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3 CIDADES REBELDES: “A CIDADE É NOSSA OCUPE-A”

3.2 AS CIDADES E A CRISE DO CAPITALISMO

Há uma similaridade com Istambul, onde as manifestações se iniciam para preservar uma praça que se pretendia entregar a um grande shopping. Então a cidade passou a ser não apenas o palco das manifestações, mas também o objeto, aquilo que está em jogo. E o que está em jogo é a democracia urbana como expressão da democracia social, da democracia política. O que está em jogo é a preservação dos espaços públicos depois de 20 anos de neoliberalismo. Tudo isso está em jogo em nossa cidade. E os megaeventos, as remoções, a resistência às remoções, a conflituosidade urbana, eles expressam a crise desse modelo. E expressam também, a meu ver, a incapacidade das elites dominantes de darem uma resposta a essa crise. (VAINER, 2014)131

No debate contemporâneo em torno da produção da cidade e, consequentemente, das novas formas de conflitos urbanos, destaco, sobremaneira, a visão que relaciona, produtivamente, a interação entre a reprodução do capital e a produção do espaço socialmente construído.

Em Harvey (2014), por exemplo, essa articulação entre a produção do espaço urbano e o desenvolvimento capitalista, é, notoriamente, evidenciada como uma das formas mais importantes no processo de acumulação. Como lembra o geógrafo marxista,

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Em “Estelita: não é apenas por um cais”, matéria publicada em 20 de junho de 2014 na Revista Carta Maior. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cidades/Estelita-nao-e-apenas-por-um-cais/38/31204. Acesso em: 30 de maio de 2014.

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Em “Após megaeventos, Rio será uma cidade muito mais desigual”. Disponível em: http://www.viomundo.com.br/denuncias/carlos-vainer-com-pretexto-dos-megaeventos-rio-promove-limpeza- urbana-e-sera-cidade-mais-desigual-em-2016.html. Acesso em: 30 de maio de 2014.

O capitalismo, fundamenta-se como nos diz Marx, na eterna busca de mais valia (lucro). Contudo, para produzir mais valia, os capitalistas têm de produzir excedentes de produção. Isso significa que o capitalismo está eternamente produzindo os excedentes de produção exigidos pela urbanização. A relação inversa também se aplica. O capitalismo precisa da urbanização para absorver o excedente de produção que nunca deixa de produzir. Dessa maneira surge uma ligação íntima entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbanização. (HARVEY, 2014, p.30).

Para o autor, quando ocorrem as crises de superacumulação, e/ou superprodução industrial, de natureza cíclicas, os capitalistas investem o excedente, não mais nos setores produtivos tradicionais, mas na produção de infraestruturas e equipamentos no espaço urbano, que permitam novas formas de apropriação para além da mais valia tradicionalmente obtida através da produção industrial. Essa prática, segundo Harvey, “desempenha um papel particularmente ativo...ao absorver as mercadorias excedentes que os capitalistas não param de produzir em busca da mais-valia”. (HARVEY, 2014, p. 33).

Por essa visão, o solo urbano torna-se, ao mesmo tempo, objeto e realizador do excedente e obstáculo a sua obtenção, na medida em que a elevação dos preços, tanto do solo, como dos imóveis, inibe a continuidade do processo, nos níveis em que vinha se desenvolvendo. Por outro lado, cabe ainda registrar, como nos lembra Ermínia Maricato (2015), que a terra urbana, enquanto mercadoria, é um produto resultante de:

[...] de determinadas relações de produção. Se lembrarmos que a terra urbana, ou um pedaço da cidade, constitui sempre uma condição de monopólio – ou seja, não há um trecho ou terreno igual a outro, e a sua localização não é reproduzível – estamos diante de uma mercadoria especial que tem o atributo de captar ganhos sobre a forma de renda (MARICATO, 2015, p. 23)132.

Desse modo, a produção do espaço urbano está, na confluência da (re)produção do capitalismo, atravessada e marcada, cada vez mais, pela mercantilização da terra, pela especulação imobiliária e pela financeirização da moradia (ROLNIK, 2015)133. Assim,

Como a própria construção da cidade se transforma em negócio, em motor do desenvolvimento econômico por meio da multiplicação do capital, é óbvio que foi surgindo progressivamente a tendência de ampliação do campo

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MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popular, 2015. 133

ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.

da produção imobiliária, do território da geração de mais-valia, pela sua proximidade dos fatores de produção. (VALLEJO, 2015, p. 12).134

Dessa maneira, a propriedade urbana como produto e a construção de infraestruturas como modo de ampliação de seu campo potencial de oferta tornam-se complementares:

A captação antecipada da ingente mais-valia que implica na transformação de um território rural em um espaço urbano é a mais importante atividade, e também a mais conflitante, que tem sustentado o sistema de forma contínua nos dois séculos de existência do urbanismo como disciplina técnica e como marco jurídico. (VALLEJO, 2015, p. 12).

