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Paradigmas, métodos e criticidade na ciência

R: Estou aqui para obedecer, mas não tenho defendido esta opinião após a determinação ter sido emitida, como eu disse.

2. A CONSTRUÇÃO SOCIOCULTURAL DA CIÊNCIA

2.7. Paradigmas, métodos e criticidade na ciência

A respeito do desprezo a conhecimentos legítimos, o filósofo da ciência Thomas S. Kuhn (1922-1996), em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas (2003), examina como a ciência elabora suas pesquisas e seu conhecimento. Kuhn refere-se a esse desenvolvimento por meio de paradigmas que, de tempos em tempos, sofrem revoluções, alterando os parâmetros aceitos como referência para o trabalho:

uma comunidade científica, ao adquirir um paradigma, adquire igualmente um critério para a escolha de problemas que, enquanto o paradigma for aceito, poderemos considerar como dotados de uma solução possível. Numa larga medida, esses são os únicos problemas que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus membros a resolver. Outros problemas, mesmo muitos dos que eram anteriormente aceitos, passam a ser rejeitados

como metafísicos ou como sendo parte de outra disciplina. [...] Assim, um

paradigma pode até mesmo afastar uma comunidade daqueles problemas sociais relevantes que não são redutíveis à forma de quebra-cabeça, pois não podem ser enunciados nos termos compatíveis com os instrumentos e conceitos proporcionados pelo paradigma (KUHN, 2003, p. 60, grifo do autor).

Ele mesmo ainda define que “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (KUHN, 2003, p. 221). Então, o paradigma vigente é construído a partir do contexto histórico e cultural em que se inserem os membros da comunidade, conforme analisam os pesquisadores Robert John Russell e Kirk Wegter- McNelly, em seu texto publicado na obra Construindo pontes entre a Ciência e a

Religião, organizada por Ted Peters e Bennett Gaymon:

filósofos como Thomas Kuhn assinalaram aquilo que é chamado de natureza histórica e social/contextual da ciência. Isso significa que a ciência se desenvolve em um contexto histórico específico e que fatores pessoais e

sociais influenciam os que trabalham na pesquisa científica. Os dados não são inteiramente isentos e puros para o observador; em vez disso, o que consideramos dados relevantes e a maneira como incorporamos dados a nossas teorias e a seus testes são um fator crucial, muitas vezes denominado

‘theory-ladeness of data’ (sobrecarga teórica de dados). O conhecimento

científico é o conhecimento compartilhado de uma comunidade; é antes intersubjetivo que estritamente objetivo. As teorias científicas operam dentro de sistemas de pressupostos mais amplos chamados paradigmas. No caso, experimentos ou discernimentos idealizados influenciam a maneira como os pesquisadores buscam por novos dados e aplicações mais amplas de suas teorias (PETERS & BENNETT, 2003, p. 50, grifo dos autores).

Por essas razões, o anarquista Paul Feyerabend (1924-1994) defendeu, na sua polêmica obra Contra o método, que a pesquisa científica precisa preservar um caráter extremamente autocrítico — sem estabelecer paralelos conceituais, recordemos da definição registrada por Gildo Magalhães quanto à criticidade no desenvolvimento da ciência —, para não se fechar em si a ponto de eliminar aspectos importantes da realidade e possibilidades de ampliar os horizontes de sua ótica perceptiva:

A relevância e o caráter refutador dos fatos decisivos só podem ser verificados com o auxílio de outras teorias que, embora factualmente adequadas, não estão em concordância com a concepção a ser submetida a teste. Assim sendo, a invenção e articulação de alternativas talvez tenham de preceder a apresentação dos fatos refutadores. O empirismo, pelo menos em algumas de suas mais sofisticadas versões, exige que o conteúdo empírico de todo conhecimento por nós conseguido seja aumentado o quanto possível.

Consequentemente, a invenção de alternativas para a concepção que está em debate constitui parte essencial do método empírico. Inversamente, a

circunstância de a condição de coerência eliminar alternativas mostra, agora, que ela está em discordância não só com a prática científica, mas também com o empirismo. [...] E pode também ocorrer, se bem sucedida, que, a insistência, por parte da maioria dos físicos de hoje, em defender as condições de coerência, impeça, para sempre, as incertezas de se verem refutadas. Dessa maneira, a condição, ao final, dará margem a uma situação em que certo ponto de vista se petrifique em dogma, sendo posto, em nome da experiência, em posição inteiramente inacessível a qualquer crítica (FEYERABEND, 1989, pp. 52-53, grifo do autor).

