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TERRITÓRIOS TRANSVERSAIS: O MÉTODO ANTROPOLÓGICO NAS

1 INTRODUÇÃO

1.2 TERRITÓRIOS TRANSVERSAIS: O MÉTODO ANTROPOLÓGICO NAS

Pesquisar a (na/sobre) cidade é muito mais do que atravessar sua topografia, entre ruas, edifícios e bairros, recolhendo e interpretando objetivamente dados e conteúdos. Trata- se de dar conta da experiência urbana, e humana, alcançando-a na complexidade das plurais dimensões do habitar, do produzir e do sentir. É, portanto, ir além dos aspectos sociopolíticos e arquitetônico-administrativos, abraçando, por exemplo, a ubíqua dinâmica estabelecida entre sujeitos, mídias e territórios.

Explorar, portanto, o “ponto de vista” do Antropólogo, implica num exercício de construção de um conjunto de conhecimentos, sempre em desenvolvimento e transformação, fazendo emergir aquilo que Michel Agier (2011)20 denominou de “cidade bis”, ou seja, a “cidade produzida pelo antropólogo a partir do ponto de vista das práticas, relações e representações dos citadinos que ele próprio observa diretamente e em situação” (AGIER, 2011, p. 32). Esta visão favorece, assim, uma tomada de consciência que há algo de mais profundo que a própria matéria das interações, permitindo o desvelamento de uma forma de “citadinidade”, no sentido de que “as ações, as interações e suas representações são definidas a partir de uma dupla relação: a dos citadinos entre si e a deles com a cidade como contexto social e espacial”. (AGIER, 2011, p. 91).

Por outro lado, como nos lembra Massimo de Felice, “a digitalização do território, a partir do advento da comunicação digital reduzindo o ambiente a código informativo, produz, pela primeira vez, uma separação da distância entre sujeito e território, permitindo a alteração da natureza do mesmo e a interpenetração e a interdependência entre ambiente e indivíduo” (DI FELICE, 2009, p. 21)21. Assim, esta dimensão tecno-ambiental afeta, sobremaneira, não apenas as formas de interação, mas, principalmente, os modos de perceber e representar as

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AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações e movimentos. Tradução Graça Índias Cordeiro. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011. 213 pp.

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DI FELICE, Massimo. Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume, 2009. (Coleção ATOPOS)

cidades. Pensar, portanto, por este viés, me posiciona, fortemente, numa relação comunicativa, aberta às inovações tecnológicas, permitindo olhar para a natureza incindível do “sujeito-mídia-circuitos-natureza”.

Estou, por esta perspectiva, falando de uma cidade “nem virtual nem irreal, antes imaterial, no sentido em que exista a mais e no seio da sua organização visível, que lhe dá uma parte importante do seu sentido diário” (AGIER, 2011, p.173). Uma visão, a princípio, que me afasta das noções de identidades comunitárias, eternas, primordiais e não contextuais, aproximando-nos, por outro lado, de “comunidades do instante” (AGIER, 2011), formas na atividade (seja ela política, estética ou ritual).

É, portanto, neste exercício de mirar a cidade como “território empático” (AGIER, 2011, p. 37), atravessado por trânsitos eletrônicos e resultante da extensão da natureza humana, que encontro os primeiros desafios de ordem metodológica. Como eu posso exercer uma “etnografia tradicional”, no contexto do espaço urbano, sem perder a natureza viva e as múltiplas formas de comunicar, suas novas arquiteturas imateriais e informativas do imaginário? Como é possível apreender os conteúdos urbanos sem praticar a comunicação no sentido de deslocação, sem atentar-se para o território deslocativo?

Nesse sentido, parece, para mim, que não há mais sentido, no contexto destas “metropoleletrônicas” (DI FELICE, 2009), termos como “intramuros/extramuros”, “nativo/estrangeiro”, “centro/periferia”, “público/privado”, exigindo-me pensar para além dos limites espaciais convencionais. Assim, assumo uma aproximação de espaços, ou “metaespaços”, a partir de linhas de errância, percebendo como eles se metamorfoseavam e se bifurcavam.

