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Continuemos a observar os erros do nosso tempo, sobretudo com respeito à orientação do cognoscível moderno, pois que a nossa ciência, tão vasta e pro- funda, parece carecer exatamente do senso de orientação.

A carência de síntese é um dos males do nosso atual saber. A análise, em- bora se tenha demonstrado hoje tão frutífera do ponto de vista utilitário, arris- ca-se a naufragar, se não for completada por uma visão sintética que a disci- pline e organize, conduzindo-a para metas mais elevadas. São ações opostas, que, no entanto, podem completar-se seguidamente, de modo que a ciência moderna, de escopos prevalentemente práticos e utilitários, pode casar-se com uma orientação geral, que lhe falta e não lhe pode advir senão de uma visão sintética unitária, em que tudo se reduz à unidade, tudo está conexo, formando um todo compacto, e não pulverizado nas infinitas veredas do particular.

Voltemos ao palpitante problema da medicina. Onde se estuda a vida é necessário subir às fontes dela, que são interiores, estão no espírito e são en- contradas ao se caminhar para o centro conceitual do universo. A medicina moderna seguiu a direção geral da nossa ciência e, por isso, fechou-se na peri- feria, na forma. É natural que, carregada de infinitas noções, ela tenda à dis- persão no particular, por falta da orientação que só um conceito unitário pode dar-lhe. O grande Hipócrates e os médicos intuitivos da Antiguidade haviam concebido esta unidade e dessa maneira curavam. Ainda que a ciência nos tenha fornecido um sem-número de meios de indagação e elementos de conhe- cimento, é necessário que tornemos, mas agora bem melhor providos, aos mé- todos daqueles grandes vultos. Surgirá assim a nova medicina, que, sem ser empírica como a antiga, por ter aprendido a observar objetivamente, será, co- mo a antiga, orientada em harmonia com todas as leis da vida, e que, ao invés de erigir-se contra estas leis para submetê-las e dominá-las, irá aceitá-las e segui-las, vendo nelas uma profunda sabedoria. Haverá quem diga que isto não é medicina, mas sim filosofia da medicina. Pois bem, acima do conhecimento científico, é imprescindível colocar essa filosofia, se não quisermos acabar em uma torre de Babel de especialistas que não se conhecem mais reciprocamente por se haverem afastado demasiado da origem comum de todas as coisas. Este é o fim que nos espera se não nos apressarmos a formar uma ciência de orien- tação, que dê coesão e consistência e, com isso, uma direção ao conhecimento científico divergente da atualidade.

Com todo o respeito que merecem as grandes conquistas já realizadas, sen- te-se a necessidade de enquadrá-las e coordená-las em um sistema único e uni- versal que nos forneça a chave dos esquemas fenomênicos, chave com que poderemos melhor desvendá-los. Sente-se a necessidade de completar a medi- cina da matéria com uma medicina global, que inclua também o espírito e leve em consideração, além do organismo físico, também aquela outra parte tão importante do ser humano, ainda vagamente exprimida com o simples termo religioso de alma. Uma medicina, pois, total, mais completa e mais harmoni- osa, enquadrada no funcionamento orgânico do universo, e não isolada dele e a ele rebelde; uma medicina que não pretenda criar o saber nem fazer leis, mas cuja maior sabedoria consista em pôr-se de acordo com as tão sabias leis já existentes.

Como se vê, não se trata de inovações particulares, mas de referências à formação da mente atual, de que tudo derivou. Hoje se fabricam médicos em serie, nas universidades, em que se aplica, em qualquer cérebro, um verniz de cultura, aplicação que, reforçada por um diploma, transforma-se em rendimen- tos e credencia a atuação profissional, autorizando assim o funcionamento da máquina cerebral confeccionada dessa maneira. A verdadeira medicina é, no entanto, um dote pessoal, uma vocação, um sacerdócio; é o produto de quali- dades biológicas intrínsecas, que não podem ser improvisadas nem adquiridas apenas pela erudição. Não obstante, em nosso mundo, hoje se tende a fazer tudo por via mecânica, enquanto o que vale é primeiramente o homem, o ma- terial com o qual, depois, tudo o mais se faz e sem o qual nada se realiza. As- sim, pois, para fazer o médico, é necessário, fato inacreditável, fazer o homem e, neste caso, mais do que apenas um outro, um homem de tipo biológico ain- da muito raro na Terra, isto é, o homem orientado e intuitivo, que tenha com- preendido todo o universo, ao menos nas grandes linhas diretivas, e que tenha alcançado, por evolução, qualidades de intuição e síntese que lhe permitam enquadrar as coisas com respeito ao todo, para depois penetrar-lhes o signifi- cado e, assim, compreender o estudo patológico no caso particular que ele de- ve tratar. É necessário o homem que, por evolução, seja mais sensível que o atual, capaz assim de adotar na indagação o novo método do futuro:o método intuitivo. Esse homem, hoje, é esporádico, como que uma antecipação evoluti- va. Os métodos da conquista do conhecimento foram antigamente dedutivos, procedentes de edificações lógicas e racionais. Depois surgiu o método induti- vo e experimental, e parecia que não existiam outros. Hoje, por evolução do

