• Nenhum resultado encontrado

Olhemos mais uma vez em nosso derredor. No atual momento histórico existem dois estados: um aparente, superficial e transitório, que é visto por todos e constitui a base de julgamento da maioria; outro real e profundo, dado pelo eterno desenvolvimento das coisas. O primeiro é de destruição, miséria, mentira e ódio – um estado bestial, involuído. Aí, os melhores, que, por serem os mais evoluídos, conquistaram os valores mais elevados da vida – que não são os materiais, única meta dos involuídos, mas sim os espirituais, bens pre- ciosos e poderosos – são hoje perseguidos e deslocados pelos piores. Hoje é exatamente a hora do mal, cuja característica é a negação e a subversão. As- sim, os melhores se tornaram perseguidos, quase que obrigados a esconder-se, enquanto os piores conquistaram tudo. Mas é natural que os revolvimentos necessários para passar de um estado de equilíbrio a outro, evolutivamente superior, sejam também convulsivos. É natural que, para passar de um estado de legalidade ao de uma legalidade mais completa e perfeita, seja necessário atravessar uma fase de ilegalidade, que depois se refaz e coordena em uma nova ordem. Também durante a Revolução Francesa, que teve os seus fins históricos e sociais, verificou-se a ascensão da escória. Mas, visto não corres- ponder a um valor intrínseco, é uma posição falsa e, por conseguinte, não po- de durar. Então, em qualquer revolução, ou seus filhos demonstram estar à altura da posição conquistada, ou é a própria revolução que os mata, como matou Robespierre e seus companheiros na França. Mas o que, inversamente, encontramos em profundidade? Toda a verdade, pela lei do dualismo univer- sal, não está completa se não for vista em seus dois temas antitéticos e contra- ditórios, dos quais ela se compõe na totalidade. No outro extremo do fenôme- no histórico atual, que aparece na superfície, temos um estado oposto, de pre- paração subterrânea, de espera e maturação. Assim como se diz que sob a neve está o pão, também é sob a tempestade que estão amadurecendo os germes de uma nova civilização. Para compreender isto, seria necessário conhecer não só as leis históricas mas também as leis biológicas, pois delas a história humana não é mais do que apenas uma parte. Quem compreendeu essas leis não discu- te mais com os homens, que, em geral, não sabem o que fazem nem por que fazem. Discute, isto sim, com as leis biológicas que os movem, leis às quais eles, que tanto creem comandar, não fazem mais do que obedecer, movidos, mais ou menos lúcidos e conscientes, pelos instintos, que são as forças por

meio das quais as leis os manobram. Isto porque o caminho da história não se faz ao acaso, não está entregue ao capricho ou vontade dos povos e muito me- nos de seus dirigentes. Quem faz a história são as correntes de pensamento coletivo, que são inconscientemente sentidas e expressas pelas massas. E os dirigentes serão tanto mais capazes quanto melhor souberem sentir essas cor- rentes, interpretá-las, exprimi-las, encarná-las. Mas, se eles quiserem seguir outra via, substituindo-se às profundas impulsões biológicas, para desviá-las do caminho, elas se rebelarão e se libertarão deles como de um trambolho. O poder, para manter-se, não pode possuir finalidades egoísticas individuais ou de classe, visando domínio, deve representar em vez disso uma função bioló- gica e ser compreendido como uma missão a serviço da vida, caso contrário ela reagirá, fazendo qualquer poder humano desmoronar.

Eis então que, no fundo das coisas, há algo bem diferente; estão aí o pen- samento e a vontade diretora de Deus, que não são apenas transcendentes nos céus, mas também imanentes em nós e em nossas coisas, presentes com a sua incessante obra criadora. Na direção da história há, portanto, uma outra obra, bem diferente da pobre e ignorante sapiência humana. Há a sabedoria de Deus. Que isto seja de grande conforto aos melhores, mais evoluídos, hoje expulsos e esmagados.