Naturalmente, esse fluxo não acontece sem a realização de processos expulsórios, da exacerbação dos conflitos de interesse, da multiplicação das tensões e disputas, da proliferação das formas de espoliação.

Vivemos cada vez mais em cidades divididas, fragmentadas e propensas a conflitos, pois “o processo de urbanização não só tem mudado a organização das cidades, mas também, e principalmente, tem gerado um modo estilo de vida, que estende praticamente por todo o seu território” (VALLEJO, 2015 p. 12). O modo como miramos o mundo e definimos as possibilidades, depende, sobretudo, do lado “da pista em que nos encontramos e a que tipo de consumismo temos acesso”. (HARVEY, 2014, p. 47). Assim, por essa visão, há uma estreita relação entre urbanização e formação das crises, na medida em que muito desse ambiente está vinculado a péssimos investimentos em infraestrutura.

Sobre este aspecto da crise, Harvey (2014) sugere que ela decorre das contradições inerentes ao capitalismo, na contradição existente entre o valor de uso e valor de troca. Para ele, o foco no valor de troca de algo tão fundamental como o direito à habitação gerou um descompasso econômico que submeteu aos influxos do mercado financeiro aqueles que buscavam adquirir uma residência, sem qualquer forma de preparo ou proteção.

No livro “Os Limites do Capital”135

, publicado no Brasil apenas em 2013, o autor britânico busca, entre outros aspectos, apresentar e aprofundar a análise marxista da urbanização, fazendo brotar da teoria de Marx uma interpretação dos processos urbanos, e não simplesmente uma “aplicação” de sua teoria. Ao analisar o crescimento geográfico desigual,

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VALLEJO, Manuel Herce. O negócio da cidade: evolução e perspectiva na cidade contemporânea. Tradução Salvador Antonio Bernardino Pane Baruja. Rio de Janeiro: Mauad X: Inverde, 2015.

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Harvey salienta o envolvimento íntimo entre capital fixo e capital fictício que, por sinal, eleva ao extremo a contradição entre o sistema monetário e o sistema de crédito, ou entre a mercadoria e o dinheiro, etc.

Assim, diferente de uma reflexão que se torna espacialmente significativa apenas em função das características geográficas absolutas e relativas da propriedade da terra, o problema categorial do capital fixo repercute internamente no conceito de renda da terra, o que demonstra a sua natureza fundamentalmente fictícia. Por essa visão, teríamos que os extremos da fluidez do capital monetário e da imobilidade do capital fixo conduzem o movimento da acumulação capitalista por vias sinuosas.

O desenvolvimento geográfico desigual e a expansão não podem curar as contradições internas do capitalismo. Os problemas do capitalismo não podem, portanto, ser resolvidos através da magia instantânea de algum "ajuste espacial". No entanto, é importante reconhecer que as crises mais gerais surgem do caos e da confusão de eventos especiais locais. Elas são construídas sobre processos concretos de trabalho individuais e trocas no mercado, transformando-se em crises globais na qualidade de trabalho abstrato, na forma valor. As restrições temporais e espaciais ao tempo de rotação asseguram a produção de uma variedade de diferenciações regionais. Portanto, crises são construídas através do desenvolvimento geográfico desigual, coordenado por formas organizacionais hierárquicas. E a mesma observação se aplica aos impactos da desvalorização. Eles sempre são sentidos em lugares e tempos particulares, são construídos em configurações regionais, setoriais e organizacionais distintas. Os impactos podem ser espalhados e até certo ponto atenuados por meio do deslocamento de fluxos de capital e de trabalho entre setores e regiões (muitas vezes simultaneamente) ou por meio de uma reconstrução radical de infraestruturas físicas e sociais. As crises globais são construídas através do impacto das crises de deslocamento menos traumáticas (HARVEY, 2013, p. 544).

Com efeito, como destaca Harvey, a crise estrutural do capital destas últimas décadas, coloca a classe dominante diante de questões complexas, se considerarmos, principalmente, as atuais condições de reprodução sociometabólica do capital, sua lógica, baseada na busca da acumulação ampliada:

Uma das contradições do capitalismo agora é que o capital precisa crescer. Mas as condições nas quais isso pode ocorrer são cada vez mais restritas. É muito difícil achar novos lugares para ir e novas formas de atividades produtivas que possam absorver a enorme quantidade de capital que está buscando por atividades lucrativas. Como consequência, muito capital agora vai para as atividades especulativas, para patrimônio, compra de terras, commodities, criam-se bolhas. Esse é o problema real: como o capital pode

continuar crescendo nos próximos anos. Está ficando cada vez mais difícil para o capital achar formas de fazer isso. O crescimento está colocando muito estresse sobre o ambiente. (HARVEY, 2011)136.