instrumento homem, deve nascer o método intuitivo, que é a penetração do fenômeno por via de sintonização do dinamismo vibratório (comprimento de onda, frequência, potencial etc.) do sistema de forças do eu, com o dinamismo vibratório (idem...) do sistema de forças representado pelo próprio fenômeno. Mas não é aqui que se pode desenvolver tais conceitos.

A nossa medicina é um setor da nossa ciência, que é uma das manifestações do tipo de correntes do pensamento dominante em nossa fase histórica. Em cada século, o homem pensa de maneira diversa e assim se orienta. Tudo, pois, por ser progressivo, é relativo. Hoje, a orientação materialista invadiu todas as coisas. Daí a supremacia da forma sobre a substância, o ver, o existir, o traba- lhar na periferia, e não na intimidade. O método objetivo da observação e da experimentação é um método periférico, que dos efeitos sobe, por hipóteses e depois por teorias, às causas, até estabelecer as leis. Este é o método que está em voga, porque é sensório, mecânico, e pode prescindir de um particular tipo evoluído de homem, hoje escasso, e ser aplicado a todos ou quase todos. Em medicina também, isto significa uma ciência dos efeitos, e não das causas. É o mesmo que possuir um rio na desembocadura, ignorando o que se passa nas fontes e no percurso. O que sucede nas outras realidades que estão além da realidade material, a ciência o ignora.

A hodierna orientação da medicina espalha nesse campo a psicologia luci- feriana da rebelião, hoje dominante em razão de nossa fase biológica involuí- da, em que a seleção se opera ainda, como no animal, através da força. É uma psicologia de luta e de agressão, em que o eu afronta, armado de meios de in- dagação, o fenômeno como se fosse um inimigo. É uma atitude egocêntrica e utilitarista, que tudo pretende sujeitar a si mesmo, pondo-se como centro e lei do universo. Ora, este já possui uma lei sábia e perfeita, e toda a sabedoria está em segui-la, em harmonizar-se com ela, pois que ela exprime o pensamento de Deus. Só através dessa concórdia pode derivar a felicidade espiritual e também a saúde física. Esta vontade de se erigir em lei própria, contra a ordem já esta- belecida das coisas, esta elevação em anti-Lei, substituindo à Lei a própria vontade, é patológica, assemelhando-se à indisciplinada multiplicação celular do câncer em um organismo são, e não pode produzir senão mal e dor. Cami- nha-se, assim, seguindo um erro contínuo, que é de todo o pensamento moder- no em todos os campos, pensamento que, embora seja perspicaz, por ser inver- tido não pode criar o bem e a alegria senão negativamente, ou seja, como mal e dor. E, assim, enquanto parece que se progride para a ascensão, verifica-se

que isto se dá somente na forma e que, na realidade, trata-se de um engano, porque efetivamente, na substância, anda-se para trás, em descida involutiva, para a barbárie e para a destruição. Eis no que acaba a nossa ciência, por ser mal orientada e dirigida! Por conseguinte, cogitar da sua filosofia, como ciên- cia de orientação, não é coisa ociosa e inútil.

De tudo isto nasce uma medicina aparentemente maravilhosa, mas de resul- tados danosos, porque não cria saúde, mas sim moléstia. Em face da sua dire- ção, ela representa uma intervenção violenta, que, em vez de coadjuvar, viola a sabedoria divina, com o resultado de transtornar a ordem, ao invés de facilitar- lhe as manifestações. Semeia, desta maneira, os precedentes causais de uma série de sempre novas formas patológicas amorfas, que cada vez mais nos atormentarão e aos nossos descendentes. Esta medicina de domador torna-se um elemento a mais na degeneração das raças. Mas isto não nos surpreende. Tudo hoje se encontra na via da descida involutiva, tendendo assim para o mal, a dor, a destruição e a morte. O pensamento atual é um bulbo que a vida quer isolar para extinguir. Tudo – a arte, a música, a literatura, a filosofia, a política, a agricultura de exploração intensiva por meios químicos, a técnica e a ciência utilitária, o homem como pensamento, como organismo, como ação, as suas máquinas e todo o seu poder – tudo caminha nesta vida. Assim tam- bém a medicina, segundo o ritmo de nosso tempo. O sistema é por toda parte o mesmo: triunfos aparentes, promessas falazes, vantagens vistosas e imediatas e “aprés moi le deluge”28.

