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Ciência = luz; religião = trevas?

R: Estou aqui para obedecer, mas não tenho defendido esta opinião após a determinação ter sido emitida, como eu disse.

4. CIÊNCIA, RELIGIÃO E PROGRESSO 1 Considerações iniciais

4.4. Ciência = luz; religião = trevas?

A religião, vista como cheia de obscurantismo, um “infantilismo psíquico” no dizer de Sigmund Freud (2010, p. 25), deve ficar restrita aos templos, cuidando da vida espiritual, e a ciência, vista como cheia de luz, promotora da libertação pelo

129 O autor respalda bastante seu argumento em Maimônides (1135 ou 1137/1138-1204) (FROMM, 1981,

pp. 31-35).

130 Vale ressaltar que a grande questão da sua obra é se Deus está morto. No entanto, para respondê-la,

segundo ele, necessário se faz perguntar se o Homem está morto, pois se assim estiver, a experiência e o conceito de Deus estariam mortos por consequência. A morte do Homem para Fromm está em primeiro plano para a sociedade industrial do século XX, pois o ser humano corre perigo de virar uma coisa alienada, e não mais se preocupar com os problemas e as soluções da sua existência. Portanto, para o autor é necessário rever as estruturas socioeconômicas e fazer renascer um humanismo que liberte os seres humanos da condição de serem apêndices das máquinas. (FROMM, 1981, p. 179-180)

conhecimento, deve imperar nas relações políticas, sociais e econômicas, cuidando da vida material. Todavia, será mesmo assim? Temos podido reavaliar tais noções.

Esse dito embate entre ciência-luz e religião-trevas ganha especial ênfase quando a Idade Média é analisada. Por muito tempo — e, apesar das revisões historiográficas, essa imagem está assim consolidada desde as escolas —, tal período histórico foi considerado a “idade das trevas”. Nesse sentido, perpetua-se que a responsabilidade pelas “trevas” ficou, em grande parte, a cargo da Igreja Católica Romana, pelo seu predomínio na vida cotidiana da Europa ocidental. Numbers, em sua obra já citada, publicou o artigo do historiador da ciência Michael H. Shank intitulado “That the Medieval Christian Church suppressed the growth of Science”131 [Que a Igreja Medieval Cristã suprimiu o desenvolvimento da Ciência, em tradução livre]. Nesse texto, o autor busca demonstrar o mito por trás dessa afirmativa. A epígrafe novamente faz referência à obra de John William Draper, um dos historiadores responsáveis pela disseminação da ideia de guerra entre razão e fé que analisamos no capítulo 1. Ele se dedicou a difundir que a Igreja Cristã Medieval defendia que todo o conhecimento deveria ser buscado somente nas escrituras. Assim, ela teria se tornado a depositária e a árbitra do conhecimento, exigindo fiel obediência às suas decisões, portanto, servindo de obstáculo ao avanço intelectual por mais de mil anos.

Para Shank, a Idade Média é um ambiente propício para a criação de mitos dessa espécie. Outro aspecto citado em seu artigo referente à suposta crença na falta de progresso da ciência naquele período em virtude da oposição religiosa está no campo da astronomia. Shank apresenta os argumentos do autor Robert Wilson, que ratifica as palavras de Draper ao considerar que o compromisso cristão com as escrituras sagradas foi um desalento ao esforço científico e, por isso, a ciência definhou por mil anos após a queda do império romano. Além disso, pelo fato de o cristianismo adotar, a ferro e fogo, a Bíblia — um livro com origens na antiguidade —, consequentemente, outros livros produzidos na antiguidade também foram considerados invioláveis, sendo esse um dos motivos que levaram ao julgamento do próprio Galileu. Nesse sentido, Shank ainda menciona o astrônomo e divulgador científico Carl Sagan (1934-1996), que, em seu livro Cosmos (1980), ao traçar uma linha do tempo com as figuras proeminentes da astronomia, deixa um buraco de mil anos correspondente ao período da Idade Média, saltando dos gregos antigos a Leonardo Da Vinci e Copérnico. O espaço em branco teria sido definido por ele como “uma pungente oportunidade perdida para a Humanidade”.

Em contrapartida aos pontos levantados a respeito do atraso científico e intelectual na Idade Média, o autor do artigo em questão recorre ao historiador da ciência John Heilbron, que, em seu livro The Sun in the Church [O Sol na Igreja, em tradução livre], afirmou:

The Roman Catholic Church gave more financial and social support to the study of astronomy for over six centuries, from the recovery of ancient learning during the late Middle Ages into the Enlightenment, than any other, and probably all, other institutions132 (HEILBRON, 1999133 apud NUMBERS, 2010, p. 21).

Com essa citação, Shank expande a influência da Igreja no avanço do conhecimento científico para além da astronomia, chamando a atenção para o fato de que a Idade Média concebeu as universidades, que se desenvolveram com suporte ativo do papa. Segundo ele, em 1500 existiam cerca de 60 universidades pela Europa, e 30% do currículo dessas instituições eram dedicados ao estudo do mundo natural. Isso resultou em centenas de milhares de estudantes — só na Alemanha, de 1350 em diante, mais de 250 mil — serem apresentados à ciência na tradição greco-árabe, com o detalhe de que a maioria deles não era formada nem de padres nem de monges.

Ao prosseguir com o exame desse fato, Shank argumenta contra o mito de que houve estagnação científica na Idade Média. Mesmo a proibição de palestras sobre a filosofia natural de Aristóteles em Paris, em 1210, não representou uma oposição de toda a Igreja contra tal ensinamento, visto que outros países permitiam o estudo desses preceitos. Um caso curioso é o do frade franciscano Roger Bacon (1214-1294), importante mente científica do período, que, mesmo com a condenação das obras do filósofo grego, ensinava, em 1240, a física aristotélica na mesma Paris. E, por volta de 1255, os tratados de filosofia natural de Aristóteles, antes proibidos, tornaram-se pré- requisitos para o bacharelado e mestrado em artes em Paris. Se a Igreja quis efetivamente se opor ao desenvolvimento da ciência e à investigação da natureza, mostrou-se ineficaz nesse objetivo, ao apoiar a proliferação de universidades e, consequentemente, o próprio desenvolver da ciência.

132 Tradução livre: A Igreja Católica Romana deu mais apoio financeiro e social ao estudo da astronomia

por mais de seis séculos — com a recuperação de antigo conhecimento durante séculos iniciais da Idade Média até o Iluminismo — do que quaisquer outras, e provavelmente todas as outras, instituições.

133 HEILBRON, John. The Sun in the Church: Cathedrals as Solar Observatories. Cambridge, Mass.: