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CIDADES INVISÍVEIS X DIREITO À CIDADE: [RE]FAZENDO OS

2 CIDADES INVISÍVEIS X DIREITO À CIDADE

2.1 CIDADES INVISÍVEIS X DIREITO À CIDADE: [RE]FAZENDO OS

As cidades, atualmente, assumem dimensões diversas: há a cidade real, marcada pelas coordenadas geográficas, território de concentração, competição, segregação ou exclusão, espaço de fluxo econômico e informacional. Há, igualmente, a cidade do imaginário, ou a cidade imaginada, em que circulam valores, imagens, símbolos e afetos, desenhada pelas marcas da memória. É a cidade do “nosso desejo, espelho de nossas paixões, experiências e expectativas”52, construída e reconstruída. Nesta, como nos lembra Willi Bolle (2000)53,

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LÉFÈBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001. 52

NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. A cidade imaginada ou o imaginário da cidade. Hist. cienc. Saúde

Manguinhos, RiodeJaneiro, v.5, n.1, p.115-123, June 1998. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701998000100006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 de maio de 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59701998000100006.

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BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamim. 2. ed. - São Paulo: EDUSP, 2000.

existe uma “topografia móvel”, compondo “fisiognomias” que se reconstroem no entrecruzamento entre a nossa emoção e as ruas da cidade. Há, também, a cidade virtual, criada pela rede infinita da web e reconstituída tridimensionalmente em meio digital com precisão de detalhes que nos conduzem a novas representações, escalas, abstrações e interações espaciais, erigindo o que alguns autores chamam de “cibergeografia” (DODGE, 199954; JOHANSSON, 200055).

Em cada uma delas, por assim dizer, indivíduo/sociedade, significante/significado, sujeito/objeto, objetividade/subjetividade, combinam-se num jogo, consciente e inconsciente, atravessado por desejos e pulsões que conferem uma dimensão biográfica da cidade, à “minha cidade”, meu “lugar de vida”. Carregam, assim, uma espacialidade efetivamente vivida e socialmente criada, ou seja, é um produto de processos sociais e rebatimentos materiais, ao mesmo tempo concreta e abstrata.

Mas há, por outro lado, as cidades invisíveis, subsumidas, não vistas, reconhecidas ou compreendidas por todos. Não falo aqui dos equipamentos físicos que as compõem, mas de uma não-existência para o outro, para os outros, muito mais dos elementos invisibilizados, afastados para a posição de interditos ou de esquecimentos. Elas se apresentam, social e espacialmente, como um espaço residual. Nelas, também, como nos lembra Boaventura de Souza Santos (2002), encontramos as formas sociais de inexistência “porque as realidades que elas conformam estão apenas presentes como obstáculos em relação às realidades que contam como importantes, sejam elas realidades científicas, avançadas, superiores, globais ou produtivas” (SANTOS, 2002, p. 251)56

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A condição de invisibilidade na cidade e a predominância de determinadas identidades acontece por diversos mecanismos, mas passa, principalmente, pela negação do espaço do outro, de sua existência, anulando, seja pelo preconceito econômico, de classe ou pela discriminação do uso dos espaços. Por vezes, a participação na cidade inscreve-se pelas regras do consumo, sendo aqueles que não o “pratica” apartados dos lugares, haja vista o consumo

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DODGE, M. The geographies of cyberspace. CASA Working Paper Series, n. 8, May. 1999. Disponível em <http://www.casa.ucl.ac.uk/working_papers/paper8.pdf>. Acesso em: 10 de nov. 2013.

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JOHANSSON, T. D. Visualization in cyber-geography: reconsidering cartography ́s concept of visualization in current user centric cybergeographic cosmologies. CASA Working Paper Series, n. 17, Jan. 2000. Disponível em <http://www.casa.ucl.ac.uk/working_papers/paper17.pdf>. Acesso em: 10 de novembro de 2013.