Desse modo, ao olhar para esta superação da dimensão objetiva e topográfica do espaço, encontro uma possibilidade reflexiva de pensar numa experiência metodológica deslocativa e plural, em parte arquitetônico e em parte eletrônico-comunicativo-imaterial. Esta visão me permite buscar observar a experiência social urbana por outras espacialidades imateriais e informativas que se sobrepõem, criando “metageografias”, ou uma experiência de “pós-urbanidade”, como diria Massimo di Felice (2009).

Assim, compreendo que o deslocamento por estes “circuitos informativos”, dinâmicos e multiformes, fragmentários e polifônicos, faz mais sentido, sem abandonar, é claro, a acepção de “espacialidades sólidas” da paisagem urbana.

A preocupação principal é, por um lado, compreender como estas novas espacialidades se impõem, não mais a partir do face to face, à convivência social e, por outro, como elas elaboram novas esferas de cidadania, tanto públicas como privadas. Tento, nessa perspectiva, ir além dos significados estáticos e definitivos, hibridando meus sentidos e amplificando minhas percepções. Daí o imperativo de um olhar e de um método que não se contente mais com a observação dos fatos sociais, mas que passe “a contemplar a conexão e a eletricidade, como elementos constitutivos do social e das subjetividades contemporâneas” (DI FELICE, 2009, p. 169).

Sob esta ótica, busco estruturar um caminho metodológico que permita acompanhar as tensões e disputas simbólicas em torno do espaço urbano, dos processos de produção/ construção e apropriação da cidade.

O objetivo é analisar o desenrolar de um acalorado processo de disputa e conflito acerca da implementação de um megaprojeto imobiliário, o chamado Projeto Novo Recife22, que prevê a construção de torres residenciais e comerciais, totalizando 13 prédios com cerca de 40 andares, em pleno Centro Histórico do Recife, no Cais José Estelita. Uma área de aproximadamente 100 mil m², no centro da cidade, que pertencia à Rede Ferroviária Federal e foi arrematada à União por quatro grandes construtoras, em leilão realizado em 2008.

Compreendo tratar de um momento único de interpretar uma experiência de luta contra o modelo de desenvolvimento urbano e a própria exclusão urbana, e consequentemente patrimonial, a partir e grupos, coletivos e movimentos sociais urbanos, a exemplo Movimento #OcupeEstelita23 e Grupo de Direitos Urbanos.

A perspectiva é de capturar como se articulam as ocupações; as agendas, dinâmicas e discursos empreendidos, os conflitos e disputas; as diferentes formas de participação e as

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A área no chamado cais José Estelita era da extinta RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A). Foi arrematada em 2008, em leilão, por R$ 55 milhões, pelo consórcio “Novo Recife”, composto pelas empresas Moura Dubeux Engenharia, Queiroz Galvão Desenvolvimento Imobiliário, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos. 23

O Movimento #OcupeEstelita luta há três anos contra um modelo de desenvolvimento urbano guiado apenas por interesses econômicos, que, segundo os integrantes, destrói a identidade de da cidade e promove uma ideia ultrapassada de progresso e modernização. A partir de vários grupos, coletivos e movimentos sociais, são empreendidas lutas contra o “urbanismo segregador e suas consequências para a cidade”. Para os integrantes, o Projeto Novo Recife (NR) surge como a antítese de tudo isso. “É o símbolo de um modelo de cidade excludente, segregadora e não-participativa. As irregularidade e ilegalidades presentes em todo o processo de elaboração e do projeto apenas confirmam a sua nocividade para a construção de uma cidade democrática e humana. Ele representa uma perda de oportunidades para o pleno desenvolvimento de uma área tão importante para cidade do Recife como o Cais José Estelita, pelo seu potencial histórico, geográfico e ambiental”. (https://www.facebook.com/MovimentoOcupeEstelita/info/?tab=page_info)

repercussões na opinião pública; as conexões com outros tantos acontecimentos24; o combate à mercantilização da paisagem visual da cidade, das vias, das ruas, sobretudo em zonas centrais. Há, ainda, uma necessidade de compreender estes movimentos que se propõem, em contraposição às estruturas verticais e centralizadoras, formas horizontais de decisão, sem personificação de lideranças nem comando de partidos e comitês centrais.

