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Atrás, explicamos que a culpa e o erro fundamental dos nossos tempos re- pousam no orgulho e na rebelião à ordem divina das coisas, de que derivam muitos males e muitas dores. Aqui, não mais falaremos desse erro moral em sua particular relação com o trabalho e os bens úteis à vida, mas sim com rela- ção à nossa saúde física. Procuraremos precisar os efeitos da moderna psicolo- gia de independência, quando ela penetra também esse nobre ramo da ciência, que é a medicina.

Repassemos agora as ruinosas consequências a que uma orientação exces- sivamente materialista e hedonista conduziu a ciência, enfrentando a urgente necessidade de conferir a esta uma superior finalidade ética. O homem, que preferiu o seu eu a Deus e acredita tornar-se senhor e centro do seu mundo, por mais que queira manter-se objetivamente apegado apenas aos fatos e ausente e neutro em face de qualquer meta ideal, fixou, só por esta sua atitude, uma afirmação axiomática e dogmática que colorirá toda a sua concepção, ainda que tal premissa esteja oculta no subconsciente. Disto não pode nascer senão uma medicina que tende a substituir-se à natureza e que prescinde do poder curativo desta, a ponto de acreditar poder e dever corrigi-la e suplantá-la. As- sim, hoje, enquanto a medicina se guarda bem de possuir uma filosofia, efeti- vamente tem uma, da qual depende a sua orientação. Também aqui não se po- de prescindir do fator moral, que, sendo superior a todas as leis humanas, as penetra todas, de modo a se encontrar em todas, ainda que seja negado. Igual- mente aqui se verifica a habitual cadeia: ignorância, erro, mal, dor, também com os mesmos resultados, como nos outros casos.

Encaremos o problema mais de perto. Nenhum outro campo, como a medi- cina, que intervém em nosso mundo orgânico, é tão pejado de consequências nocivas devido a esse espírito moderno, rebelde às leis da vida, o qual preten- de erigir-se em plena autonomia, para adaptá-la aos próprios fins hedonísticos. A saúde é fenômeno de longas e longínquas repercussões, é um equilíbrio pro- fundo das energias da vida, que o homem moderno perturba com extrema faci- lidade, levando uma vida contra a natureza, e que ele pretende depois restabe- lecer com a varinha mágica do médico e da medicina, usando o milagre da descoberta científica. Acredita-se facilmente nisto, pois agrada e é cômodo, além de se prestar à exploração industrial e individual, havendo quem tenha interesse em criar e manter tais credulidades. No entanto a vida é feita de ma-

neira diversa, e não podemos alterá-la a nosso talante. E se tentarmos tal em- presa, as forças da vida reagirão, punindo-nos pelo erro. É certo que a imbeci- lidade das massas parece ilimitada, e, biologicamente, é inevitável que os fra- cos sejam explorados. O quanto isto é rendoso para os espertos, prova-o a con- corrência que existe hoje na indústria da exploração de tal imbecilidade, em todo o campo possível e imaginável. Mas é verdade também que, dada a gran- de compreensão da maioria, nada pode educá-la melhor do que ter sido ela escarmentada com o próprio prejuízo. Em todas as esferas de ação, a vida ado- ta esse sistema para nos induzir a compreender, isto é, a progredir.

O dano em medicina é grave, visto tratar-se de uma terapêutica desorienta- da, que, aplicada em larga escala, ameaça a constituição orgânica, sobretudo das raças civilizadas, que dela fazem mais uso. É verdade que a vida é uma batalha onde cada um deve combater com as próprias armas, com as próprias características e com os meios acumulados no tempo, e isto tanto no campo orgânico como no espiritual. É verdade também que a vida possui poderes corretivos e de recuperação em face dos piores erros e, por conseguinte, pode resistir aos maiores assaltos. Mas nós não estamos em grau de dizer quantas dores isto custará ao homem moderno.

Hoje a terapêutica antimicrobiana domina e determina uma intervenção contínua e difusa de produtos que, penetrando no organismo, tendem a modifi- car a própria estrutura das células, determinando um progressivo declínio or- gânico e consequente decadência constitucional. A caça ao micróbio se reduz a uma conturbação, na qual se prejudicam as naturais forças defensivas e se pro- duz uma crescente vulnerabilidade orgânica. Frequentemente obter-se-á uma vantagem imediata, mas é necessário ver o que de nós custará pelas suas con- sequências. Não obstante a contínua floração de descobertas e de novos remé- dios, os organismos resistem cada vez menos. Se os auxiliamos de um lado, eles cedem de outro. É natural que eles se enfraqueçam na proporção da defesa que lhes é prestada. À multiplicação dos remédios corresponde assim uma multiplicação de males. Ademais, as enfermidades se tornam amorfas, atípi- cas, o que significa que se perturbou a lógica da estratégia posta em prática pela inteligência da vida. Os organismos não reagem mais ou, se reagem, o fazem desordenadamente, o que significa que a natureza foi induzida à desor- ganização. O difundido uso dos produtos sintéticos significa o emprego de um mau sucedâneo, que, se possui as características químicas, não pode ter de

modo nenhum as orgânicas, dado que a vida contém forças sutis, que alcançam o próprio campo espiritual.

