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3 TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE

3.7 O primeiro ensaio

3.7.2 As perversões

É no tópico sobre Desvios com respeito ao alvo sexual que aparece a primeira descrição das perversões na obra em questão. Nos Desvios com respeito ao objeto sexual, Freud ainda não fala em perversão. Sobre esses desvios da pulsão sexual, Freud comenta que se poderia pensar em atribuí-los à loucura, mas isso não seria apropriado, pois, segundo sua experiência, não se observam entre os loucos quaisquer perturbações da pulsão sexual diferentes das encontradas entre os sadios. Os loucos apenas exibem tais desvios em grau intensificado, ou então, elevado a uma prática exclusiva e substituindo a satisfação sexual normal. Freud considerou curiosa a relação entre as variações sexuais e a escala que vai da saúde à perturbação mental.

Freud considerou como alvo sexual normal a união dos genitais no coito, que leva à descarga da tensão sexual e à extinção temporária da pulsão sexual. “Todavia, mesmo no processo sexual mais normal reconhecem-se os rudimentos daquilo que, se desenvolvido, levaria às aberrações descritas como perversões” (FREUD, 1905/1996, p.141, grifo do autor). Esta é a primeira aparição da palavra perversões nos Três Ensaios. Ele continua:

É que certas relações intermediárias com o objeto sexual (a caminho do coito), tais como apalpá-lo e contemplá-lo, são reconhecidas como alvos sexuais preliminares. Essas atividades, de um lado, trazem prazer em si mesmas, e de outro, intensificam a excitação que deve perdurar até que se alcance o alvo sexual definitivo (Ibid, p. 141).

Assim, é possível apontar fatores que permitem ligar as perversões à vida sexual normal e que também são aplicáveis à classificação delas. Freud classifica as perversões como: (a) transgressões anatômicas quanto às regiões do corpo destinadas à união sexual, ou (b) demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual, que normalmente seriam atravessadas com rapidez a caminho do alvo sexual final.

Neste momento retomamos o uso do termo escala, que já apontamos como uma noção com a qual Freud trabalha. Anteriormente tomamos escala com o sentido de graus, níveis, variações. Ao falar sobre “demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual” (Ibid, p. 142), podemos desdobrar o termo, e evocar um outro sentido da palavra escala. Dentre algumas definições, destacamos: “Ação de deter-se para abastecer ou para desembarcar e embarcar passageiros: fazer escala” 8. Esta definição se relaciona com essas demoras ou paradas de que fala Freud em relação ao alcance do alvo sexual. É como se a pulsão sexual fizesse uma escala, interrompesse, ou desse uma parada, no seu curso, ao invés de seguir direto o seu curso normal, rumo ao coito.

A definição que Freud oferece das perversões, já nessa parte, parece seguir o sentido etimológico da palavra. Segundo Cunha (2010), perversão vem do latim pervertere. Esta palavra tem uma conotação de “levar ao caminho errado, corromper”, de per-, “fora”, e vertere, “virar”. Deste modo, perverter o alvo sexual, seria virar para fora, seguir outro caminho, que foge à norma, que se desvia do que seria o rumo normal. Embora Freud se refira à perversão como um desvio da norma, uma saída do rumo, uma virada, ele não parece adotar uma conotação moral. Ele enquadra a perversão como um desvio em relação ao alvo sexual normal, que seria, para ele, o genital.

Freud aponta o asco como uma das forças que levam à restrição do alvo sexual, no entanto, o asco pode ser vencido pela libido. Ele diz que o uso da boca como órgão sexual é considerado como perversão quando os lábios de uma pessoa entram em contato com a genitália de outra, mas não quando ambas colocam em contato a mucosa labial. Para Freud, nesta exceção residiria o ponto de ligação com o normal. “Quem, por considerá-las perversões, detesta as outras práticas, certamente usuais desde os primórdios da humanidade, cede nisso a um claro sentimento de asco que o resguarda de aceitar tal alvo sexual” (FREUD, 1905/1996, p.143, grifo do autor).

Sobre esta citação de Freud, Marcus assinala que geralmente se reconhece as perversões a partir de, e juntamente com um sentimento de asco em relação a elas. Em certa medida, para Freud, os limites desse asco podem ser puramente convencionais e socialmente induzidos, o que acabou levando a uma restrição do alvo sexual. No entanto, Freud acrescenta, “ironicamente”, segundo Marcus (1975 In FREUD, 1905/1975), que a pulsão sexual, com a sua força, gosta de passar por cima deste asco.

      

No inglês, no lugar de gostar, lê-se enjoy. Enjoy tem um sentido mais amplo e mais enfático do que o gostar em português, pois se refere à realmente desfrutar de algo, tirar prazer de, curtir, gozar, divertir-se. Ao falar em gostar (e enjoy), Freud toma a pulsão como uma força que tem uma espécie de “vida própria”, ou seja, não depende do controle do sujeito, segue seu próprio curso, tanto que parece até divertir-se com isso. Este aspecto se relaciona com o que ele afirma sobre a sexualidade ser o “ponto fraco” da humanidade, ou seja, a força sobre a qual não se consegue ter controle. Em outras palavras, é algo que se encontra, em sua grande parte, inconsciente. E suas manifestações também são inconscientes. Para Freud, a histeria é uma grande prova dessa tese.

Se fôssemos pensar num sentido quantitativo e hierárquico, as afirmações de Freud sugerem que, embora as duas forças – do asco e da libido – sejam muito poderosas e determinantes para os caminhos da pulsão (e para as manifestações da sexualidade), existiria uma superioridade da libido em relação ao asco, já que aquela pode se sobrepor a este. Na versão em inglês, a palavra para asco é disgust. Dentre muitas traduções, além de asco, disgust pode ser traduzido como repulsa. Ou seja, algo que pulsa novamente, re-pulsa. Mas pulsa novamente para outra direção, no caso a direção contrária à da libido.