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A religião é contra o progresso?

R: Estou aqui para obedecer, mas não tenho defendido esta opinião após a determinação ter sido emitida, como eu disse.

4. CIÊNCIA, RELIGIÃO E PROGRESSO 1 Considerações iniciais

4.3. A religião é contra o progresso?

Retomando a possível interpretação da passagem bíblica em que o ser humano é expulso do paraíso por ter desobedecido a Deus, utilizada como mensagem antiprogresso por parte da religião, vale recordar que essa não deve ser a único entendimento possível ao mito de Adão e Eva. Na própria tradição judaico-cristã, há contestações a esse respeito e indícios de que a religião não só o admite, bem como exalta o progresso no mundo material e investe no seu desenvolvimento.

Recorrendo novamente ao sociólogo norte-americano Robert Nisbet, ele demonstra, em capítulo de seu livro História da ideia de progresso, como o cristianismo, aliado a ideias judaicas, gregas e romanas126, dedicou-se ao desenvolvimento do saber, das artes e das ciências, tornando isso um de seus fundamentos primordiais, face o crescente interesse cristão pelo mundo. Para ser mais preciso, segundo ele, a ideia de progresso não teria alcançado tamanho poder no ocidente se não fosse pela atuação do cristianismo e dos padres da Igreja, pois, por meio deles, se enriqueceu a ideia de progresso com uma força espiritual desconhecida dos pagãos.

Refiro-me a atributos tais como a visão da unidade de todo o gênero humano, o papel da necessidade histórica, a imagem do progresso, o desenrolar através de largos períodos de um desígnio presente desde o início da história do homem, e finalmente — o que não é menos importante — uma confiança no

126 Segundo Nisbet, os gregos foram responsáveis pela ideia do “crescimento do saber através do tempo e

do avanço natural da condição humana que daí deriva”. Os judeus contribuíram com a concepção da história como sagrada, necessária e guiada por Deus. Também desenvolveram a fé numa futura idade de ouro terrena. Os romanos influenciaram o pensamento cristão com suas preocupações com as questões do mundo material e seus interesses pelo que era considerado profano (NISBET, 1985, pp. 59-63).

futuro que gradualmente cresceria e orientar-se-ia mais para este mundo em comparação com a visão do “próximo” mundo. A estes atributos deve-se acrescentar mais um: a ênfase na perfeição gradual, acumulativa e espiritual da humanidade, um processo imanente que, em seu devido tempo, culminará numa idade de ouro da felicidade na terra, o milênio com o Cristo que voltaria como rei (NISBET, 1985, p. 59, grifo do autor).

Um dos nomes citado por Nisbet que exaltou o sentido de progresso material na Terra foi Santo Agostinho (354-430). A começar por Platão127 (428/427-348/347 a.C.), a influência grega no pensamento do Bispo de Hipona foi grande e o fez reconhecer Deus “sob um enfoque progressivo de desenvolvimento” (NISBET, 1985, p. 66). O autor de História da ideia de progresso busca referência em trecho da obra A cidade de

Deus, Livro 22, em que tal fato fica claro:

Existem artes muito acima das que se chamam virtudes, e que nos ensinam como conduzir a vida e atingir a felicidade ilimitada, e que foram concedidas pela graça de Deus que é em Cristo aos filhos da Promessa e do Reino. O gênio do homem inventou e pôs em prática muitas artes maravilhosas como resultado da necessidade e também da inventividade exuberante, de modo que este vigor do espírito, tão ativo na descoberta de coisas supérfluas e também de coisas perigosas e destrutivas, testemunha a inesgotável riqueza da natureza que pode inventar, ensinar ou utilizar essas artes (AGOSTINHO apud NISBET, 1985, p. 66-67).

Ainda segundo Nisbet, para Agostinho (e citando o próprio):

Deus é evidentemente o autor ou o arquiteto de tudo, mas Ele deu aos seres humanos e aos animais “a capacidade congênita de propagar a sua espécie, sem impor-lhes a necessidade de fazê-lo”. [...] Deus “faz com que a semente se desenvolva e que evolua de algumas partes invisíveis e secretas para as formas de beleza visíveis que podemos apreciar” (NISBET, 1985, p. 66).

Essa harmonia entre a crença em Deus e a necessidade Dele para a ideia de progresso e perfeição destaca-se em Santo Agostinho. Ele parece considerar o paraíso existente na Terra e a presença de Deus em meio a tudo. Essa perspectiva difere da noção de um Deus castigador, vingativo e temeroso da ascensão do ser humano à condição divina, que expulsou a Humanidade do paraíso, e que Ele, por sua vez, tenha sido por esse povo expulso do mundo material e de si mesmo, na concepção do ocidente moderno que afastou as ideias teístas do pensamento político e social (NISBET, 1985, p. 68).

