• Nenhum resultado encontrado

3. CIÊNCIA POPULAR ARGENTINA: UMA REVISTA DE DIVULGAÇÃO DE

3.1 Ciência popular: algumas reflexões

O discurso do editorial permite, não apenas, conformar a visão de ciência da publicação, mas também compreender o como e o porquê de sua aproximação com a sociedade, bem como o papel dos cientistas no processo. Notamos que o título da citação anterior fala em vulgarização científica e o texto em divulgação. Parece-nos ser uma confusão muito comum para o período, que ainda apresentava resquícios de como a ciência era difundida até os primeiros anos do século XX. Moema Vergara, ao traçar a trajetória do termo “vulgarização científica”, aponta que, no Brasil, a sua utilização costumava designar a “ação de falar de ciência para os leigos” (2008, p. 325). Após esse período a expressão mais comum passou a ser “divulgação científica”, pois não carregava a conotação pejorativa35 associada a um conhecimento comum ou sem valor.

Outro aspecto ligado ao editorial encontra-se na característica de uma ciência “traduzida” pelos cientistas em uma linguagem simplificada. Da mesma maneira, Vergara (idem), pontua a tradução como elemento fundamental da vulgarização científica. A questão da tradução tem sido alvo constante de discussão nos estudos sobre divulgação científica. Autores como Bueno (1984), propõe a ideia de que “a divulgação científica pressupõe a transposição de uma linguagem especializada para uma linguagem não especializada, com o objetivo de tornar o conteúdo acessível a uma vasta audiência”. Autores como Zamboni (2001), acreditam que constitui-se na “formulação de um novo discurso”. Para Sánchez Mora, a divulgação é "uma recriação do conhecimento científico, para torná-lo acessível ao público"

35

Para uma discussão sobre o termo ver: VERGARA, Moema Rezende. Contexto e Conceitos: História da ciência e "vulgarização científica" no Brasil do século XIX.

(2003, p. 13). E observa, ainda, não ser uma tradução, mas “uma ponte entre o mundo da ciência e outros mundos (p.7). Todavia, são concepções em que prevalecem a ideia de uma fronteira entre o conhecimento produzido pela ciência e o público, e, conforme aponta Hilgartner (1990), uma visão dominante da ciência sobre a popularização científica. Nessa perspectiva, o processo de transmissão do conhecimento científico entende a existência de uma simplificação ou mesmo uma distorção das informações para torná-las compreensíveis para um público leigo e reforça a ideia de dois discursos: o da instituição científica e o voltado para popularização. Contestada por Hilgartner (1990) Myers (2003) e Bensaude-Vincent (2001), a visão dominante da ciência torna-se cada vez mais inadequada diante das novas investigações realizadas sobre o processo de comunicação científica na sociedade.

Todavia, o papel da simplificação é ressaltado na medida em que determinado conhecimento científico também circula em outras áreas especializadas e realimenta o processo científico (HILGARTNER, 1990, p. 522). Em linhas gerais é o que demonstra Fleck (1986) quando analisa o significado de ciência popular. A sua proposta destaque que os coletivos de pensamento científico podem ser avaliados a partir de dois círculos concêntricos: o círculo interior, chamado de esotérico é composto por especialistas de diversas áreas e está contido no exotérico, constituído por leigos. É neste círculo em que encontramos o conhecimento chamado de ciência popular, isto é, uma “ciência para não especialistas”. Neste modelo, há uma troca contínua entre os dois círculos de forma que a ciência popular é parte integrante do discurso científico, configurando assim uma influência recíproca, contínua e permanente.

De acordo com Fleck (1986), o conceito de ciência popular é uma versão simplificada do conhecimento científico e faz com que o saber pareça mais seguro, mais confiável. Além disso, não se caracteriza por trazer as questões atuais em debate no campo científico. A ciência é popular porque omite os detalhes, elimina as concepções discutíveis e é dirigida a um público adulto detentor de um conhecimento prévio que permite compreender as informações veiculadas (p.161). O predomínio de imagens e gráficos torna as edições populares atrativas e tendem a persuadir o leitor a aceitar ou refutar, por meio de argumentos bem fundamentados, determinados conceitos ou pontos de vista. Nesse sentido, a ciência popular se

caracteriza, principalmente, por ser veiculada nas revistas de popularização.

O editorial também indica-nos como a revista concebia o papel dos cientistas na comunicação da ciência na sociedade. Eles deveriam atuar mais ativamente na divulgação de seu trabalhos e ter uma aproximação efetiva com o público. Predominava a imagem de uma ciência coberta por uma aura de mistério e de acesso restrito à poucos. Esta é uma visão, no entanto, que tentava mudar com o discurso de popularização da ciência, cujos principais objetivos eram educar, comunicar ou mesmo persuadir o público de que o conhecimento científico era o mais confiável e benéfico para a sociedade.