Sem poder entrar aqui em particulares, este é o resultado da terapêutica moderna. Por querer ser imparcial e objetiva, ela carece da orientação geral, que só uma filosofia da vida pode fornecer. Por permanecer positiva, escapam- lhe muitos imponderáveis fundamentais. Não possuindo o senso da unidade cósmica, fogem-lhe também a percepção da unidade orgânica e, assim, o poder de síntese, ficando perdida na análise, na especialização clínica, no localismo patológico e no fracionamento sintomático. E, sem esse poder de síntese, não se chega a cumprir o ato individual da intuição, que é o diagnóstico e o prog- nóstico. Não se pode compreender um momento particular da vida se não se está antes orientado no todo, compreendendo primeiramente o funcionamento orgânico do universo. No estudo da vida não se pode prescindir da ordem espi- ritual em que ela se move, nem é lícito ignorá-la. Uma medicina materialista é, pela própria natureza, incompleta e incompetente para julgar os fenômenos vitais. Escapa-lhe a essência destes. Não obstante negá-lo, ela possui, em rea- lidade, a filosofia mais negadora da substância da vida, como é o seu materia- lismo. Tal é a nossa medicina analista, organicista e microbiana.

Essa sua psicologia de batalha antimicrobiana lhe vem da psicologia do sé- culo, que é de revolta, e não de adesão à sabedoria das leis, ou seja, psicologia do homem ainda involuído. A caça ao micróbio, se este é realidade, pode ser empirismo como orientação geral. Mas quem nos assegura que o micróbio não seja senão o efeito, ao invés da causa da moléstia, visto que ele surge quando o terreno orgânico já está preparado pelo morbo e que, neste mesmo terreno or- gânico, ainda quando seja patogênico, não exercite funções particulares? Quem nos diz que o doente não seja um ser que a vida coloca sob cuidado para curá-lo, mais do que um ser que espera a extrema-unção humana para norma- lizar-se? Esta concepção desloca tudo, fazendo passar para um primeiro plano a sabedoria da natureza e para um segundo a do médico, visto que, hoje, as coisas estão invertidas. Mas a medicina consiste em seguir esta sabedoria, e não em substituir-se a ela para coagi-la.

O primeiro e verdadeiro grande médico é a natureza, grande concorrente da medicina oficial, médico que todos têm em si e que vigia e age continuamente. Ela representa a universal presença de Deus, sempre benéfica e restauradora. O conceito do micróbio patogênico deriva do instinto de luta do homem ainda involuído. É impossível seguir o bacilo e atingi-lo nas profundidades vivas do

tecido, porque ele não se encontra aí como uma intromissão estranha, mas sim como combinação de simbiose, que faz parte dos próprios equilíbrios da vida. Ele é nossa própria vida, com funções vitais, e não se pode isolar nas infinitas interdependências orgânicas. A natureza o utiliza na sua estratégia defensiva. Os micróbios não são os antagonistas da vida, mas os seus colaboradores. Mesmo quando agem contra ela, excitam-lhe as reações vitais.

Quando advém o assalto, a vida adota muitos meios, entre os quais ressalta a elevação da temperatura, que se chama febre. Ela representa um mais alto potencial elétrico celular, especialmente do sangue, uma posição mais enérgica para a batalha. Os medicamentos destinados a suprimir a mobilização desse dinamismo, expresso pelo processo febril, vão demolir as naturais defesas or- gânicas e paralisam a luta engajada pela natureza. A vida é um inteligente princípio espiritual que quer a conservação do indivíduo, porque viver tem um escopo e ela quer atingi-lo. As moléstias representam uma verdadeira estratégia de movimentos calculados em intensidade e duração, conduzidos com um ritmo próprio, que se exprime pela sintomatologia. Elas representam, em suma, uma inteligente operação de guerra. Se tais planos forem transtornados, paralisando artificialmente a reação febril, toda a defesa se desorganizará. Então, a natureza ou resiste à cura e trava a sua batalha da mesma forma, ou a transfere para uma outra ocasião. Entrementes nós poderemos ter tornado tão difícil o seu trabalho, que poderá suceder que a batalha seja perdida e o organismo sucumba. Altera-se assim, completamente, o conceito de saúde. Esta não é dada tanto pelas boas condições do ambiente, quanto pela capacidade de resistência do indivíduo. Pelo contrário, se muito protegida, a vida se enfraquece.

É necessário que nos exponhamos, que lutemos, para que devamos apren- der a vencer. A célula só se torna passível de agressão por parte dos germes patogênicos quando o seu índice bio-físico-químico sofreu alteração. O estado de saúde não deve, por conseguinte, ser esperado de um ambiente artificial- mente corrigido, mas sobretudo de nós mesmos, e isto é o resultado de uma longa história individual e coletiva, história em que a vida tudo registra de bom e de mal, com suma justiça e vontade de fazer o bem.

As nossas atuais concepções dependem de uma falsa orientação filosófica. Não está errada a ciência que observa objetivamente, mas está errada a psico- logia com que se aplicam os seus resultados. Em nosso caso, se é perigoso ser demasiado filósofo e pouco médico, como sucedeu nos séculos passados, é perigoso também, como possivelmente por reação sucede hoje, ser demasiado

médico e pouco filósofo. Um pouco de filosofia também é necessário para superar o perigo representado pela dispersão resultante do fragmentarismo analítico, em que a perda do sentido unitário leva a um labirinto de fenômenos desconexos. Para resistir ao fracionamento da ciência na especialização, deve ocorrer a síntese, a unificação, na orientação filosófica. A orientação materia- lista conferiu à nossa medicina um aspecto mecânico, frio, abstrato, em que a alma do paciente sente-se afogada.

Da mesma forma que já dissemos com respeito ao trabalho, também a me- dicina, assim como todas as manifestações da vida, deve consistir, para ser genética e criadora, em um ato de amor. O século futuro deverá aguardar na ciência a conquista dessa nova qualidade, que pertence ao espírito e que falta inteiramente em nosso tempo.