Sei, entretanto, que entre o discurso e a prática, há incompletudes e apropriações desiguais, conflitos internos na gestão dessa forma “automediada”. Registro, desde já, a diferença fundamental entre a causa #OcupeEstelita, surgida a partir da atuação do DU, e o Movimento OcupeEstelita (MOE), decorrente da primeira ocupação, com perfil que ora se mistura com a causa defendida pelo DU, ora avança para novas direções, como é possível acompanhar na fala de dois entrevistados:

Existe uma disputa grande sobre o nome: Movimento Ocupe Estelita e #OcupeEstelita. O #OcupeEstelita como causa que começa em 2012 e que em 2014, com a ocupação, a partir da bifurcação, as formas divergiram. Uma coisa muito forte do DU, nessa fase pré-ocupação, antes de 2014, é a mistura muito forte de táticas que atrapalhava você identificar exatamente qual era, do artístico, do jurídico, do pedido de informação, de atuar junto ao Ministério Público, da ocupação na rua, do protesto, assim, era uma mistura de táticas muito forte. Eu acho que a partir dessa divisão, em 2014, tem uma certa depuração de grupos que se identificam mais para um lado, mais para outro. Durante toda a ocupação houve grupos que não estavam alinhados, que apareceram e tentaram disputar espaço. Então, houve disputa de espaço e de poder25.

O surgimento do MOE é a ocupação, momento em que acontece, na calada da noite, a derrubada dos galpões, com a chegada de Sérgio, e que as pessoas ocupam. Ali, digamos assim, é o começo do surgimento do MOE. E, desde esse momento, existe muita tensão por dentro. Existe muita crítica à forma como o DU atua. Porque o DU tem uma atuação que privilegia a via institucional, acredita que precisa fazer uma guerra jurídica [...]. o ponto de ruptura é esse. É o grande ponto de diferenciação dos dois grupos. O que teve foi um processo de distanciamento e de muita briga, muita briga feia mesmo. [...] tem uma série de pontos, de fatos, de histórias, de momentos que o DU passou por cima das decisões do MOE. Eu acho que a época da ocupação foi muito potente, a sensação que tenho é um centro de energia positivo-criadora, mas um momento que houve muita briga também. O DU tem uma via mais institucional e o MOE uma via mais anti estado, anarquista, contra hegemônica, anticapitalista bem mais carregada nesse discurso. [...] tem também uma questão geracional, uma questão de

24Como o que ocorreu ao mesmo tempo em Istambul, a Primavera Árabe, o Ocupe Wall Street, os Indignados da Espanha, etc.

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possibilidades, porque quem é que poderia estar ocupando? Quem é que poderia passar o dia? Passar as noites? Teve gente que estava trabalhando e perdeu o emprego, mas tinha muitos estudantes que tinham essa possibilidade. [...] o que eu acho legal da história toda do MOE e do DU é que dois argumentos, sobre a potência de cada um, são dados pela própria história, porque a história que o DU veio construindo sozinho, no sentido de vir pela via institucional, era forte e ao mesmo tempo ele estava num ponto de travamento, porque esse diálogo com a instituição trava, chega num ponto que você não tem mais saída. E aí quando vem o MOE, a leitura que faço, é que é uma fuga, que dá uma super renovada, que foi extremamente importante. Mas, houve muita dificuldade para se entender como complementar26.

Apesar de haver, claramente, essa diferença de posições e táticas, em diversos momentos e acontecimentos, online e off-line, essas fronteiras eram borradas em benefício à causa, ao enfrentamento comum. Isso me fez, em certa medida, acompanhar todos os perfis, mesmo notando, diante da agenda em comum, a produção de dados, discursos e narrativas diferentes, como será possível acompanhar em determinados momentos da pesquisa.

De todo modo, somando-se, há um novo fenômeno, inclusive constituída dessa diferença acima mencionada, que são os agenciamentos em redes digitais (Redes Sociais Online) dos movimentos sociais urbanos, trazendo uma nova experiência democrática, articulada sob a égide do exercício da cidadania, dos direitos e garantias fundamentais.

