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5 O HOMEM SEM GRAVIDADE

5.9 Neurose ou perversão?

Lebrun questiona se a clínica que Melman evoca não poderia se resumir a uma neurose banal, por exemplo, poder-se-ia evocar o obsessivo, ou uma obsessivação maciça da sociedade. No entanto, Melman responde que não pensa que estejamos numa situação de obsessivação maciça da sociedade, pois o obsessivo busca sempre dissimular o desejo, enquanto nos dias de hoje se faz com que ele apareça na cena pública. A neurose obsessiva está organizada em torno da preocupação de anular o sexual. A nova economia psíquica, ao contrário, faz dele uma mercadoria entre outras.

O segundo capítulo do Homem sem Gravidade inicia com um tópico intitulado Uma perversão generalizada e é neste que Lebrun questiona Melman mais especificamente sobre o porquê de ele atribuir a perversão a essa nova economia psíquica que ele identifica. Ele retoma a formulação de Melman, que diz que passamos de uma cultura fundada no recalque e, portanto, na neurose, para uma cultura que promove a perversão. Lebrun então questiona o que ele entenderia, nesse caso, por perversão. Ele responde que o nosso desejo é fundamentalmente perverso na medida em que é organizado por um estado de dependência com relação a um objeto cuja captura imaginária ou real assegura o gozo.

Neste ponto, Melman faz uma observação muito pertinente apontando que: “Se temos dificuldade para compreender as perversões, é porque estamos todos, de fato, normalmente implicados de muito perto por elas” (MELMAN, 2008a, p. 51). Ao falar que estamos normalmente tão implicados na perversão que não conseguimos entendê-la muito bem, Melman aponta que a diferença entre neuróticos e perversos, no que concerne à economia libidinal, diz respeito ao seguinte:

Para o neurótico, todo objeto se apresenta sobre um fundo de ausência, é o que os psicanalistas chamam de castração. Quanto ao perverso, ele vai colocar o acento exclusivamente na captura desse objeto, ele recusa, de certo modo, abandoná-lo periodicamente. E entra, por isso, numa economia que vai mergulhá-lo numa forma de dependência com relação a esse objeto, diferente da que o “normal” conhece, em outras palavras, o neurótico (MELMAN, 2008a, p. 51).

Assim, o que vai determinar a estruturação do sujeito é a sua posição em relação à castração. No entanto, para além da perversão enquanto estrutura, podemos identificar essa

recusa em abandonar periodicamente os objetos no nosso funcionamento social atual. Com um imperativo do gozo, a ideia é que não precisamos passar pela ausência, pela falta, mas que podemos ser sempre supridos. Isso pode se manifestar no consumo de produtos, de objetos, de substâncias, etc.

Lebrun questiona a Melman se, quando ele fala de perversão, quer dizer que estamos nos tornando perversos, que a perversão se apresenta como um ideal. Ele responde que certamente isto está acontecendo, e que a perversão se torna uma norma social. Transpondo para as nossas discussões anteriores, podemos dizer que Melman fala nesse momento da perversão como um sintoma social. Ele não fala da perversão com uma conotação moral, mas como algo que fala pela sociedade, e que está fundada numa economia libidinal particular. Ele diz que a perversão está no princípio das relações sociais, através da forma de se servir do parceiro como um objeto que se descarta quando se avalia que o mesmo é insuficiente.

Para Melman, a sociedade, inevitavelmente, vai ser levada a tratar seus membros desse modo, como objetos descartáveis, pois sua própria constituição dependerá disso. Ele cita o problema do prolongamento da existência, por exemplo, que irá levantar questões diferentes, e que precisarão de uma solução. Com as novas possibilidades de tratamentos de saúde, que prolongam a existência, teremos naturalmente uma quantidade maior de idosos que, segundo Melman, custará caro a toda uma geração. “E esta deverá encontrar os meios, com fachadas honestas, de regular o problema, quer dizer, de descartar o que, após ter servido, se tornou sem uso, fonte de despesas sem contrapartida” (MELMAN, 2008a, p. 54).

Melman (2008a) diz que esse processo que estamos vivendo não depende de ninguém, de nenhuma ideologia. Depende somente dos povos cuja expansão econômica, acelerada, mundializada, tem necessidade, para se nutrir, de ver romperem-se as timidezes, os pudores, as barreiras morais, os interditos. “Isso a fim de criar populações de consumidores, ávidos de gozo perfeito, sem limite, e aditivos. Estamos, doravante, em estado de adição com relação aos objetos” (p.56).