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 2002, 63, 237-280.

passar a ser a razão da existência do espaço, em detrimento de outros valores, como nos lembra Lefebvre quando trata da cidade no contexto capitalista:

Já é bem conhecido o duplo caráter da centralidade capitalista: lugar de consumo e consumo de lugar. [...] Nesses lugares privilegiados, o consumidor também vem consumir o espaço; o aglomera do dos objetos nas lojas, vitrinas, mostras, torna-se razão e pretexto para reunião das pessoas; elas vêm, olham, falam, falam-se. E é o lugar do encontro, a partir do aglomerado das coisas. Aquilo que se diz e se escreve é antes de mais nada o mundo da mercadoria, a linguagem das mercadorias, a glória e a extensão do valor de troca. Este tende a reabsorver o valor de uso na troca e no valor de troca. No entanto, o uso e o valor de uso resistem obstinadamente: irredutivelmente. (LEFEBVRE, 2001, p. 130-131.).

Assim, nessa perspectiva, a maneira e a capacidade de consumir determina as posições do sujeito, permitindo sua inserção no exercício da cidadania e alterando o acesso aos direitos abstratos como o voto, participação política, pertencimento a entidades de classe.

Desse modo, a fronteira entre a cidade visível e a cidade invisível não é apenas simbólica e identitária, mas é também, e principalmente, material e política, decorrente, assim das diversas relações econômicas, sociais e identitárias. Resulta, portanto, em grande medida das tendências hodiernas de aplicação, no contexto das cidades, de um planejamento urbano hegemônico, estruturado e pautado pelas lógicas do mercado e da acumulação de capital e em um “modelo de desenvolvimento” cada vez mais distante dos interesses públicos, aprofundando a segregação socioespacial.

Ao adotar parâmetros globalizantes, focados na rentabilidade, reproduz um padrão que aprofunda desigualdades e adensa a exclusão. Uma tendência, por sinal, que termina por gerar uma “cidade dentro de outra cidade”, com ilhas de riqueza e de pobreza. Há, nessa mirada, “uma parte da realidade urbana –ilegal, oculta, ignorada –que não é objeto de teorias, leis, planos e gestão (e onde predomina a relação de favor ou clientelista), ao passo que a outra –a cidade do mercado hegemônico, a cidade oficial, formal, legal –mimetiza o debate internacional” (MARICATO & FERREIRA, 2002, p.3)57. Um panorama que, por sua vez, revela aquilo que Boaventura de Souza Santos (2007) denominou de “Pensamento Abissal” que na sua visão:

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MARICATO, Ermínia; FERREIRA, João Sette Whitaker. Operação Urbana Consorciada: Diversificação Urbanística Participativa ou Aprofundamento da Desigualdade? Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, p. 215-250, 2002.

Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. (SANTOS, 2007, p.4)

Nesse contexto, os espaços urbanos aparecem cada vez mais similares entre si, “condição de um mesmo processo de produção e consumo, projetam no e sobre o espaço uma descaracterização generalizada. Tudo se tornando urbano e fundamentalmente igual, a cidade artificializada ao extremo gera a vertigem e aproxima-se da bricolagem” (SILVA, 2010, p. 19)58. Neles, tem sido comum, e cada vez mais, acompanharmos a substituição do “valor de uso por valor de troca e as relações humanas concretas [e específicas] por relações abstratas e universais entre vendedores e compradores”(GOLDMANN, 1977, p. 145)59.

Assim, o espaço tem se tornando o meio de reprodução das relações sociais, sendo hierarquizado, objeto de investimentos públicos e privados, reserva de valor, mercadoria. De um dia para o outro, erguem-se novos prédios, muda-se o trânsito, realizam-se megaeventos, concentram-se pessoas, serviços, edifícios.

Observando o ir-e-vir cotidiano das pessoas, é possível captar os passos apressados que os levarão a sua vida de trabalho: o homem como produtor de bens, reprodutor de modo de produção e de sua própria força de trabalho, como consumidor de bens e serviços. Observando um pouco mais, capturamos o consumidor: o homem de posses, estimulado por todos os lados com propagandas com seus símbolos vigorosos, imagens e palavras provocantes, mesmo que o consumo não seja para todos.

A cidade, dessa maneira, aparece como um espaço repressivo, opressor, violento. Lugar de medo e insegurança, não apenas da violência, mas de não conseguir sobreviver com os recursos de que dispõe; insegurança quanto ao amanhã, ao trabalho, à moradia, à comida, etc. Assim, não se liberam as possibilidades de “ser-com”, pois o dia a dia não permite o encontro, como Engels (1986) de modo tão pertinente nos recorda:

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SILVA, VCP. Palmas, a última capital projetada do século XX: uma cidade em busca do tempo. [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 294 p. ISBN 978-85-7983-092-1. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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GOLDMANN, Lucien. A reificação das relações sociais. In FORACCHI, Marialice Mencarini, MARTINS, José de Souza. Sociologia e sociedade: leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977.