Quem está habituado a olhar com humildade e amor, pedindo e entregando- se a esse pensamento divino que tudo rege, constata experimentalmente a exis- tência de uma lei de ordem e de amor que está no centro das coisas, que as alimenta e as mantém em vida, mesmo deixando que na periferia, na forma e na matéria, dominem a desordem e o mal. Assim como nas grandes tempesta- des oceânicas, a poucos metros abaixo da superfície das águas, observa-se a calma, também verifica-se na história, sob o grande rumor das revoluções, da queda das classes sociais e dos tronos, do desmoronamento das enormes cons- truções políticas, a calma das grandes leis da vida, que, lentas mas seguras, vão preparando o futuro. Futuro garantido, como garantida é a primavera, que deve (pelas leis da vida) trazer consigo a germinação das novas massas. Não podemos, de fato, presumir que a continuação da vida seja confiada aos ho- mens e aos seus expedientes. E, se ela sempre triunfou e triunfa sempre, como o demonstra o fato de haver chegado até aqui, isto se dá justamente porque ela é protegida por essa sabedoria divina, que a guia, a nutre e a mantém.

Abordemos agora a parte mais importante da questão. O que é que a sabe- doria das leis biológicas e, por conseguinte, também históricas e sociais nos

está preparando para o futuro? A história jamais caminhou uniformemente, mas sempre por ações e reações, por impulsos e contrachoques, progredindo no tempo não como um rio canalizado em margens feitas pelo homem, mas como um curso d’água que, deixado livremente vagar pela planície, por ela serpenteia da maneira que o seu dinamismo lhe permite. Este processo de ação e reação contraria o que presume o cálculo das probabilidades, de modo que amanhã pode suceder o contrário de hoje. Essa é a lei da vida, que não está baseada na continuação indefinida de estados idênticos e constantes, mas sim na compensação de contrários e no seu equilíbrio. Sabemos que a oscilação entre contrários, isto é, entre um extremo positivo e um extremo negativo, em que cada fenômeno se inverte no seu oposto, é a base da luta, da evolução e da própria percepção. O fato mais inverossímil e fantasioso para o observador superficial, hoje dominante, é, pois, exatamente o mais verossímil e lógico para o observador profundo. Por isso nos encontramos precisamente em uma noite que precede um novo dia, pois, na vida, é exatamente a noite que prepara o dia; é a morte que anuncia o renascimento; é o mal, a destruição e o martírio que anunciam o bem, a construção e o espírito. Encontramo-nos no fundo do vale da onda histórica, que deve necessariamente, depois, reascender, como tornam a subir todas as ondas. Conclusão: caminhamos para uma nova civili- zação do espírito, para a nova civilização do Terceiro Milênio.

Trata-se agora de saber como se conseguirá essa nova civilização. Natural- mente, porque é nova, ela deverá estar, por razões de equilíbrio e compensa- ção, nos antípodas do que hoje denominamos a nossa civilização. Não se trata de retoques do que é velho, de novas ordenações políticas, com a habitual substituição, para vantagem de novas figuras ou classes; não se trata de conti- nuar, mas sim de iniciar outra, com princípios diferentes. Expô-los aqui é tare- fa muito grande para um capítulo. Bastam-nos alguns acenos. Os atuais valo- res que se projetam acima do nível comum pertencem mais ao plano animal do que ao plano que deveria ser humano. O homem atual é involuído, é mais ani- mal do que homem. Hoje vale a força e a astúcia. A honestidade e o mérito, valores superiores, têm importância mínima. A bondade e a inteligência volta- da para o bem são as qualidades menos úteis na vida social de hoje e chegam a ser mesmo nocivas. Hoje, a importância é medida pela capacidade de prejudi- car ou pela utilidade extraída, e não pelo valor propriamente . Isto acontece justamente porque a balança dos juízos humanos, mais que de um ser superior, é a de um animal. Hoje, o poder não é compreendido como uma função bioló-

gica, cumprindo missão a serviço do povo, mas sim como uma conquista com objetivos de vantagem individual, como qualquer outro meio. A seleção bioló- gica de um tal tipo, tido como o mais forte, corresponde a estados primitivos, involuídos. A evolução impõe a passagem para formas de luta e de seleção biológica mais elevadas, dirigidas à formação de um tipo menos inconsciente, menos egoisticamente isolado. A vida caminha para a formação de grandes unidades coletivas humanas, em que é necessário compreensão e colaboração, e não mais subjugação e proveito. A época do senhor e do escravo já passou. Marcha-se para novas formas de liberdade, que, porém, não significam, como acredita o homem de hoje, abuso e licença, mas sim uma nova disciplina, mais elevada, uma ordem mais férrea e uma consciência capaz de compreender a utilidade disto e obedecer, ainda que seja por espírito utilitário.

Hoje se crê no número. Basta uma maioria, não importa de que elementos, para formar uma verdade, um direito, para estabelecer uma norma de vida, uma lei. Ora, como pode a quantidade fazer a qualidade? Não podemos formar nem ao menos uma única unidade reunindo um número de zeros, mesmo que seja infinito. Isto é elementar. Hoje, a matéria é tudo. Ela é apenas meio, mas foi elevada a fim. A riqueza é o objetivo da vida. Troca-se o continente pelo conteúdo. O trabalho material vale mais do que o intelectual. O que decide na difusão de uma ideia não é o seu valor, mas a posse de meios materiais que podem difundi-las. As opiniões fabricam-se mecanicamente. Basta possuir a imprensa e o radio. A grande floração de meios de que se enriquece a nossa pseudocivilização mecânica e utilitária, nos fez esquecer o melhor. Eles absor- veram toda a nossa atenção, sujeitaram o nosso espírito, invadiram tudo, subs- tituindo-se a tudo e pretendendo bastar a tudo. Mas já sentimos o vazio terrível que está em nós, a carência de diretivas, porque sentimos cada vez mais que somos incapazes de dirigir esses meios, sempre mais poderosos. E o perigo é grave, porque, se não soubermos dirigi-los com sabedoria, eles constituirão, em nossas mãos, um instrumento de destruição universal. Isto o mundo já viu e fez nestes anos. Basta continuar um pouco ainda nesta loucura, e a humani- dade será destruída ou, pelo menos, reduzida ao estado de barbárie. Dir-se-á, porém, que, para alcançar isto, urge um novo homem, consciente, justo, o que foi e será sempre uma utopia. Ora, a história nos mostra com frequência que é justamente a utopia que será a verdade de amanhã. Um exemplo disso é o cris- tianismo. Além do mais, há um fato positivo: a evolução. É necessário evoluir. Essa é a lei da vida, que sempre fez pressão no íntimo das coisas, não só para

se manifestar, mas também para subir a manifestações sempre mais perfeitas. Luta-se tanto, sofre-se e experimenta-se, mas tudo por esse motivo. O amanhã deve, por lei, superar o presente. Ademais, o homem atual alcançou um ponto crítico em que, não sendo possível continuar com os velhos sistemas, impõe-se uma mudança de rota. Os poderes hoje em suas mãos são muito superiores àqueles que ele possuía no passado. Isto implica a necessidade de uma propor- cional sabedoria, para saber como empregá-los bem. O homem que possui a bomba atômica não pode agir com a mesma inconsciência e psicologia de fe- rocidade empregada pelo guerreiro medieval, que não dispunha senão de uma lança ou pouco mais. Com essa psicologia, o homem moderno destruiria a humanidade.