Com esse imperativo de gozo em que vivemos, a nova moral é que cada um tem o direito de satisfazer plenamente o seu gozo, sejam quais forem as modalidades. Melman fala sobre essa questão em outro livro seu, intitulado Novas formas clínicas no início do terceiro milênio:

Não somos mais dependentes de um chefe, mas nos tornamos dependentes dos objetos [...] todos estamos, mais ou menos, em um estado de adicção. Não é preciso ser toxicômano para ser, hoje, dependente de uma série de objetos, cuja presença se tornou para nós indispensável (MELMAN, 2003, p.60).

Sobre essa adicção aos objetos inanimados, Fleig (2008) diz que: “A produção do inanimado e a instrumentalização são operações correlatas na estrutura do desejo perverso e encontram no paradigma da ciência moderna as condições ideais para sua efetivação” (p.113). É a partir da modernidade que se começa a buscar uma objetivação universalizante através do discurso da ciência, da linguagem científica, o que subverte não só o próprio campo da ciência, mas também todo o campo social. Segundo Fleig, é nessa perspectiva que se pode situar a passagem do predomínio do discurso religioso para o predomínio do discurso da ciência como produtor de uma subversão no social, instaurando novas formas de laço social e novas patologias. E essas novas patologias se organizam em torno de um eixo:

A progressiva desimplicação subjetiva do indivíduo moderno, que se estende desde as formas de anonimato (individual e grupal, como as associações econômicas e políticas) até os modos de desresponsabilização do social (seu grupo, sua nação, sua língua, sua cultura, etc.) e de si mesmo (FLEIG, 2008, pp. 51-52).

Na entrevista à revista ISTOÉ, pergunta-se como Melman descreveria o indivíduo nessa nova economia psíquica. Ele responde que: “A imprensa e a mídia substituíram as fontes de sabedoria de outrora. Daí resulta um indivíduo manipulável e manipulado. Suas escolhas, opções e comportamento de consumidor é que organizam seu mundo”. Retomando as críticas ao consumismo feitas pelos personagens de Clube da Luta, destacamos uma citação de Tyler Durden no filme, que diz: “As coisas que você possui acabam te possuindo”.

O personagem Tyler, a todo o momento, denuncia e critica essa característica contemporânea, do valor do homem estar no quanto ele pode consumir. E o consumo não só valoriza, mas define os sujeitos. O narrador do filme, no início, já revela que possui um “instinto de fazer ninho”, ou seja, tenta deixar seu lar o mais confortável e prático possível, através das novidades apresentadas nos catálogos de móveis e bens de consumo que costuma comprar. Num momento do filme, enquanto olha esses catálogos, ele se pergunta: “Que tipo de louça me define como pessoa?”. Enquanto tempos atrás o valor do homem estava em quanto ele podia produzir, hoje se refere ao quanto ele pode consumir.

Podemos pensar que estaríamos vivendo em uma época de mais passividade, embora muitas vezes pensemos o contrário, já que identificamos facilmente essa grande liberdade de que fala Melman. Enquanto éramos reconhecidos pelo que produzíamos, o ato de produzir implicava uma necessidade de postura mais ativa, enquanto consumir sugere certa passividade, algo do tipo: “Deem-me, mostrem-me o que eu preciso e o que eu desejo, e eu irei consumi-lo de bom grado”.

No Homem sem Gravidade, Melman fala sobre essa “passividade” que verificamos contemporaneamente. Embora não use a palavra passividade, a maneira que ele descreve a relação do sujeito moderno com o conforto, com a utilização dos objetos para que se faça o mínimo de esforço possível, sugere que ele fala também de uma postura passiva. Ele diz que a promoção moderna do conforto, encorajada pela ciência e potencializada pela economia de mercado, é uma defesa diante do desejo, pois é ele [o desejo] que desarruma e cria o maior desconforto. Melman assinala o desejo como um grande atormentador que não deixa descansar, obriga a trabalhar, a correr, a deslocar, a desobedecer, a se esforçar, etc. Em suma, a viver. “Quanto ao conforto, ele é partidário da sedação, da imobilidade, da imutabilidade e substitui a verticalidade pelo decúbito num silêncio que prefigura a morte no lugar do clamor da existência” (MELMAN, 2008a, p. 60).

A partir desse comentário de Melman, podemos ensaiar uma interpretação possível para alguns sintomas sociais contemporâneos, como os que já abordamos no capítulo 2 desta dissertação: a toxicomania e a depressão. Tanto a “dispensa da existência” (Ibid, p. 59) proporcionada pelo uso de drogas, quanto o estado depressivo como é comumente retratado (sonolência, marasmo, vontade de morrer, de voltar ao nada), podem ser interpretados como tentativas de abolir o desejo, ou formas de tentar lidar com o desejo, mas calando-o, buscando conforto, imobilidade.