[...] as pessoas cruzam-se apressadas como se nada tivesses em comum, nada a realizar juntas, e a única convenção que existe entre elas é o acordo tácito pelo qual cada um ocupa a sua direita no passeio afim de que as duas correntes da multidão que se cruzam não se constituam mutuamente obstáculo [...]. (ENGELS, 1986, p. 36)60.

Destarte, é possível inferir que as cidades, no contexto atual, estão marcadas pela impermanência, pela dispersão, pelo desamparo e pela fragmentação espacial, mas, igualmente, são caracterizadas como lugar de contestação, assinalada pelo espírito rebelde e crítico. Essas cidades se tornam, desse modo, o lugar da interdição dos direitos sociais, da pobreza e da exclusão, embora sejam, contraditoriamente, cidades de vastos crescimentos econômicos.

As cidades se tornaram empresas (VAINER, 2000), sendo apropriadas por uma classe social que explora não apenas o trabalho, mas a própria reprodução da vida. Por sua vez, os lucros que a cidade produz são destinados à pequena parcela da população, enquanto as mazelas produzidas por esse processo atingem grandes contingentes populacionais (HARVEY, 2012)61. Essa situação, segundo Vainer (2000)62 vai representar o sacrifício da política. Como na lógica interna das empresas, não existe oportunidade para exercer a cidadania que acaba sendo perdida. A democracia real seria assim, segundo do autor, substituída pela “democracia direta do capital” que representa um modelo de gestão pública em que há muitas facilidades para que proprietários, agentes financeiros e etc.

Mas, frente a este cenário, é possível reconfigurar as cidades, trazendo soluções para os problemas urbanos? É viável enfrentar os interesses do poder econômico dominante? É exequível promover iniciativas geradoras de alguma democratização do espaço urbano? Existe um modelo de urbanismo alternativo? Podemos, frente à movimentação conflituosa, encontrar saídas? Afinal, o que é a cidade? E para onde ela vai?

Compreendo, ao iniciar o percurso de reflexão, que se o espaço é o lugar da reprodução, é também lugar da contestação, do encontro, da rebeldia, lugar da ação. Penso a cidade, também, como um corpo vivo constituído a partir dos desejos e necessidades de apropriações daqueles que nela vivem, mesmo sua vontade não sendo prevalecente. Sempre

60 ENGELS, Friedrich. As grandes cidades. In: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global Editora, 1986.

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HARVEY, D. Rebel Cities: From the Right to the City to the Urban Revolution. Londres: Verso, 2012. 62

VAINER, C. Pátria, Empresa e Mercadoria. In: ARANTES, O.; MARICATO, E.; VAINER, C. (Orgs.) A

há, no entrecruzamento das diversas moralidades urbanas, uma possibilidade de resistência, de desobediência e insurreição. Criam-se os espaços de transgressão, quando outros usos que não aqueles originariamente destinados, são descobertos pelos moradores, que passam a usufruir deles à sua maneira.

Assim, em contrapartida ao esvaziamento do valor de uso dos espaços públicos, tenho acompanhado, no ambiente das cidades, a convergência de diferentes contradições, conflitos e tensões, expondo publicamente a falta de direitos de cidadania, a banalização da miséria e da desigualdade. A despeito da luta desproporcional de forças, vejo a assunção de diferentes atores sociais que, a partir da indignação, tem oferecido visões e propostas alternativas ao modelo de “desenvolvimento urbano”.

