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Quanto à tentativa de definir ciência

R: Estou aqui para obedecer, mas não tenho defendido esta opinião após a determinação ter sido emitida, como eu disse.

2. A CONSTRUÇÃO SOCIOCULTURAL DA CIÊNCIA

2.2. Quanto à tentativa de definir ciência

Primeiramente, apesar de consideráveis esforços de pensadores, não tem sido tarefa fácil conceituar o que seja ciência. Pela etimologia59, tal palavra vem do latim

scientia, que significa “conhecimento”, de scire, “saber”, e de scindere, “cortar,

dividir”, isto é, separar uma coisa da outra, distinguir. Disso provém um desenvolvimento complexo e multifacetado, envolto em mitos e verdades sobre o que realmente seja a tarefa da ciência e do cientista.

O historiador brasileiro da ciência Gildo Magalhães dos Santos Filho discute, em seu livro Introdução à metodologia da pesquisa (2005), algumas concepções de ciência e demonstra que definir esse empreendimento humano é mais intrincado do que parece. Ele cita resumidamente a visão de Milton Vargas (1914-2011) e Mário Bunge. O

59 Cf. http://www.etymonline.com/index.php?term=science&allowed_in_frame=0. Acesso em: 2 de

primeiro conceitua a ciência como um saber teórico que dependeria obrigatoriamente de uma verificação prática. O segundo não esboça uma definição em si, mas se refere a dois exemplos para dividir a ciência em básica — leis do efeito fotoelétrico — e aplicada — estudo dos materiais fotossensíveis. Gildo observa, sem desmerecer a contribuição desses conceitos ao melhor entendimento do que seja a ciência, que a verificação de teorias nem sempre ocorre na prática, o que não refuta as teses sobre a natureza e a sociedade; e a distribuição proposta por Bunge, além de não abranger produções mais teóricas, tem resultados mais didáticos do que reais. A partir disso, o autor formula uma contribuição própria a esse debate:

Diremos, para nossos propósitos, que ciência é um conhecimento crítico generalizante, expresso implícita ou explicitamente em termos causais, que busca entender o mundo em que vivemos (incluindo o próprio homem), ou seja, a realidade, em qualquer nível. Entender o mundo de forma “generalizante” é o que também se poderia descrever como elaborar teorias, de modo que essas tenham uma certa adequação com a realidade do mundo, permitam nele intervir, fazer predições etc. — e não utilizamos o conceito utilitarista de domínio sobre o mundo, embora o “entender” favoreça, possibilite e leve a esse domínio (MAGALHÃES, 2005, p. 88).

Ele enfatiza o uso do termo “crítico”, pois esse saber não é estático, no entanto, tem caráter cumulativo, e a todo instante está se repensando e se redescobrindo sob novas formas de olhar, investigar e deduzir informações a partir da vida e da natureza.

Por ser “conhecimento”, recordamos que a ciência é processo, portanto é algo que se transforma, devém, não estando acabada. Reafirmamos que a realidade não se esgota, ela própria está em mudança: conhecer é sempre um recomeçar desse processo. Pode-se apreender mais a realidade do mundo se levarmos em conta o que já foi pesquisado e conhecido, reforçando a convicção de que o conhecimento é progressivo (MAGALHÃES, 2005, p. 89).

O historiador Clifford D. Conner, autor do livro A People’s History of Science:

miners, midwive, and ‘low mechanicks’ (2005), busca simplificar o conceito do que seja

ciência, a fim de colaborar na compreensão do seu ofício e de quais processos estão envolvidos no seu desenvolvimento:

At the very least science must be recognized as both a body of knowledge and a process of obtaining that knowledge. Let us, therefore, take the most uncomplicated approach possible and for the purposes of this book simply consider science to be knowledge about nature and the associated knowledge-

producing activities60 (CONNER, 2005, p. 11, grifo do autor).

Diante dessas noções, colocadas para auxiliar na compreensão mais geral da ciência e das atividades que a compõem, notam-se importantes aspectos: conhecer a

60 Tradução livre: No mínimo, a ciência deve ser reconhecida como sendo um corpo de conhecimento e

um processo de obtenção de tal conhecimento. Vamos, portanto, tomar a abordagem mais simples possível e para os efeitos do presente livro simplesmente considerar a ciência como conhecimento sobre a

natureza, a vida ou o cosmos significa saber pinçar seus sinais e decifrar seus recados, traduzindo-os num corpo inteligível de informações que tenha aproximada ressonância com a realidade — ou com as formas como se enxerga o que seja real —, num processo contínuo de revisão e crítica, para fazer progredir um conhecimento inacabado. Portanto, a tarefa de conhecer conduz ao conhecimento, que realimenta a tarefa de conhecer por novos ângulos. Tal incumbência, realizada por seres humanos, não está imune às interferências socioculturais de cada período da sua produção. É o que destaca Gildo Magalhães (2005, p. 89):

Tocamos de passagem num ponto capital: a ciência é uma atividade histórica, influenciada pelas ideologias vigentes na sociedade, por valores colocados no processo educativo em geral, pela opinião pública, por considerações filosóficas e religiosas etc.

