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Ferramentas para a construção de pontes

R: Estou aqui para obedecer, mas não tenho defendido esta opinião após a determinação ter sido emitida, como eu disse.

5. CIÊNCIA E FÉ EM DEBATE: DIÁLOGO POSSÍVEL? 1 Modelos de estudo sobre ciência e religião

5.3. Ferramentas para a construção de pontes

No contexto de debates contemporâneos, o pesquisador Gaymon Bennett organizou, com Ted Peters, uma coletânea de estudos intitulada Construindo pontes

entre a ciência e a religião (2003), para demonstrar como as pesquisas elaboradas por

eles a respeito de uma interação positiva possível vêm crescendo e tomando corpo. Bennett explica:

Eis a tese, o princípio organizador elaborado nas páginas reunidas deste livro: diante da realidade de um mundo global, estudiosos de contextos religiosos, culturais, científicos e geográficos amplamente diversos estão se ocupando da tarefa comum de construir pontes de diálogo de mão dupla entre ciência e religião; essa ocupação comum justifica e requer a troca mútua de recursos para a construção de pontes — projetos, processos, materiais e ferramentas. Os ensaios neste livro foram reunidos para facilitar essa troca, capacitando professores e alunos a construir e transpor novas pontes entre a ciência e a religião (PETERS; BENNETT, 2003, p. 28).

Na visão desses autores, para compreender o fenômeno é necessário partir do pressuposto de que se trata de um diálogo global, multi e interdisciplinar. Do termo

“global”, nesse contexto, infere-se que ciência e religião têm influência na vida, nas preocupações e no bem-estar das pessoas e das instituições em todo o mundo. Segundo Bennett, “a ciência e a religião são onipresentes na sociedade humana; elas permeiam a existência humana e se interpenetram” (PETERS; BENNETT, 2003, p. 31). Por meio da interação histórico-cultural entre elas é que se produziram as bases intelectuais para moldar as lentes que permitem ao ser humano enxergar a realidade humana e não humana e desvendá-la em busca de conhecer mais e, assim, atuar melhor na natureza, alcançando maior grau de sobrevivência em consequência disso.

Por que é importante reconhecer, ou mesmo enfatizar, que o diálogo entre a ciência e a religião é de caráter global? Simplesmente, o diálogo não é um interesse culturalmente idiossincrático. Se fosse, os estudiosos de vários contextos não precisariam levar a sério o trabalho e os insights dos outros. As tradições religiosas e culturais devem enfrentar o fato da globalização. Devem enfrentar o fato de que a ciência e a tecnologia serão inevitavelmente um componente desse encontro. A ciência e a religião coabitam um único mundo global. Como a coabitação é possibilitada, se não forçada, pela inter- relação global de instituições e povos, a tarefa de articular a relação ciência- religião não pode ser simplesmente uma questão de interesse local. Um empreendimento de amplitude global requer os esforços concertados de estudiosos de todo o mundo (PETERS; BENNETT, 2003, p. 34, grifo do autor).

Ainda que o autor destaque o caráter global da relação ciência-fé, em contrapartida também apresenta o argumento de que não faltam os interesses contextuais nesse assunto. Ele afirma que é o contexto que molda, no fim, a forma como ocorre o diálogo entre ambas.

A maneira como constroem pontes entre a ciência e a religião é determinada em boa parte pela maneira como respondemos à questão: por que, afinal, construir pontes? Cientistas, teólogos, historiadores, eticistas e filósofos individuais muitas vezes podem responder a essa pergunta de maneira diferente. E, ainda que reconhecendo a relevância das respostas dos outros, o resultado prático é que eles constroem pontes por razões diferentes. Como constroem pontes por razões diferentes, constroem pontes de maneira diferentes. As pontes têm o objetivo de transpor diferentes tipos de divisão cultural, intelectual, política, forçando os estudiosos a enfrentar terreno cultural diverso. Em resumo, as ferramentas, as técnicas e os materiais adequados para alguns estudiosos empenhados em um projeto de construção de pontes não são sempre os adequados para outros (PETERS; BENNETT, 2003, p. 37).