Vinculado a esse contexto, uma onda atual de movimentos liderados, principalmente, por jovens (Cairo, Madrid, Santiago, Nova York, Londres, etc.) se espalhou sugerindo que “há algo de político no ar das cidades lutando para se expressar” (HARVEY, 2014, p. 211)63

, empregando, muitas vezes, estratégias urbanizadas de revolta e sugerindo estruturas alternativas de governança urbana, traduzidas na busca por direitos de cidadania e “direitos à cidade”. Ou seja, mistura, em certa medida, iniciativas reformistas e revolucionárias no contexto urbano, frente a um conjunto de “problemáticas urbanas” que amealham a contemporaneidade, num processo de busca de redefinições das formas, funções e estruturas da cidade (econômicas, políticas, culturais, etc.), bem como as necessidades sociais inerentes à sociedade urbana, que, inclusive, compreende a:

Necessidade de segurança e de abertura, a necessidade de certeza e a necessidade de aventura, a da organização do trabalho e a do jogo, as necessidades de previsibilidade e do imprevisto, de unidade e de diferença, de isolamento e de encontro, de trocas e de investimentos, de independência e de comunicação, de imediaticidade e de perspectiva de longo prazo. (...). Trata-se da necessidade de uma atividade criadora, de obra (e não apenas de produtos e de bens materiais consumíveis), necessidades de informação, de simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas. Através dessas necessidades específicas vive e sobrevive um desejo fundamental, do qual o jogo, a sexualidade, os atos corporais tais como o esporte, a atividade criadora, a arte e o conhecimento são manifestações particulares e momentos, que superam mais ou menos a divisão parcelar os trabalhos. Enfim, a necessidade da cidade e da vida urbana só se exprime livremente nas perspectivas que tentam aqui se isolar e abrir os horizontes”. (LEFEBVRE, 2001, p. 105).

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HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Tradução Jefferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

Assim, frente ao panorama de cidades cada vez mais divididas, fragmentadas e propensas a conflitos, afirma-se como um apelo, como uma exigência, o “direito à cidade”64, anunciada como uma forma de “fugir à cidade deteriorada e não renovada, à vida urbana alienada antes de existir ‘realmente’” (LEFEBVRE, 2001, p. 117).

Não se trata de um retorno às cidades tradicionais, mas, sim, como um direito à vida urbana, transformada, renovada, permitindo a realização prático-sensível. É por esse motivo, como nos lembra Harvey (2014) que o “direito à cidade deve ser entendido não como um direito ao que já existe, mas como um direito de reconstruir e recriar a cidade como um corpo socialista com uma imagem totalmente distinta: que erradique a pobreza e a desigualdade social e cure as feridas da desastrosa degradação ambiental” (HARVEY, 2014, p. 247).

Esse olhar é necessário para, antes de tudo, compreender que estou falando muito do que acesso aos recursos que a cidade incorpora que, inclusive, depende “inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização” (HARVEY, 2014, p. 28). É, portanto, um direito mais coletivo do que individual, tanto como palavra de ordem quanto como ideal político, que reivindica algum tipo de poder configurador sobre os processos de urbanização, sobre o modo como nossas cidades são feitas e refeitas. Um direito vocacionado a mudar a vida e reinventar a cidade de acordo com seus mais profundos desejos, colocando a ocupação do espaço público como agenda e prática.

Sobre esse tema, vale registrar que em 2006, durante a realização Fórum Social Mundial Policêntrico de 2006, realizado em Porto Alegre –RS, foi redigida a “Carta Mundial do Direito à Cidade”. Nela, são evidenciados princípios e valores suportados em diferentes tratados internacionais, reunindo uma verdadeira síntese de direitos ambientais, sociais, econômicos e culturais, contribuindo, sobremaneira, com as lutas urbanas e com o processo de reconhecimento no sistema internacional dos direitos humanos do direito à cidade. Nesse sentido, revela e assegura, do ponto de vista do direito difuso, o compromisso das autoridades públicas internacionais e locais no sentido de garantir o respeito e a proteção dos direitos

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No âmbito internacional, o delineamento mais preciso a respeito do entendimento sobre o direito à cidade começou a ser elaborado a partir de 2001, no I Fórum Social Mundial (Porto Alegre/RS/Brasil), quando movimentos sociais e organizações não-governamentais de todo o mundo, articulados com a luta pela reforma urbana, tiveram a iniciativa de elaborar um documento que representasse a materialização legal desse direito. Os debates tiveram continuidade no II Fórum Social Mundial (Porto Alegre/RS/Brasil, 2002) e no Fórum Social das Américas (Quito, 2004) e no Fórum Mundial Urbano (Barcelona, 2004), sendo que, finalmente, no Fórum Social Mundial realizado em 2005 na cidade de Porto Alegre –RS/BR, obteve-se a redação definitiva e aprovação da “Carta Mundial pelo Direito à Cidade”.

