dufour da filosofia – falam de forma semelhante sobre as mudanças no sujeito contemporâneo e no funcionamento social.

Dufour (2005) corrobora a ideia do surgimento de uma nova economia psíquica levantando a hipótese de que uma mutação histórica na condição humana está se completando diante de nossos olhos, nas nossas sociedades. Segundo ele, essa mutação não é uma simples hipótese teórica, pois é possível identificá-la através de diversos acontecimentos, dentre os quais ele cita: domínio do mercado, dificuldades de subjetivação e de socialização, toxicomania, multiplicação das passagens ao ato, aparecimento do que se chama, corretamente ou não, “os

novos sintomas” (por exemplo, anorexia, bulimia, toxicomania, depressão, crise de pânico...), explosão da delinquência na população jovem, nova violência e novas formas sacrificiais.

Ao invés de falar em transformação, ou mesmo mudança, ambos – Melman e Dufour – escolhem um termo que remete à genética, a mutação sendo qualquer alteração permanente no DNA. Sabemos que, na biologia, uma mutação é algo que acontece como um erro, uma falha, ou um acidente. É, ainda, algo sem volta, permanente. As mutações genéticas, em seres humanos e em animais, são fenômenos que criam algo frequentemente assustador e perturbador, pois a aparência dessas mutações apresenta aspectos muito diferentes e estranhos à norma, ao que estamos acostumados a ver.

No entanto, em relação à mutação cultural, temos mais dificuldade em percebê-la como estranha, justamente por estarmos inseridos nela, pois acompanhamos e participamos ativamente dessas mudanças. A leitura lacaniana de Mário Fleig segue a de Charles Melman. Fleig é um importante interlocutor de Melman no Brasil, tendo inclusive organizado eventos para trazê-lo ao país, assim como publicado livros deste autor através de sua editora (CMC Editora). Em seu livro O desejo perverso, Fleig incluiu uma entrevista dele com Melman realizada em 2007, a respeito da lógica da perversão.

Estamos vivendo a passagem de uma cultura fundada no recalcamento para uma cultura que promove perversão. Já não sabemos muito bem qual seria a diferença entre o objeto que causa o desejo e o objeto de consumo. Por estarmos tão próximos, em razão de nossa perversão cotidiana, da mesma organização psíquica dos sujeitos estruturados perversamente, temos dificuldade de discernir muito bem do que se trata (FLEIG, 2008, p.12).

Interessante pensar que as mutações em biologia, numa perspectiva evolucionista, também estão ligadas à seleção natural, ou seja, algumas mutações que produzem características vantajosas irão permanecer e se multiplicar nas gerações seguintes, enquanto outras características que forem nocivas ou destrutivas desaparecerão em organismos mais fracos. Seguindo a mesma lógica podemos pensar nas mutações culturais, pois as pessoas que não se adaptarem às mudanças tenderão a ficar excluídas dessa nova forma de se fazer laço social.

Ao falar sobre as mudanças sociais, Dufour (2005), em uma nota de rodapé, remete-se a O homem sem gravidade, frisando que a leitura deste mostra que mudanças consideráveis são desde agora observáveis na clínica. Percebemos, então, que as considerações de Dufour – que partem de uma perspectiva filosófica, política e social – encontram relação com as de Melman e

Lebrun, que partem da escuta às queixas de pacientes na clínica psicanalítica. Segundo Melman e Lebrun, “um homem liberal” estaria efetivamente em formação, abalando a antiga economia psíquica. Para Dufour (2005), “[...] a diferença entre a antiga economia psíquica e a nova diria respeito, notadamente, ao novo estatuto do objeto introduzido pelo ultraliberalismo” (p. 15). Ele assinala:

Tendo este livro [O homem sem gravidade] me chegado no momento mesmo em que meu próprio trabalho já estava acabado, não menciono as possíveis ligações entre nossas obras, mas destaco com satisfação (inteiramente teórica) que minha tese filosófica sobre a destruição do antigo sujeito e o advento simultâneo de um novo sujeito já pode encontrar com o que se fundar em observações clínicas precisas (DUFOUR, 2005, p. 15).

Podemos pensar em alguns diferentes matizes de significado para o título do livro O homem sem gravidade. Pode-se considerar a gravidade no sentido da lei universal, à qual todos estamos sujeitos. Falar em um homem sem gravidade seria dizer que o mesmo não está fixo no chão, pode ficar suspenso no ar, sem chão e, portanto, sem uma referência. E é nesse sentido que os autores se referem ao homem contemporâneo no livro, como desprovido de referências, limites, ou seja, sujeito a ficar suspenso no ar, sem base. Torcendo um pouco o significado, temos a ideia de gravidade como algo sério, que é grave, relevante, importante, como a gravidade de uma situação, ou de uma doença, por exemplo. Desta forma, um homem sem gravidade seria também um homem sem responsabilidade e sem importância, ou seja, indiferente a si mesmo e ao mundo.

Ao falar em referências, em ter os pés fixos no chão, podemos nos remeter ao termo em inglês grounded, que significa, de modo geral, “com os pés no chão”, ou “embasado, tendo como base”. No entanto, com os deslizamentos de significado, a palavra adquiriu, no inglês informal, o sentido de “de castigo”. É interessante pensar em como ter os pés fixos no chão pode se configurar como um castigo, pois significa que não se pode fazer o que se quer, ou gozar livremente. Seria um castigo para o homem ter que viver com limites, com os pés no chão, com regras. Quando não existe a gravidade para nos conter, para manter-nos fixos no chão, ficamos livres para (ou sujeitos a) flutuar. Qualquer coisa pode acontecer, podemos ficar suspensos, nos perdermos no céu, no espaço, não temos um chão para o qual precisamos voltar.