Para cumprir o objetivo de promover uma interação construtiva entre ciência e religião, que tenha por base um exame rigoroso, uma crítica mútua e um compartilhamento criativo de ideias, a fim de que haja uma contribuição com as preocupações internas de cada uma, Bennett e Peters (2003, p. 39) propõem um modelo específico de cooperação: a consonância hipotética. Eles explicam o uso do termo “consonância”, afirmando que a palavra sugere que “há áreas de correspondência, ligação ou relevância entre as compreensões da natureza como concebidas pelas

ciências naturais e como desenvolvidas pelos discernimentos de várias tradições”. E, ainda que haja tal conexão entre os campos, existem muitos pontos dissonantes. Por isso, a consonância deve ser concebida de forma “provisória”, funcionando como uma hipótese. Daí a expressão “consonância hipotética”.

A consonância hipotética começa com a suposição de que a ciência e a religião estão tentando entender uma única realidade — ainda que complexa ou multifacetada. [...] embora seus métodos e rotas possam variar, não devíamos esperar que, no fim, elas seriam companheiras de viagem valiosas? Ao se comprometerem com a consonância hipotética, tanto a ciência como a religião está assumindo riscos. A religião concorda em sujeitar seus pressupostos à investigação científica e a supor que uma descrição científica do mundo natural poderia ser proveitosa para o discernimento religioso. A ciência concorda em sujeitar seus pressupostos ao exame religioso e a supor que os discernimentos religiosos a respeito da natureza da realidade poderiam revelar-se cientificamente proveitosos (PETERS; BENNETT, 2003, pp. 39- 40).

Os autores elucidam que os riscos em questão estão acompanhados de uma rede de segurança intelectual:

Ao elevar pressupostos ao nível de hipóteses, a ciência e a religião podem engajar-se em programas de pesquisa comuns, confirmar e refutar afirmações em conjunto. A consonância hipotética é uma disposição para o diálogo. Mais especificamente, é um compromisso com a proficuidade do diálogo. É essa disposição, esse compromisso, que, no fim, torna atraente a consonância hipotética (PETERS; BENNETT, 2003, p. 40).

A fim de explorarem os desafios metodológicos da interação entre ciência e fé, os autores Robert John Russell e Kirk Wegter-McNelly, no capítulo que escrevem para o já citado livro Construindo pontes entre a ciência a religião, debatem a respeito do “realismo crítico” proposto por Ian Barbour, uma doutrina adequada, segundo a filósofa e teóloga norte-americana Nancey Murphy, apenas a uma visão de mundo moderno (PETERS; BENNETT, 2003, p. 66). Ainda que existam críticas a esse modelo, Russell e Wegter-McNelly afirmam que ele forneceu a “ponte” crucial entre os campos do saber, “tornando possível o diálogo real e a crescente integração entre teologia e ciência” (PETERS; BENNETT, 2003, p. 57).

O que é o “realismo crítico”? Essa estrutura desenvolve-se a partir de argumentos nas perspectivas epistemológicas, de linguagem e metodológicas. Trata-se de uma alternativa às três visões predominantes da ciência, a saber: (1) o realismo clássico, em que as teorias científicas são uma fotografia do mundo; (2) o instrumentalismo, para a qual as teorias científicas são apenas instrumentos de cálculo; e (3) o idealismo, que considera que as teorias científicas apreendem a realidade como algo mental ou ideacional. Já para o realismo crítico, “as teorias científicas são expressadas por meio de ‘metáforas’” (PETERS; BENNETT, 2003, p. 49). Isto é,

analogias abertas que não podem se reduzir a afirmações literais. “As metáforas, por sua vez, desenvolvem-se em modelos de ciência” (PETERS; BENNETT, 2003, p. 50).

O discernimento “construtor de pontes” crucial entre ciência e religião obtido por Barbour é [que] tanto ciência como a religião fazem enunciados cognitivos a respeito do mundo usando um método hipotético-dedutivo em uma estrutura contextualista e historicista. Ambas as comunidades organizam observação e experiência por meio de modelos analógicos, extensíveis, coerentes, simbólicos e expressos por meio de metáforas (PETERS; BENNETT, 2003, p. 51).