Embora Bensaude-Vincent (2001), como mencionamos anteriormente, tenha apontado o enfraquecimento da concepção canônica da visão dominante da ciência, ela ainda concebe a existência de um distanciamento (gap) entre o conhecimento dos cientistas e do público, o que ocorreu após a Primeira Guerra Mundial dada as mudanças trazidas pela teoria da relatividade e da mecânica quântica. Em um processo de sacralização, cada vez mais a ciência passou a ocupar um lugar separado na nossa cultura. Para demonstrar o seu argumento, Bensaude-Vincent (2001), busca discutir como o conceito de ciência popular e do seu público mudou ao longo do tempo36. Inclusive, a autora chama a atenção para a mudança da semântica do termo de acordo com o contexto. De ciência popular, passando por popularização da ciência no início do século XX e ao que hoje denominamos comunicação da ciência. O que nos interessa é a sua análise sobre “ciência popular” no período final do século XIX na França e no Reino Unido. Grosso modo, observamos muitas similaridades com o movimento de grande produção de material editorial voltado para a disseminação de conhecimento científico ocorrido na Argentina algumas décadas posteriores.

Como se sabe, o encantamento pela ciência e tecnologia expandiu-se em meio à ideologia do progresso e da civilização. Diversos meios de informação incumbiam-se de disseminar o conhecimento na sociedade vitoriana: conferências, museus, livros, enciclopédias, jardins, associações, etc. E, segundo Bensaude-Vincent (2001,

36

No nosso trabalho, optamos por não fazer a distinção dos termos e utilizamos ciência popular, popularização da ciência e comunicação da ciência como a atividade de levar ao grande público conhecimento científico. Nossa escolha se pauta pelo conceito que consideramos o fio conductor da pesquisa, o de cultura científica, que engloba noção de ciência popular como um todo.

p.103), “o consumo em massa de ciência encorajou” o sucesso do comércio editorial de publicações de ciência popular e acabou se tornando um negócio muito lucrativo. Continuando em sua argumentação, a autora explica a existência de uma preocupação dos editores em cativar um conjunto de leitores assíduos para este tipo de publicação. Como ela destaca “Em contraste dos manuais, os livros populares não tinham um mercado fixo e cativo. O interesse dos consumidores tinha de ser continuamente estimulado e mesmo re-criado”37 (1999, p. 104).

A Argentina, em um movimento similar à Grã-Bretanha na segunda metade do século XIX, vivenciou ainda que tardiamente, o florescimento do mercado editorial de publicações populares. Embora o país já contasse com um grande número de jornais em circulação somente no período entre-guerras ocorreu a difusão de textos baratos e de qualidade direcionados a um público-leitor ampliado pelas políticas educacionais de governos anteriores. Dentre outros aspectos, a empresa editorial estabelecida, principalmente, em Buenos Aires, podia contar com a diversificação da distribuição das edições e o estímulo à leitura propiciado pelo crescente número de formação de bibliotecas nos bairros periféricos da capital portenha (ROMERO, 1986; SARLO, 2000). Os novos leitores, tinham a sua disposição, além de várias obras literárias à preços acessíveis, diversificadas revistas de periodicidade semanal. O aumento gradual de publicações semanais não se restringiu às publicações literárias ou de generalidades. Como afirma Romero “el mundo, de la radio y el cine, que ocupaba un lugar cada vez más importante, alimentaba otro género de publicaciones, como Radiolandia (1986).

Em meio ao aparecimento de novas revistas e um público ávido por leituras diversificadas, não era de se estranhar o surgimento de edições de difusão científica. As primeiras publicações sobre rádio abriram espaço para um novo nicho do mercado editorial e, como exemplo de outros países, um negócio muito lucrativo. Para cativar este novo público, propagava-se uma imagem positiva da ciência e os benefícios de se ter acesso ao conhecimento científico. Os periódicos de divulgação científica tiveram um papel preponderante na promoção de representações positivas da ciência. Bensaude-Vincent (2001), chama a atenção para a imagem de ciência

37 Tradução livre do trecho a seguir: In contrast to textbooks, popular books have no fixed, cative

market. The interest of the costumers has to be continually stimulated and even re-created (BENSAUDE-VINCENT, 2001, p.104).

presente nas publicações periódicas da França e Grã-Bretanha no final do século XIX:

Qual foi a imagem subjacente do público? A suposição prevalecente era de que o conhecimento científico era útil e talvez até mesmo indispensável na vida cotidiana. A ciência foi apresentada como sendo prática, útil, divertida, recreativa, popular, mundana e divertido. Consequentemente, os assuntos favoritos eram orientados para a prática, incluindo a ciência natural, bem como a agricultura, caça, medicina, higiene, economia rural e as novas tecnologias. No entanto, na virada do século, astronomia, geologia, energia elétrica e as imagens em movimento espalhou outra imagem da ciência como uma fonte de maravilha e magia. Muitas outras boas razões foram apresentadas como justificativas para o lançamento de novos jornais ou revistas: combater o obscurantismo, satisfazendo a curiosidade do público e do apetite por conhecimento, cumprindo uma necessidade universal, mantendo a atualização do público com relação ao progresso científico constante, ou informar os cidadãos, a fim de capacitá-los a exercer seus direitos. Épico ou pragmática, humanista ou político, todos esses argumentos foram baseados em uma premissa filosófica central sobre a continuidade entre a ciência e o senso comum38.

As representações acerca da ciência nos jornais e revistas foram sendo reproduzidas nos diferentes países sempre com o objetivo de criar uma “ponte” entre o grande público e o “mundo científico”. Dependendo do país e seu respectivo público, das inovações e do desenvolvimento econômico algumas características podiam se reforçadas, acrescentadas ou ficar ausentes nas publicações, mas ajudavam a legitimar e difundir uma imagem dominante da ciência.