Toda a nossa cultura é hoje divergente do centro, da unidade e, por conse- guinte, desagregante, ao invés de convergente para a unidade, isto é, construti- va. Afastamo-nos, assim, das fontes da vida, que tudo alimentam, e permane- cemos isolados e perdidos na especialização. É uma corrida louca de todo o pensamento moderno. A humanidade, assim orientada por séculos de materia- lismo, não pode mais parar e, por inércia, é fatal que ela só poderá conter-se quando colidir com a resistência das invioláveis leis da vida, constituídas por imponderáveis dinamismos de ferro. Choque apocalíptico, mas necessário. Quando esta humanidade tresloucada, que avança estupidamente, em massa e por imitação, acreditando que a lei e a verdade se fazem somente com o núme- ro, quebrar a cabeça, então talvez compreenderá. E, assim, as leis da vida a salvarão necessariamente.

O indivíduo não vê senão um meio de salvação: isolar-se em todos os cam- pos dessa corrente, libertando-se o mais possível de todos os produtos de uma civilização transtornada. Resistência passiva em vez de misturar-se ao reba- nho. Em todos os campos: cultural, político, religioso, econômico, apenas do- mina o interesse, pelo qual a mentalidade moderna conduz à formação de gru- pos para a exploração do próximo. Quem defende o indivíduo? Ninguém, e é lógico. Ele acredita em varias formas de defesa e na justiça, mas é necessário que aprenda por si a defender-se das infinitas mentiras humanas dominantes por todos os lados. No entanto, com que beata incoerência as massas se dei- xam engazopar por todas as formas de propaganda!

Mesmo a terapêutica, na prática, foi transtornada por esta corrente. É a massa que hoje faz tudo e, com a sua ignorância e psicologia, estabelece o que se deve produzir para que possa ser vendido. É a procura que cria a oferta. O médico que quisesse opor-se a essa corrente seria esmagado. A culpa é do pú- blico. Mas quando foi que o povo, soberano ou não, compreendeu o que quer que seja? Calculou-se que as especialidades farmacêuticas produzidas só nas nações europeias são em número de mais ou menos de 50.000. Será isto ciên- cia, indústria ou empirismo? O que decidiu é a propaganda, antigamente con- siderada charlatanismo. Ela, com o objetivo de vender, procura embair os par- voeirões com a necessidade de tomar injeções e a ingerir produtos inúteis, quando não prejudiciais, prometendo milagres. Cria, desta forma, necessidades artificiais que se transformam em hábitos, para estabilizar o próprio comércio. Isto constitui um mal, não só para o bolso, mas também para a saúde. Os me- dicamentos fundamentais, indispensáveis, são pouquíssimos. Serão 50, no má- ximo 100. E por que tão grande cópia de especialidades farmacêuticas? A ra- zão está no interesse em produzir o que a ingenuidade procura adquirir. E, assim, vê-se que, no mundo, quase tudo é mentira. Mas tal é a necessidade de confiança, a preguiça de não pensar por si mesmo e a pretensão de ser servido, que parece impossível a extinção da nobre raça dos simplórios e seu renasci- mento com o homem.

É bastante atentar para o tempo que duram o preço e a forma desses produ- tos. Reina entre eles uma moda tão mutável e caprichosa como a feminina. O valor preponderante é dado pela novidade. Não significa isto que se procede por tentativas? E o que é isto senão empirismo? E o corpo humano não é sem- pre o mesmo? No entanto as mesmas moléstias, hoje, tratam-se com o branco e, amanhã, com o negro. O medicamento, de início, faz milagres. Depois, pa-

rece que se exaure a sua carga de poder sugestivo conferida pela novidade, o saber da descoberta, o nome estranho e exótico, então deixa de curar e cai em descrédito. Por quê?