Em “Fissurar o Capitalismo”, Jonh Hollow (2013)137

, por outro lado, oferece-nos uma instigante leitura acerca dada insatisfação e da inconformidade com o capitalismo por parte de inúmeras pessoas comuns138 espalhadas pelo mundo, compartilhando exemplos de inconformismos e revoltas.

Defendendo a ideia da necessidade humana de romper com o capitalismo, o autor nos revela as “fissuras” iniciada, enquanto ruptura, com a recusa, com o “não”, reveladora, por sua vez, de um “outro fazer”, devendo-se, portanto, tornar-se uma “negação-e-criação”. As fissuras, desse modo, nascem de uma atividade de ruptura que é, antes de qualquer outra coisa, produção subjetiva, individual e coletivamente, decorrente, muitas vezes, das pequenas ações cotidianas que contribuem para espaços de fuga dentro do capitalismo.

Ao invés de criar divisões bem definidas (entre o líder da guerrilha e a dona de casa [...], precisamos achar formas de tornar visíveis e fortalecer estas linhas de continuidade que estão com tanta frequência muito submersas. É por isso que falamos em fissuras: para entender a conexão das nossas múltiplas rebeldias e criações alternativas por meio das linhas de falha invisíveis ou quase invisíveis (e rapidamente cambiantes) na sociedade (HOLLOWAY, 2013, p. 37).

Nesse sentido, as “fissuras” terminaria por impor uma revisão do próprio conceito de cidade, pois instauram uma negação das relações econômicas, sociais e espaciais pré-

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HARVEY, David. A crise capitalista também é de urbanização Crisis of Capital accumulation, urban issues,

state. Jornal Página 12, [S. l.], 2011. Entrevista Disponível em:

<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar. cfm?materia_id=17303>. Acesso em: 30 de maio de 2014..

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HOLLOWAY, John. Fissurar o capitalismo. Traduzido por Daniel Cunha. São Paulo: Publisher Brasil, 2013. 272 p.

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São diversos exemplos trazidos pelo autor, de pessoas comuns que recusam a lógica do dinheiro para dar forma a suas vidas. Do idoso que cultiva hortas verticais em sua sacada como forma de revolta contra o concreto e a poluição que o cerca. Do funcionário público que usa seu tempo livre para ajudar doentes com aids. Da professora que dedica sua vida contra a globalização capitalista. Dentre as muitas e diversas formas de fissura descritas por Holloway encontram-se os movimentos autonomistas como o EZLN, a criação de laços comunitários que não estejam guiados por interesses econômicos, a instalação de cozinhas populares, a atuação de pessoas que distribuem gratuitamente na internet versões hackeadas de programas de grandes empresas da área de informática e o squat, nome dado à prática de ocupação de edifícios abandonados para sua utilização como residências ou centros comunitários.

determinadas. Emergem, assim, os novos processos de mobilização, de construção de contrapoderes, saltando aos olhos os novos movimentos sociais e as novas formas de luta. Trata-se de uma práxis urgente, sobre a luta pelo espaço, que, no limite, é a luta pela sobrevivência (HOLLOWAY, 2013).

Assim, a meu ver, se cabe, por um lado, evidenciar a estreita relação entre desenvolvimento e crise capitalista em seus processos de urbanização, incumbe, por outro, compreender, além das contradições e dos dilemas das cidades onde as fronteiras entre o legal/ilegal, o licito/ilícito e regular/irregular, formal/informal, as “fissuras”, as lutas e as resistências. Dizendo de outra maneira, a crise capitalista no contexto urbano, põe na ordem do dia, cada vez mais, a necessidade de emergência de uma agenda de transformação social mais profunda, de uma construção de uma nova sociabilidade.

Com efeito, é possível acompanhar no espaço urbano, o acirramento das lutas e das disputas pela apropriação e uso de suas porções e territórios. Acentuam-se as expressões da desigualdade social impressas no espaço urbano: por um lado, aparecem as áreas nobres e bem dotadas de infraestrutura e de serviços urbanos, por outro, configuram-se zonas onde a precariedade e a inexistência de elementos básicos da urbanização indicam uma ausência histórica de políticas urbanas, de segmentos pauperizados, para as quais a modernização capitalista não trouxe mudanças efetivas nas condições de vida.

A seguir, frente a esse cenário, veremos as formas de lutas, resistência e oposição à acumulação desenfreada que se expressam no contexto da cidade do Recife, abrindo-se para um rico campo de debate em torno do devir de todo um aparato construído em torno do direito à cidade.