Uma interação mobilizadora que insta os coletivos a multiplicar os atores, fora das paisagens que atuam, estabelecendo outra relação espaço-tempo, como aponta, em entrevista, Leonardo Cisneiros:

Uma coisa que internet permitiu muito forte é a questão de pessoas com uma dificuldade maior para atuar presencialmente, poderem participar mais [...]. e aí com essa extensão, você conecta pessoas, você conecta grupos, que não se conectam facilmente presencialmente. [...] eu acho que a internet permitiu conectar o povo de arquitetura, o povo de jornalismo, de direito, ou seja, pular das bolhas que você vai ter na relação off-line, e também uma questão etária, de experiências. Conseguiu juntar gente de forma que não conseguiria de outra maneira. Então se criou uma rede e essa rede permitiu uma diversidade de atores bastante razoável. Eu acho que deu força, deu resiliência e deu sinergia. Você junta saberes que não estavam juntados.

Representa, desse modo, uma oportunidade de observar na prática, conforme nos informa Castells (2003, p.144), como a internet está se tornando um meio essencial de comunicação e organização em todas as esferas de atividade. Por isso, é óbvio que também os movimentos sociais e o processo político a usam, e o farão cada vez mais, como um instrumento privilegiado para atuar, informar, recrutar, organizar, dominar e contradominar.

Por outro lado, a natureza aberta e coautoral das redes, a profusão de comunidades, a interconexão, a virtualização27 dos saberes e das relações, geram novas inteligências coletivas difíceis observá-las em sua totalidade. A interatividade, nesse sentido, poderá, como nos lembra Glória Diógenes (2015, p. 58)28, ser plasmada por ausências, por contatos assincrônicos, conectividades efetuadas por meios técnicos, como links, perfis e dispositivos em redes. Compreendo, nesse sentido, que o ciberespaço “atua como um palco alargado, um recipiente amplo, veloz e múltiplo das experiências que compassam a vida na esfera offline”. (DIÓGENES, 2015, p. 60).

Neste sentido, a etnografia virtual (ESCOBAR, 2000) desponta, igualmente, como uma possibilidade metodológica direcionada à investigação de comunidades, práticas e culturas sitiadas na Internet, como é o caso, especialmente, do Movimento #OcupeEstelita (MOE) e do grupo Direitos Urbanos (DU), apostando, desse modo, na tecnologia como potencial agente de transformações comunicativas e interativas. Ainda que não haja, em parte, deslocamentos físicos, é, no deslocamento subjetivo, no exercício interpretativo, que encontro no ambiente virtual uma fonte de apreender as relações sociais estabelecidas.

Meu intuito é perceber como os usuários das comunidades investigadas utilizam, no contexto virtual, suas capacidades comunicativas e interativas; como a internet afeta as organizações, mobilizações e relações sociais e se a experiência do virtual é diferente da experiência do real físico. Assim, concebo, também, meu campo de observação/análise/interpretação as comunidades associadas aos dois coletivos mencionados anteriormente.

Considero, para tanto, o ciberespaço como um “artefato cultural” um “campo de ação”, apreendendo as relações, atividades e compreensões daqueles que estão nesse ambiente e participam do processo, além das práticas e discursos que são gerados ao redor do

27Tomamos de empréstimo a visão de Pierre Levi (1999), na medida em que compreendemos que o virtual não se opõe ao real, nem ao material. Ainda que não esteja fixo em nenhuma coordenada de tempo e espaço, o virtual existe, ele é real, mas está desterritorializado.

28DIÓGENES, Glória. “=Entre cidades materiais e digitais: esboços de uma etnografia dos fluxos da arte urbana em Lisboa. In: Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67

computador e fenômenos conexos. A perspectiva é, seguindo Arturo Escobar (2000), estudar os contextos dos quais se originam e em meio aos quais operam, sem perder de vistas suas conexões com as demais ordens da vida social. Destaco, ainda, neste caso, que a abordagem se centra no espaço online, salientando suas peculiaridades, seu caráter de cenário em que a cultura é criada e recriada com uma outra dinâmica (HINE, 2000, p. 14-38)29.

O material utilizado configura-se, basicamente, a partir do recolhimento, sistematização e análise de posts e comentários, arquivos de texto, fotos, vídeos de campanhas e eventos, consultas públicas, eventos criados pelos movimentos, publicidade e materiais de campanha, todos esses postados nos sites e nas páginas do Facebook e do Blog (MOE e DU). No entanto, pela dinâmica conectiva, por vezes, remeto-me para outras comunidades, a exemplo do Resiste Estelita e Novo Recife, além de páginas pessoais, na tentativa de capturar os circuitos.