humanos para todos os habitantes das cidades, principalmente para as pessoas que se encontram em estado de vulnerabilidade, conforme é possível observar em seu artigo I, 2:

O Direito a Cidade é definido como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. Este supõe a inclusão do direito ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias; de fundar e afiliar-se a sindicatos; de acesso à seguridade social e à saúde pública; de alimentação, vestuário e moradia adequados; de acesso à água potável, à energia elétrica, o transporte e outros serviços sociais; a uma educação pública de qualidade; o direito à cultura e à informação; à participação política e ao acesso à justiça; o reconhecimento do direito de organização, reunião e manifestação; à segurança pública e à convivência pacífica. Inclui também o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial, sexual e cultural, e o respeito aos migrantes. (Carta Mundial de Direito pela

Cidade, 2006, Artigo 1º).

O documento, por essa visão, termina por reivindicar dos poderes públicos constituídos que sejam cumpridas as funções sociais da cidade em favor de todos os habitantes, particularmente dos segmentos sociais vulneráveis, tornando-se uma questão fundamental ao planejamento da cidade e à sua sustentabilidade, compreendida de forma ampla e articulada à qualidade de vida de todos os seus moradores.

Para tanto, apresenta denúncias sobre a forma como a “população urbana, em sua maioria, está privada ou limitada – em virtude de suas características econômicas, sociais, culturais, étnicas, de gênero e idade – de satisfazer suas necessidades básicas” (Carta Mundial de Direito pela Cidade, 2006), alarmando-nos, desse modo, para a forte segregação e a consequente deterioração da convivência social.

O foco, portanto, reside na ampliação e melhoria “da qualidade de vida das pessoas centrado na moradia e no bairro até abarcar a qualidade de vida à escala da cidade e de seu entorno rural, como um mecanismo de proteção da população quevive nas cidades ou regiões em acelerado processo de urbanização” (Idem, 2006). Isso implica em enfatizar uma nova maneira de promoção, respeito, defesa e realização dos direitos civis, políticos, econômicos,

sociais, culturais e ambientais garantidos nos instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos65.

Ademais, o que a Carta acaba por jogar luz, a partir da atuação de um conjunto de movimentos populares, organizações não governamentais, associações de profissionais, fóruns e redes nacionais e internacionais da sociedade civil, sobre o fenômeno do processo de urbanização que, de modo geral, produz significativas desigualdades socioespaciais, resultando na produção de cidades caóticas, excludentes e fragmentadas, marcadas por carências e despojamento material da quase totalidade de seus habitantes.

Nesse contexto, e aderindo ao fluxo mundial, Recife, capital do Estado de Pernambuco, surge, como tantas outras cidades latino-americanas e do mundo, como um verdadeiro ambiente de “fragmentos fortificados”, separados em diversas partes. Por um lado, bairros ricos, atendidos por toda sorte de serviços, por outras regiões inteiras sem a infraestrutura básica, a exemplo do sistema sanitário, segurança, escolas, etc. Enquanto uma metrópole regional, passou nos últimos anos por mudanças significativas:

De estagnação e perda relativa de influência regional, nas décadas de 1980 e 1990, a região passa a vivenciar uma intensa dinamização econômica e promessa de reindustrialização, especialmente a partir de meados dos anos 2000. Permanece, contudo, a condição de metrópole regional incompleta, periférica e desigual, que a caracteriza desde a sua constituição. (BITON & SOUZA, 2015, p. 21).66

Nela, coexistem e superpõem traços de opulência, devidos à pujança da vida econômica e suas expressões materiais e sinais de desfalecimento, graças ao atraso das estruturas sociais e políticas. Há, por um lado, signos de modernidade e, por outro, carências e ausências gritantes. De uma parte, grandes empreendimentos industriais e imobiliários, com estruturas urbanísticas de padrão econômico mais elevado, submetidos à égide empresarial, na outra, subemprego, ocupações informais, periferização, ausência de infraestruturas e serviços de interesse comum, ambos testemunham os impactos sociais e espaciais dessa nova fase da

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Merece destaque, ainda, a realização do V Fórum Urbano Mundial (FUM 5), do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU -HABITAT), realizado em março de 2010 na cidade do Rio de Janeiro,