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Foto 55 Ensaio fotográfico “Todos os filhotes merecem respeito”

2.3 A CIÊNCIA DO BEM-ESTAR ANIMAL

A visão antropocêntrica e os preconceitos acerca da irracionalidade dos animais predominaram em diversos momentos da história do pensamento humano. Ainda hoje está presente em observações corriqueiras, ou mesmo nos embates jurídicos, que em muitos casos impedem que os animais sejam considerados sujeitos de direitos. Da mesma forma, diversos experimentos científicos insistem em negar as necessidades ou a natureza intrínseca dos animais, submetendo-os a toda sorte de sofrimentos, desconsiderando métodos alternativos desenvolvidos para estudos e pesquisas.

8 A senciência, capacidade de sentir dos animais já foi comprovada cientificamente nos vertebrados e

em alguns moluscos. A ciência provou que estes animais têm sentimentos antes considerados exclusivos dos seres humanos, como alegria, sofrimento, prazer, dor, medo, ansiedade, entre outros. Sobre este conceito ver o documentário “Animais Seres Sencientes” produzido pela World Society for the Protection of Animals (2009).

A despeito dessa trajetória, a forma como os animais são tratados mereceu atenção de diferentes filósofos, correntes de pensamento e, mais recentemente, da opinião pública, face ao apelo midiático crescente em relação às questões ambientais, ou mesmo graças ao trabalho intenso das instituições de proteção animal.

Fazendo um recorte no tempo, a preocupação com o bem-estar animal veio fortemente após a segunda guerra mundial. Isto porque, para dar conta de suprir a demanda por alimentos na Europa, os governantes incentivaram e fomentaram o desenvolvimento da produção agropecuária intensiva. Uma iniciativa que aumentou grandemente o número de animais criados para produção, em sistemas que comprometeram o seu bem-estar.

No livro “Primavera Silenciosa”, publicado em 1962 pela americana Rachel L. Carson, a autora fez uma crítica contundente ao modelo de desenvolvimento, questionando os efeitos nocivos dos produtos químicos para o meio ambiente (CARSON, 2010). Na seara da produção animal outro livro, intitulado Animal

Machines, de autoria da inglesa Ruth Harrison, foi publicado em 1964 com grande

repercussão e levantou vários aspectos sobre os modos de produção da pecuária industrial (HARRISON, 1964).

A denúncia de Harrison era de que o foco na produção intensiva e, portanto, no lucro, levou os produtores a não observância das condições de produção, ou seja, as necessidades dos animais. Com a repercussão do livro junto à opinião pública, desencadeando protestos inclusive, o Ministério da Agricultura do Reino Unido determinou que fosse feito um relatório sobre as condições em que se desenvolvia a produção animal.

O relatório do Comitê Brambell (apud SOUZA, 2006), assim chamado em função do nome do seu coordenador, foi publicado em 1965 e fez história, uma vez que trouxe à baila conceitos da ordem da senciência animal, ou seja, pela primeira vez, considerou-se que os animais têm emoções.

Assim, a primeira definição conhecida de bem-estar animal é encontrada no relatório do Comitê Brambell, do Reino Unido (SOUZA, 2006). Este conceito inclui tanto a saúde física quanto a saúde mental e comportamental de um animal (WORLD SOCIETY FOR THE PROTECTION OF ANIMALS, 2002).

Portanto, uma das grandes contribuições do relatório Brambell (SOUZA, 2006) foi o desenvolvimento da ciência do bem-estar animal e a elaboração de

recomendações que foram resumidas numa série de princípios, conhecidos como “as cinco liberdades”. São elas: os animais devem ser livres de fome e sede, livres de dor, lesões e doenças, livres de desconforto, livres do medo e de estresse e livres para expressar seu comportamento natural.

Estes cinco princípios funcionam como uma lista de checagem, que passou a ser aplicada não apenas aos animais de produção, como também a todas as situações nas quais se deve analisar o bem-estar animal. Com base nas cinco liberdades é possível aferir qualitativamente o estado de bem-estar dos animais, utilizando parâmetros que vão de “muito bom” a “muito pobre”.

As consequências de um Estado pobre de bem-estar são indicadoras de baixa qualidade de vida, resultando em sofrimento animal.

Entre as definições de bem-estar animal, a mais utilizada é: estado de um indivíduo durante suas tentativas de se ajustar ao seu ambiente (BROOM; JOHNSON, 1999 apud SOUZA, 2006).