Como se vê, o fator psicológico desempenha uma função importante na te- rapêutica; assim, em grande parte, não é o remédio com os seus elementos químicos que curam, mas é “la fois qui guérit”29 (Charcot). É certo que, hoje, pretende-se fabricar esta fé com a psicoterapia, psicanálise e princípios afins. Mas a fé faz parte de movimentos de força no organismo espiritual, obedecen- do a leis próprias, que não permitem obtê-la facilmente, à vontade, sob a ilusão de que se poderia conseguir isto pela sugestão. Ela se verifica quando quer, e a vida sabe proteger-se. A fé salutar, que cura, não se fabrica em série, como os medicamentos, mas faz parte da “vis sanatrix naturae”30, constituindo um estado de dinamismo espiritual que se processa quando as leis protetoras da vida o que- rem. Esta fé não se comunica mecanicamente, por fórmulas estudadas, não sen- tidas nem vividas por quem as quer impor. Deve-se dar muito mais, a própria vida, a si mesmo, e, para dar, deve-se possuir algo como força biológica. Mais do que nunca, aqui, o médico deveria ser um sacerdote ou um taumaturgo.

A atual patologia e terapêutica limita-se ao corpo e ignora em grande parte o espírito, de que, sobretudo, o homem é feito. Cura-se este como se procede- ria com um animal qualquer. Ora, o princípio genético da vida está no seu ín- timo, onde, por conseguinte, encontra-se também o princípio regenerador e reparador. Por que o tempo cura? Por que? Porque é no tempo que se desen- volve o ritmo do transformismo universal; porque, no tempo, a divina potência que está na intimidade de todas as coisas, animando-as e guiando-as, pode aparecer e manifestar a sua vontade de bem, o seu inexaurível poder curador. Desta maneira, esta potência, através do canal de sua manifestação, que é a forma, pode chegar a agir terapeuticamente até à periferia material, que o mé- dico vê. As causas estão todas na profundeza, no espírito, de que seria necessá- rio, pois, conhecer a história, a evolução, a patologia. Os traumas físicos são antes traumas espirituais, e a sabedoria divina, que os cicatriza, começa a ope- rar antes nestas causas, até atingir as consequências orgânicas. Como é possí- vel curar sem saber estas coisas? A medicina completa é também mística e religiosa. A patologia e a terapêutica verdadeiras deveriam abarcar séculos da

29 “A fé que cura”. (N. do T.)

vida do indivíduo, segundo as alternativas da sua longa caminhada no tempo. Que sabe a ciência daquela outra hereditariedade espiritual, que, pela universal lei de dualidade, age por um canal paralelo e complementar ao da hereditarie- dade psicológica, que é a única hoje conhecida? Enquanto a ciência não co- nhecer a biologia transcendental do espírito e a anatomia, psicologia e patolo- gia deste organismo dinâmico, ou sistema de forças, individualizado por com- primento de onda, frequência de rotação, potencial etc., não poderá compreen- der nem mesmo a patologia do organismo físico, que não é senão a última consequência de tudo quanto nós mesmos preparamos com os nossos pensa- mentos, com a nossa vontade e ação, no campo do imponderável. O diagnósti- co hoje se faz, no entanto, à base da sintomatologia imediata e superficial de- nunciada mais ou menos pelo paciente, sob controle do médico, que não o conhece e o vê pela primeira vez, tratando-o como corpo em série, e não como indivíduo que ele é; como moléstia que se presume mais ou menos igual para todos, e não como típico caso específico. Hoje, o utilitarismo prático e a lei do mínimo esforço impõem rapidez. Tudo é em série, em massa. Os homens, co- mo as máquinas, reparam-se em série, como se fazem as bicicletas.

Concluindo, falta aos nossos tempos e suas produções a orientação que for- neça a visão dos fins últimos a serem atingidos. É uma verificação que não tem por fim desacreditar a ciência ou a medicina. Existem médicos iluminados e honestos, e a ciência é uma grande conquista devido ao esforço e à abnega- ção das grandes mentalidades que a elaboraram, porque também ela possui os seus gênios e os seus mártires. Respeitemo-la, mas saibamos também usá-la com sabedoria, só colocar o imenso poder que dela deriva em mãos de quem sabe dele fazer bom uso. Todavia, se a ciência sabe fabricar tantas coisas, não sabe ainda fabricar os cérebros que possam bem usá-la. Cheios de sapiência, falta-nos ainda a sabedoria. Possuímos todas as ciências, mas nos falta a da orientação. Assim, às vezes, a ciência se torna um mal, em virtude do que seria melhor que os cientistas não fizessem certas descobertas ou, pelo menos, não as tornassem conhecidas.

Quando se pensa que hoje a humanidade está à mercê de poucos homens que possuem o segredo e os meios da bomba atômica, e que os povos inermes, dada a mentalidade dominante, encontram-se sob a ameaça de ser por ela massacra- dos sem remissão, conclusões amargas como esta poderão parecer justificadas.