Mesmo que existam diferenças quanto ao tipo de dados encontrado em religião e em ciência, esse modelo forneceu um suporte para o trabalho de vários outros pesquisadores em matéria de conciliação dos campos e por um longo tempo esteve na vanguarda de uma ampla reflexão sobre como relacioná-los (PETERS; BENNETT, 2003, p. 52).

Ainda prosseguindo na análise do relacionamento construtivo entre ciência e religião, Robert Russell identificou oito formas de interação genuína entre elas. As cinco primeiras referem-se à influência científica sobre a teologia, e as três últimas são sobre a via contrária.

1) As teorias físicas podem atuar como dados que colocam restrições à teologia. Por exemplo, uma teologia da ação divina não deve violar a relatividade especial. 2) As teorias físicas podem atuar como dados a serem incorporados à teologia. Por exemplo, o início do tempo, ou t = 0, na cosmologia do Big Bang pode ser explicado por intermédio da criação

ex nihilo; a explicação, porém, é parte da teologia e não da ciência. 3) As

teorias da física, após a análise filosófica, podem atuar indiretamente sobre dados da teologia. Por exemplo, t = 0 pode ser interpretado filosoficamente como indício da contingência no universo do Big Bang e, portanto, sugerir a existência de Deus. 4) As teorias da física também podem atuar indiretamente como dados teológicos, quando incorporadas em uma filosofia da natureza plenamente articulada. Finalmente, 5) as teorias da física podem funcionar heuristicamente no contexto teológico da descoberta ao fornecerem inspiração conceitual, experimental, moral ou estética. [...] 6) A teologia forneceu pressupostos históricos essenciais que sustentam o desenvolvimento da ciência, como a contingência e a racionalidade da natureza. Tais pressupostos merecem avaliação renovada. 7) As teorias teológicas podem atuar como fontes de inspiração no “contexto de descoberta” científico. Um exemplo é a influência de ideias religiosas sobre os pioneiros da teoria quântica, entre eles Planck, Einstein, Bohr e Schrödinger. Finalmente, 8) as teorias teológicas podem oferecer critérios, juntamente com adequação, coerência, abrangência e fertilidade empíricas, para a escolha teórica na física (PETERS; BENNETT, 2003, p. 62, grifos do autor).

A interação proposta por Russell parece abordar importantes pontos que poderiam gerar conflitos, caso não harmonizados. Nesta dissertação, foram apresentadas algumas situações em que houve a influência da ciência e de seus conceitos sobre pensamentos e doutrinas religiosas, bem como a influência da religião e seus aspectos teológicos sobre o desenvolvimento científico, em vários momentos históricos e dentro

dos parâmetros apontados por Russell. Na lista dele, evidenciam-se formas objetivas de identificar e estabelecer interações. Com isso, novamente reforça-se a noção de que, por mais que sejam campos distintos, não são isolados, todavia, podem contribuir construtivamente um com o outro.

Das oito proposições apresentadas, três chamam a atenção por se concentrarem sobre o indivíduo religioso ou científico; trata-se dos itens 5, 7 e 8 — os demais aludem às estruturas de produção do conhecimento. Anteriormente, tratamos da interação num sentido mais macro, ou ainda examinando controvérsias e mitos específicos. No entanto, pelas múltiplas possibilidades apontadas por Bennett na construção de pontes, é válido recorrer a dois exemplos de personagens que têm sua importância na história da ciência, os quais propuseram formas de promover uma interação benéfica entre ciência e religião, a partir de suas crenças pessoais, tanto com relação à ciência, quanto referente à religião. Assim, buscaremos analisar como lidaram com o sentimento de religiosidade e o que expuseram a respeito do possível intercâmbio, a começar pela maneira com que se harmonizaram com ambas as frentes. Com isso, poderá ser possível também notar como a religião colaborou em suas ações no campo científico, e como suas mentes científicas interpretaram o papel da religião. Conheceremos um pouco do pensamento de Albert Einstein e Francis Collins e suas disposições para o diálogo entre ciência e fé.