A respeito do papel das ideologias, em linhas gerais, vale aqui recorrer à contribuição do historiador grego Kostas Gavroglu, que, em conferência61 proferida no 13º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, promovido pela Sociedade Brasileira de História da Ciência, em setembro de 2012, na Universidade de São Paulo (USP), analisa o papel da ideologia na popularização científica, o que contribui para nossa questão inicial a respeito da imagem construída em relação à ciência e transmitida ao público. Segundo ele, a popularização científica e de outras formas de conhecimento está envolta por processos contínuos de rearticulações da ideologia dominante e hegemônica. Ele cita o seguinte exemplo para ilustrar seu estudo:

One of the most common aims of science popularization is to consider it as a process for narrowing the cultural gap between the elite and other social groups. By transferring knowledge across cultural and class lines, the expressed rationale of most of science and popularization is to bridge gaps, to achieve egalitarianism, to convey in simple words the power of science and the many possibilities it can offer for the edification and the benefit of the masses. But this very process does not only transfer “objective” and “useful” knowledge. Such a process is also an attempt to imbue and instill audiences with a particular ideology, very often an ideology of neutral science which can provide answers to all kinds of problems or, worse still, that the character of the solution to many problems including social problems is exclusively scientific62 (GAVROGLU, 2012, p. 226, grifo do autor).

61 Leia na Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, pp. 224-231, jul-dez/2012. 62 Tradução livre: Um dos objetivos mais comuns de popularização da ciência é considerá-la como um

processo para reduzir a lacuna cultural entre a elite e outros grupos sociais. Ao transferir conhecimento através dos canais culturais e de classe, a justificativa expressa pela maioria dos representantes da ciência e da popularização científica é unir as lacunas, para alcançar igualitarismo, para transmitir em palavras simples o poder da ciência e as muitas possibilidades que ela pode oferecer para a edificação e os benefícios das massas. Mas tal processo não só transfere conhecimento “objetivo” e “útil”. Tal processo é também uma tentativa de imbuir e induzir o público a uma ideologia particular, muitas vezes uma ideologia neutra de ciência, que pode dar respostas a todos os tipos de problemas ou, pior ainda, que o tipo de solução para muitos problemas, incluindo problemas sociais, é exclusivamente científico.

Quanto a tal propagação que embute consigo certos valores ideológicos não declarados, construindo uma noção geral de que a ciência é neutra e pode fornecer respostas a todo tipo de problemas, bem como de que as soluções para os desafios são exclusivamente científicas, o historiador francês da ciência Pierre Thuillier (1931-1998) desenvolveu importante exame crítico em seu livro De Arquimedes a Einstein — a face oculta da invenção científica. Seu objetivo, no dizer dele (1994, p. 7), é o de “complicar

a imagem que muitos manuais e obras de divulgação pintam das atividades científicas”. Ele não deseja desconstruir em extremo ou radicalmente o que seja ciência, nem desmerecer as inúmeras conquistas alcançadas a partir de seu desenvolvimento. No entanto, pretende questionar representações que idolatram e glorificam excessivamente o trabalho científico, pois divulgadores entusiastas difundiram pelos tempos uma imagem de que:

Com a “ciência”, pelo menos, a gente sabe onde pisa... Eis aí uma atividade cognitiva séria, que nos leva, graças a procedimentos eficazes, a certezas, ou até mesmo a Verdades. Tal é a razão do sucesso desse quadro cheio de contrastes: enquanto a arte, a religião e a filosofia recorrem à imaginação, à intuição, a crenças quiméricas e especulações descontroladas, a Ciência nos revela a Realidade como ela é (THUILLIER, 1994, p. 8).

O esforço em consolidar um retrato assim da ciência, em tese, transmitiria uma tranquilidade ao público, que entregaria a ela sua confiança, e esta, portanto, teria autoridade sobre o conhecimento. Eis a necessidade de diferenciá-la de outros tipos de saberes, que não serão considerados bons o suficiente perto do que só a ciência tem a oferecer. No entanto, a fim de proporcionar esclarecimentos e não perpetuar qualquer confusão, Thuillier considera necessário distinguir o que seja uma “Ciência Ideal”, que pode ser alcançada no “final dos tempos”, e as ciências efetivas, que estão longe da perfeição sonhada por muitos. O historiador francês, sabendo que pode incorrer num reducionismo, não considera absurdo nem escandaloso pensar na ciência também como uma invenção, isto é, “um modo particular de apropriação do mundo imaginário por sujeitos humanos, historicamente situados” (THUILLIER, 1994, p. 27).

Para embasar sua análise, o autor se apoiará basicamente em três questões — as quais também chamou de mitos: 1) a pureza dos fatos; 2) a objetividade da ciência e do cientista; e 3) a racionalidade. Veremos a seguir suas principais perspectivas e as debateremos com o auxílio de outros autores.