Há uma tendência humana – Freud já a descreveu em sua teorização sobre a pulsão de morte – do retorno ao nada, ao silêncio, ao conforto, à imutabilidade. Mudanças geralmente são difíceis para os seres humanos. Vartzbed (2012) relata que Freud concebia a mudança no âmbito do tratamento analítico através do seu oposto, ou seja, as resistências às mudanças, a vontade de status quo. Tomamos então um exemplo do cinema que o autor utiliza, para exemplificar esta questão. O exemplo se refere a Woody Allen que, com o seu humor típico, diz através de sua personagem no filme Neblina e sombras: “Tudo está constantemente em movimento, não admira que eu fique nauseado”. Vartzbed conclui dizendo que “O desconhecido e o luto associados à mudança raramente são recebidos de bom grado. Levado

pela correnteza do devir, o ser humano busca uma ilha de permanência, resiste, agarra-se à boia de seu sintoma” (2012, p. 25).

Ainda que esta seja uma tendência geral, talvez estejamos lidando com muitas manifestações diferentes – e crescentes – dessa sedação. Embora identifiquemos um mundo que vive cada vez mais acelerado, a sedação ou a defesa contra o desejo aparece na forma de patologias, como a depressão e a toxicomania, por exemplo.

Ainda em relação às mudanças contemporâneas, na entrevista à ISTOÉ, perguntam-se quais são os aspectos positivos e negativos da nova economia psíquica. Melman então fala sobre a formidável liberdade, mas apontando que ela é estéril para o pensamento, e acrescenta que nunca se pensou tão pouco. Ele diz: “O trabalho do pensamento é comandado por aquilo que produz obstáculo. Mas nada mais representa obstáculo, não sabemos o que há para pensar. O sujeito não é mais dividido, não se interroga sobre sua própria existência”.

Algumas mudanças são mais gradativas, levam mais tempo, mas o que verificamos hoje são mudanças muito rápidas e que acabam modificando completamente a maneira que nos relacionamos com os objetos e com as pessoas. Podemos citar um exemplo banal, mas vivenciado pela maioria das pessoas, que é em relação à música, do disco de vinil, à fita cassete, ao cd, ao mp3. Até alguns anos atrás, tínhamos que esperar um disco ser lançado para comprá-lo ou, se não tivéssemos acesso à compra, tínhamos que esperar a música que gostávamos passar no rádio para gravar em uma fita cassete. Hoje em dia podemos baixar um álbum inteiro, ou uma discografia completa na internet em poucos minutos. Acessamos hoje, em minutos, algo que demorou anos para ser construído, gravado, lançado, etc.

Tempos atrás, se quiséssemos ter acesso à letra de uma música em outro idioma, ou traduzi-la, precisávamos escutar várias vezes, voltar, tocar novamente, pegar dicionários, checar palavras. Atualmente, em menos de um minuto, temos acesso na internet à letra já traduzida da música. Enquanto ganhamos de um lado – poupa-se tempo e esforço – perdemos do outro, pois, como lembra Melman, o trabalho do pensamento fica estéril, já que não existe mais obstáculo. Ao facilitar um trabalho que antes exigia muito do pensamento, teremos efeitos também no processo de aprendizagem.

Essa parece ser de fato uma forte característica da nova economia psíquica: a necessidade de poupar tempo, para poder fazer outras (mais) coisas. A relação com o tempo se torna então diferente. O problema é que não se tem tempo para dar conta disso tudo, o que acaba gerando também uma ansiedade. O mesmo acontece com livros, já que podemos baixar

livros inteiros e textos rapidamente – o que é maravilhoso – mas com isso temos centenas de textos no computador que nunca lemos, e nem iremos ler. Esses exemplos demonstram também uma mudança na maneira de nos relacionarmos com as pessoas, já que estamos acostumados ao acesso imediato aos objetos, o que cria uma espécie de impaciência generalizada (já que não somos mais acostumados a esperar por nada), que parece se refletir também nos inúmeros casos de transtornos de ansiedade que são diagnosticados atualmente. É um dos preços que pagamos pelo avanço da tecnologia.

Seguindo com a entrevista à ISTOÉ, surge a pergunta se, para Melman, a nova economia psíquica estaria criando também um novo fenômeno linguístico, ou seja, “estaria surgindo uma nova língua?”. Melman responde que: “Os jovens se comunicam por torpedos (mensagens eletrônicas via celular) com uma nova escrita, que tende ao desaparecimento das vogais. O privilégio é das consoantes, com uma ortografia completamente livre, fundada na ideia de que o receptor é incapaz de decifrar minha escrita. É uma escrita que inventa cada frase em particular. Acredito que teremos em breve romances escritos com essa nova linguagem. Os efeitos disso ainda não são previsíveis, mas trata-se de um processo divertido e interessante”.