Como se vê, a utopia de uma nova civilização não se apoia em sentimentos de bondade e de altruísmo. Conhecemos o homem, sabemos o que se pode obter dele e quais são as molas que o movem. Faz-se, pois, apelo ao terror que lhe inspirará a perspectiva certa da autodestruição. Faz-se depois apelo ao seu senso utilitário. Pede-se somente que o novo homem seja suficientemente inte- ligente para poder compreender a enorme vantagem que pode advir para todos da valorização do fator moral e espiritual na vida social, porque só assim se pode obter paz, confiança e aquela segurança que é a única garantia de qual- quer fruição do fruto das próprias fadigas. Se não se compreender isto, é inútil reconstruir. Com a psicologia do homo homini lupus, com o sistema do revól- ver em punho, pode-se também fazer um inferno para os demônios e para os danados que vivem na Terra e um purgatório para os justos, que assim se apressarão para procurar mundos melhores. Mas, na Terra, para quem nela trabalha, nela possui e prolífera, só haverá desesperação. É necessário compre- ender verdades elementares, entender que, quando se semeia violência e mal, não se pode colher senão violência e mal; que a reconstrução não se pode ope- rar senão recorrendo-se ao trabalho, o ato criador pelo qual o homem se torna operário colaborador de Deus; que não convém jamais fazer mal aos outros, porque quem faz o mal nunca o faz aos outros como parece, mas o faz real- mente a si mesmo.

Há leis na vida. Para se obter determinados resultados, como por exemplo o nosso bem-estar, é imprescindível seguir normas. Cada ato tem as suas nor- mas, como cada fim tem o seu caminho para ser seguido. Todos nós desejarí- amos viver em um jardim, porém não deixamos de contribuir para fazer um campo minado. Que poderemos esperar, então? Mas cada um pensa que ven-

cerá e se refará à custa do vencido. Não! Os vencedores não vencem desta forma. Apenas desempenham, através da sabedoria divina, uma função bioló- gica diferente daquela dos vencidos. Funções opostas, que se devem compen- sar e equilibrar para consecuções comuns, que a vida colima para todos, em formas diferentes e segundo as diferentes capacidades. O homem do futuro deverá ser mais inteligente, a tal ponto que possa superar as ilusões psicológi- cas e não cair nos erros a que estas induzem.

Concluímos agora nosso pensamento. O materialismo, fruto dos últimos sé- culos, fruto espiritual e material, já deu todo o seu rendimento. Como filosofia, já se esgotou e agora é posto à margem pela vida. Como técnica, deixou um produto útil, que é o domínio sobre as forças naturais, postas em parte a servi- ço do homem. Este resultado útil é o produto do nosso tempo e vai ser transfe- rido (reduzido, porém, de fim que é hoje a meio que será amanhã) ao seio de uma nova civilização, de tipo diferente. A nossa já atingiu os seus fins. A nova atingirá outros, mais elevados e complexos, servindo-se dos produtos do traba- lho executado pelo nosso tempo. A vida hoje diz: basta por este lado. E acres- centa: operemos a compensação, completando o edifício pelo outro lado. Um vazio tremendo se formou exatamente do lado espiritual. É, na multidão, uma atrofia perigosa para o equilíbrio, uma carência patológica que urge remediar. E as forças da vida se apressam hoje a preencher a falha, convergindo a sua ação precisamente nessa direção, semelhantemente ao que fazem na defesa orgânica. Essas forças se propõem agora a construir o novo homem do espíri- to. Atualmente nos encontramos na profunda noite da matéria. O mundo está desorientado, sem guia e com muito pouco senso. O espírito parece morto. Não existe mais arte. A música é um pandemônio de rumores irritantes. Hoje, a vida está tentando a construção de novos e grandes organismos coletivos, especialmente daqueles que têm por célula o indivíduo, nas colossais unidades biológicas. Este novo ser, do qual as massas constituem o corpo, ainda vaga incerto à procura da sua alma diretora, como se fora um antediluviano monstro paleontológico. Aturdido pelo rumor de quem mais grita e fere os sentidos e os seus instintos, desconfiado e crédulo, arredio e esperançoso, rebelde e fraterno, esse corpo social das massas, ainda informe, procura auscultar no seu instinto a longínqua voz da vida, seu único guia. E a vida está pronta para gritar nesse seu instinto uma palavra nova, e as massas estão prontas para ouvi-la e segui- la. Jamais como hoje, entre tanto esfacelo e atabalhoamento, os espíritos esti- veram tão preparados para se incendiar sob o influxo de uma palavra ardente,

feita de verdade verdadeira, sentida, vivida, dita com seriedade. E a espera- mos. Virá ao certo. Disto cuidam as sapientes leis da vida.