O seguinte exemplo, relatado por Conner, contribui para reforçar que essa criticidade em ciência deve ser tomada em elevada consideração, para evitar a consolidação de visões dogmáticas, tão prejudiciais a esse empreendimento que tem como finalidade a construção de um saber dinâmico, pois assim deve ser a percepção humana do mundo: em constante aprimoramento. Ele discute o “imperialismo da física”, que dominou fortemente os caminhos científicos no século XX. Segundo ele, tratou-se de uma criação das políticas governamentais norte-americanas, a partir do papel que esse conhecimento exerceu na construção da bomba atômica. O “sucesso” prático dele propiciou o surgimento do que Conner chamou de alguns “aristocratas da física” após a Segunda Guerra Mundial, que se tornaram os porta-vozes da ciência dos

Estados Unidos. Do livro de Daniel S. Greenberg Science, Money, and Politics (2003), Conner destaca a seguinte perspectiva:

[It was them] who implanted their values, including disdain for the social and behavioral sciences, on government science policy for decades. The social and behavioral sciences were […] arrogantly dismissed as the “soft sciences” by the reigning physicists of postwar science (who regarded themselves, along with chemists, mathematicians, and biologists, as practitioners of the “hard sciences”)82 (GREENBERG, 200383 apud CONNER, 2005, pp. 12).

Diante dessa complexidade de questões socioculturais e econômicas envolvendo a produção científica, Conner ressalta, uma vez mais, o sentido de contínua revisão interna que não pode faltar à ciência:

The traditionalists who portray science as “pure theory” do so in order to place it beyond criticism. That view of science is frequently an adjunct to reactionary political views because it supposedly offers a source of unchallengeable authority, like religion, and thereby serves as a support for authoritarianism. But many open-minded scholars, radical feminists, and environmental activists reject that notion and refuse to bow down before deified Science84 (CONNER, 2005, p. 13).

No quesito autoridade, comparada à religiosa de outros tempos, não seria absurdo conjecturar que, pelo fato de a ciência ocidental ter surgido num contexto histórico-cultural arraigado de uma forte atuação social da religião, com suas liturgias, suas regras, seus métodos e seus ritos de glorificação, é provável que essa mesma ciência, ao tentar diferenciar-se desses aspectos característicos de instituições religiosas, percebendo ou não, tenha incorporado tais particularidades. Ou podemos mesmo deduzir que essa questão da autoridade e a forma com que se lida com ela em sociedade sejam um aspecto inerente ao ser humano, não exclusivamente de quem atua em ciência e religião, mas também nas demais áreas da sociedade, talvez até em culturas diferentes. Isso reforça a visão de que a ciência enquanto construção sociocultural não pode ser desvinculada dos parâmetros históricos em que se desenvolve. Thuillier (1994, p. 15) aponta:

82 Tradução livre: [Foram eles] que implantaram seus valores — incluindo o desdém pelas ciências

sociais e comportamentais —, na política governamental para a ciência há décadas. As ciências sociais e comportamentais foram [...] arrogantemente descartadas como as “ciências moles” pelos físicos reinantes da ciência pós-guerra (que se consideravam, junto com os químicos, matemáticos e biólogos, como praticantes das “ciências duras”).

83 GREENBERG, Daniel S. Science, Money, and Politics. University Of Chicago Press, 2003, pp. 451-

453.

84 Tradução livre: Os tradicionalistas que retratam a ciência como “teoria pura” agem dessa forma, a fim

de colocá-lo acima da crítica. Esse ponto de vista a respeito da ciência é frequentemente um complemento a visões políticas reacionárias porque supostamente oferece uma fonte de autoridade indiscutível, como a religião, e, assim, serve como um suporte para o autoritarismo. Mas muitos estudiosos de mente aberta, feministas radicais e ativistas ambientais rejeitam essa noção e se recusam a curvar-se diante de uma Ciência deificado.

Para falar como certos especialistas da antropologia cultural, tudo se passa como se a ciência fosse uma atividade sagrada e protegida por rígidos tabus. O cidadão comum poderia imaginar que as ciências são humanas, muito humanas — e às vezes demasiadamente humanas. Assim, urge afirmar seu caráter transcendente. Comparada aos conhecimentos profanos, ela deve aparecer como resultado de uma busca que em muitas ocasiões foi explicitamente descrita como religiosa.