O psicanalista, filósofo e sociólogo alemão Erich Fromm (1900-1980), em sua obra O Espírito de Liberdade, analisou a relação do ser humano com Deus a partir das narrativas do antigo testamento. A interpretação que ele faz da Bíblia dá-se por meio do

127 A retomada das ideias de Platão na Europa, sendo a figura do cardeal e matemático Nicolau de Cusa

(1401-1464) bem representativa desse momento, foi importante para o progresso no fim da Idade Média e início do Renascimento, conforme demonstra o historiador da ciência Gildo Magalhães (2005, p. 140).

humanismo radical128 e ele declara-se um místico não teísta. Por isso, para ele, o antigo testamento não é a palavra de Deus, mas um livro escrito por diferentes tipos de homens, em diferentes épocas, que “expressa o gênio de um povo que por muitas gerações lutou pela vida e pela liberdade” (FROMM, 1981, p. 12). O antigo testamento é “revolucionário”, “extraordinário”, pois expressa normas e princípios que puderam ser aplicadas por milhares de anos. Suas páginas tratam da ideia de liberdade radical do ser humano e da fraternidade entre todas as pessoas.

Para analisar o conceito a partir dessas premissas, ele discorre sobre o processo que acontece com o ser humano ao transformar uma experiência em palavras.

Há simultaneamente permanência e modificação em qualquer ser humano; daí haver permanência e modificação em qualquer conceito que reflita a experiência de um homem vivo. Que os conceitos, porém, têm vida própria, e que se desenvolvem, só se pode compreender se não estiverem separados da experiência a que dão expressão. Se o conceito se torna alienado — isto é, separado da experiência a que se refere — perde sua realidade e se transforma num artefato da mente humana. Cria-se, assim, a ficção de que qualquer pessoa que usa o conceito se está referindo ao substrato da

experiência que lhe é subjacente. Quando isso acontece — e tal processo de

alienação dos conceitos é antes a regra do que a exceção — a ideia que expressa uma experiência se transforma numa ideologia que usurpa o lugar da realidade subjacente dentro do ser humano vivo (FROMM, 1981, pp. 19- 20, grifos do autor).

Essas considerações são importantes para se compreender o conceito de Deus. Além desse processo, o autor ainda explica a respeito de um fenômeno que se aplica à religião, mas também é comum à ciência: a necessidade de sistematizar-se e alcançar a totalidade do conceito a partir de uma pequena faceta apreendida da realidade. Isso faz com que o ser humano queira completar a fração do conhecimento que possui com outras ideias, para que o fragmento faça sentido num todo. E igualmente contribui para a ideologização, pois “a consciência da diferença qualitativa entre os ‘fragmentos’ e os ‘acréscimos’ não é percebida devido à intensidade do desejo da certeza” (FROMM, 1981, p. 21).

Uma vez esclarecidos os parâmetros utilizados para a análise, Erich Fromm percorre algumas questões levantadas pelo antigo testamento e pela tradição judaica pós-bíblica para refletir sobre a evolução do conceito de Deus e do Homem. Na sua perspectiva, a primeira imagem é a de um Deus autoritário e um Homem obediente. Ainda nessa estrutura, podem-se perceber sementes da independência e da liberdade que

128 Nas palavras de Fromm: “Por humanismo radical entendo uma filosofia global que ressalta a unidade

da raça humana, a capacidade que tem o homem de desenvolver suas forças e chegar à harmonia interna e ao estabelecimento de um mundo pacífico. O humanismo radical considera a independência total como a meta do homem e isso implica a penetração das ficções e ilusões para se chegar a uma plena consciência da realidade” (FROMM, 1981, p. 17). O autor busca a semente desse humanismo radical na tradição judaica e nas fontes mais velhas da Bíblia (Ibidem, pp. 16-17).

mais tarde serão predominantes. Do Deus autoritário, chega-se ao Deus monarca constitucional, que age conforme os princípios que anunciou. Agora, o Deus antropomórfico, que fez aliança com os homens, aparece como um Deus sem nome e finalmente como um Deus de Quem nenhum atributo essencial pode tornar-se conhecido129. Com isso, o ser humano adquire sua liberdade, podendo construir sua própria história sem a interferência de Deus, seguindo ou não a mensagem profética (FROMM, 1981, pp. 177-180).

Naturalmente, essa concepção não está livre de contradições e críticas130. No entanto, é interessante notar suas possíveis implicações sobre as construções humanas em geral, como é o caso da ciência e da religião. Mais especificamente na religião, percebemos que ela tem em si mesma elementos de progresso e evolução — o que nem sempre é ressaltado, predominando uma imagem de instituição ortodoxa e imutável. Como exemplo disso, um dos conceitos centrais para a maioria das tradições espirituais — Deus — sofreu modificações ao longo do tempo e a partir dos contextos socioculturais em que estavam inseridos aqueles que se tornaram autoridades e referências para a tradição. Se tal conceito recebeu alterações, que dirão as demais ideias e interpretações da realidade material e espiritual apresentadas pelas religiões!

Portanto, ainda que existam fatos que possam levar à crença de que a religião é inimiga do progresso e sinônimo de decadência, os dois exemplos citados, dentre outros que poderiam servir à análise, ajudam-nos a perceber que ocorrem na religião modificações passíveis de serem compreendidas como progresso. E há também quem demonstre que ela contribuiu para a promoção do progresso na sociedade. Por isso, é necessário valer-se de um olhar não reducionista, a fim de notar uma possível via de mão dupla no processo que envolve a religião e a ideia de progresso.