A ciência do bem-estar animal é complexa e multidisciplinar, uma vez que requer análises da ordem da saúde animal, etologia (comportamento), economia, fisiologia, entre outras. Além disso, a avaliação do bem-estar animal demanda uma série de metodologias e ferramentas baseadas na observação e avaliação científica dos estados de saúde, de testes dos padrões de comportamento e das circunstâncias ambientais.

Cabe destacar que essa ciência difere da discussão sobre os “direitos dos animais”. Enquanto o bem-estar animal baseia-se em procedimentos científicos para levantar dados e responder questões sobre eventos e rotina de vida dos animais, o debate sobre os seus direitos está na esfera da discussão ideológica. Entretanto, vale lembrar que a ciência não é neutra. Ao cabo do rigor e da objetividade científica também existe a avaliação ética.

Quando o bem-estar de um animal é discutido em diferentes situações ou avaliado em situações específicas, ele deve ser avaliado de uma forma objetiva. A avaliação do bem-estar deve estar separada de qualquer julgamento ético, mas uma vez que a avaliação é completa, deve fornecer informação que pode ser usada para se tomar decisões éticas a respeito de uma situação. Um critério essencial para a definição de bem-estar animal é que deve se referir às características do animal individual (BROOM, 1999).

Outro conceito importante para a ciência do bem-estar animal é o da senciência, que é a capacidade de sofrer ou sentir prazer. Enquadram-se nesta categoria, além dos humanos, todos os animais vertebrados e alguns invertebrados.

Este conceito está relacionado aos estados mentais dos animais, experimentados a partir de respostas aos estímulos.

Apesar das discussões sobre a senciência abordarem aspectos como a cognição complexa e a autoconsciência, estes fatores não são os mais relevantes para a identificação dos animais mais afetados pelos cuidados ou maus-tratos, assim como o é o sofrimento. Os tipos de sofrimento incluem fome, sede, desconforto, dor, frustração, medo e ansiedade, tal como descritos nas “cinco liberdades”. A maior parte da informação científica disponível é sobre a fome, sede e dor, e revela que todos os vertebrados e alguns invertebrados são semelhantes aos seres humanos e a outros mamíferos nas suas respostas à falta de alimento e água, e a estímulos desagradáveis. Eles possuem receptores nervosos e funções idênticas. Este fato constitui a prova de que estes animais são sencientes e de que os seus processos mentais são comparáveis, pelo menos em alguns aspectos, aos dos seres humanos e de outros mamíferos 9.

Diversos pesquisadores deixaram por terra o mito da irracionalidade animal ao demonstrar que a consciência e os sentimentos não são atributos exclusivos do ser humano. É o caso do biólogo Donald R. Griffin, da Universidade de Harvard, autor do livro “Animal minds: Beyond Cognition to Consciousness” (1992) que sustenta, com base nos seus estudos, que os comportamentos dos animais de armazenar provisões, de táticas predatórias, de construção de artefatos e de uso de ferramentas, associam-se à capacidade cognitiva dos animais para realizá-los GRIFFIN, 2001).

No Brasil, a professora Irvênia Prada, médica veterinária e docente do curso de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnica, da USP, aborda as contribuições da Neurociência para argumentar sobre a senciência animal. Com base na análise do modelo de construção do sistema nervoso (cérebro, cerebelo e medula espinhal), Prada (1997) constata que ele está em contínua evolução, não apenas nos animais como no próprio ser humano.

Na Neurociência já está estabelecido que entre o cérebro dos animais e o do ser humano, as diferenças são apenas de natureza quantitativa e não qualitativa. [...]. As conclusões a que cheguei indicam que o modelo básico de organização do sistema nervoso humano (e particularmente do cérebro) e dos animais é o mesmo, configurando dados de muitos outros autores que

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Notas da publicação “O bem-estar animal é importante para os animais, as pessoas e o meio ambiente – a Declaração Universal de Bem-Estar Animal” (WORLD SOCIETY FOR THE PROTECTION OF ANIMALS, 2008).

me precederam. Indicam também que jamais se conseguiu estabelecer um “rubicão” entre o cérebro dos animais e o do homem (PRADA,1997).

Ao considerar os aspectos relativos aos animais de tração, é possível perceber que as implicações dos conceitos de senciência e bem-estar animal indicam que há problemas sérios a serem contornados em relação a esses animais. Todavia, o assunto será mais profundamente abordado em “Resultados e Discussão”, assim como as demais dimensões afetas ao tema e já citadas em algumas passagens.