Ainda que a racionalidade esteja permeada por todos esses fatores e não seja uma ferramenta perfeita, é importante realçar que Thuillier chama a atenção para o perigo do pensamento extremo de alguns sociólogos da ciência que questionam de forma radical as bases racionais desse campo do conhecimento humano. Eles reduzem a produção do saber apenas a uma relação de poder. A idolatria demasiada à racionalidade tem levado os pesquisadores desse campo a desenvolverem ferramentas analíticas para demolir esse mito, produzindo racionalmente um combate à racionalidade, o que pode talvez conduzir a uma ideologia que estimule a irracionalidade, resultando no fim da própria ciência com tal. Assim, um exagero para combater outro excesso acaba sendo pouco frutífero... Mas esse tipo de perspectiva pode ser encarado como um alerta para a ciência revisar suas bases conceituais, aprimorando-se diante dos novos desafios que surgem. Esse posicionamento desmedido não é o que Thuillier adota, a despeito de todas as contradições que existem no campo científico. O autor ainda acredita no valor desse trabalho, aceitando, convivendo e desenvolvendo-se dentro de seus limites.

Estamos aqui diante de uma lógica binária muito simples. Ou se é Racional, ou não se é. Ou se está a favor da ciência, ou se está contra ela. Na minha opinião, é preciso sair destes dilemas completamente arbitrários. Mais uma vez, a atitude que defendo não consiste em repudiar a ciência, em negar em bloco seu valor e a utilidade de suas teorias etc. Mas em enxergar seus limites; em reconhecer que os homens de ciência são precisamente homens, e não espíritos puros; em compreender que “o método experimental” define um ideal mas não previne automaticamente contra os erros; em admitir que qualquer pesquisa científica envolve pressupostos cujo valor absoluto não está assegurado; em reconhecer igualmente que na base da construção dos “fatos” estão certas escolhas que talvez venham a ser contestadas; e assim por diante85 (THUILLIER, 1994, p. 30).

O exame analítico de Thuillier considera a ciência uma forma útil de se atuar no mundo, mas destaca que é uma entre várias ferramentas para tal empreendimento. Ele lança “uma luz particular sobre o mundo”, todavia, nada comprova que apenas esse raio seja capaz de revelar a realidade tal como ela é. Relativizar a atividade científica não é desconsiderar o avanço que ela trouxe aos povos. Significa vê-la como de fato é, e a partir disso encontrar caminhos para seu melhor desenvolvimento. O autor afirma: “A

85 Essa postura também parece adequada ao analisar algumas ideias de Feyerabend, a fim de não incorrer

no pensamento extremo de eliminar qualquer forma de método na ciência pelo simples fato de os métodos serem insuficientes diante da totalidade do conhecimento, e, por isso, considerar o “vale-tudo” no terreno das atividades científicas.

ciência moderna, em poucas palavras, nos faz perceber relações significativas; a derrapagem cientificista só começa a partir do momento em que se considera que nenhuma outra maneira de compreender o real é possível” (THUILLIER, 1994, p. 31).

2.8. Reflexões finais

Ciência: uma importante construção sociocultural produzida pelos seres humanos, que, unida à arte e à religião, é oriunda de um longo processo de amadurecimento biológico, psicológico e social. Por meio delas, melhores condições de adaptação foram desenvolvidas para a espécie humana, como veremos a seguir. Como expressou Stephen Jay Gould (1996, pp. 53-54):

Science, since people must do it, is a socially embedded activity. It progresses by hunch, vision, and intuition. Much of its change through time does not record a closer approach to absolute truth, but the alteration of cultural contexts that influence it so strongly. Facts are not pure and unsullied bits of information; culture also influences what we see and how we see it. Theories, moreover, are not inexorable inductions from facts. The most creative theories are often imaginative visions imposed upon facts; the source of imagination is also strongly cultural86.

E admitir esse contexto sociocultural, o palpite, o improviso, a intuição, a imaginação — isto é, a natureza humana em contato com a natureza física — deixa a ciência mais científica, se assim podemos dizer, pois se assumem com transparência as circunstâncias das lentes pelas quais se percebe a realidade, abrindo espaço para a constante criticidade indispensável ao seu progresso.

86 Tradução livre: Ciência, já que as pessoas devem produzi-la, é uma atividade socialmente integrada.

Ela avança por palpite, visão e intuição. Grande parte de sua transformação pelo tempo não registra uma maior aproximação com a verdade absoluta, mas a alteração de contextos culturais que tão fortemente a influenciam. Os fatos não são pedaços puros e imaculados de informação; a cultura também influencia o que vemos e como vemos. Teorias, aliás, não são induções inexoráveis dos fatos. As teorias mais criativas são muitas vezes visões imaginativas impostas aos fatos; a fonte da imaginação também é fortemente cultural.

3. UM OLHAR SOBRE A RELIGIÃO