Por uma questão operacional, procuro analisar apenas as postagens originais, não avançando para os desdobramentos e repercussões dos comentários. A minha preocupação reside, considerando a dimensão mediada das conexões, em situar quem, quando e como se produz dos discursos e narrativas, seus usos, apropriações e representações. Me valho, além de um acompanhamento em tempo real de alguns acontecimentos, de registros e recortes, obtidos a posteriori, salvos em pastas digitais para análises sobre as articulações, proporções e relações dos fatos sociais diagnosticados. O objetivo é realizar uma observação do comportamento social na rede e sua interação com a comunidade online.

Procuro, ainda, perceber os fluxos de informação e as construções sociais e simbólicas dos grupos estudados. Minha preocupação é, no primeiro momento, apreender as novas possibilidades que as redes de conexão30 trazem, na prática, para os grupos organizados em movimento sociais, explorando a questão de como “os indivíduos, dotados de recursos e capacidade propositivas, organizam suas ações nos próprios espaços políticos em função de

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HINE, C.. Virtual etnography. Londres: Sage, 2000. 192 p.

30“O que é novo no trabalho em redes de conexões é sua promessa como uma forma global de organização com raízes na participação individual. Uma forma que reconhece a independência enquanto apoia a interdependência. O trabalho em redes de conexões pode conduzir a uma perspectiva global baseada na experiência pessoal. (LIPNACK & STAMPS, 1992, p. 19). Ver LIPNAK, Jessica, STAMP, Jeffrey. Networks, redes de conexão:

socializações e mobilizações suscitadas pelo próprio desenvolvimento das redes” (MARTELETO, 2001, p. 72)31.

Inquieta-me, também, inquirir sobre os modos de comunicação, a produção de conhecimento e o uso das informações pelos participantes do MOE. Nesse esquema, a ideia, além de compreender o campo de discursividade, é, ainda, analisar as influências e os efeitos das redes fora de seu espaço, nas interações com o Estado, com a sociedade e outras instituições e atores representativos.

Para tanto, minha intenção é fugir dos atributos individuais e buscar, muito mais, a partir das relações estabelecidas, evidenciar as escolhas, orientações, comportamentos e opiniões. Desvelar as novas formas de se movimentar ou de ações coletivas, compreendendo seus significados políticos e culturais. Isto significa “pensar as pessoas, além do que elas são, em termos de estruturas sociais, considerando que através das relações e das situações criadas a partir desses intercâmbios elas se posicionam com mais flexibilidade na vida social” (MARTELETO, 2001, p. 74).

A princípio, considerando o meu perfil de timidez e, em certa medida, de introspecção, decidi realizar uma observação participante mais “silenciosa (ou lurker), sem interferência ou interação com o ambiente investigado. Sei, é claro, que esta abordagem traz um resultado diferente na narrativa etnográfica, mas trata-se de uma decisão tomada entre as limitações e benefícios. A grande dificuldade é, especialmente, dar conta do intenso fluxo de informação que caracteriza as redes sociais digitais e as mídias colaborativas. Isto demanda, em certa medida, operar um olhar oblíquo, inquieto e instável diante do movimento ondulatório operado entre os congestionamentos sígnicos e os espaços de fluxos mais frágeis (DIÓGENES, 2015).

Por outro lado, é pertinente registrar que busco, ao compreender que “cidade e ciberespaço, mais que distintas conexões espaciais se combinam em planos de mútua reflexividade” (DIÓGENES, 2015, p. 47), realizar um “encontro” entre a etnografia tradicional e a virtual, dado que é necessário observar e analisar, além dos fluxos virtuais, atividades presenciais, a exemplo das assembleias, protestos, passeatas, eventos e ocupações físicas. Nelas, posso exercer um tipo de interatividade mais descontinuada, na medida em que,

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MARTELETO, Regina Maria. Análise de redes sociais – aplicação nos estudos de transferência da informação. In: Ci. Inf., Brasília, v. 30, n.1, p. 71-81, jan./abr.2001

apesar da existência de um espaço “real” objeto de disputa, é não-fixidez do “movimento” que encontrava maior potência do jogo de classificações e tensões.

Assim, situando-me no perímetro da deambulação etnográfica, transitando entre passeatas, assembleias, ocupações, audiências públicas, festas, espalhadas territorialmente, vou observando as inúmeras ocasiões em que cidade, e todo seu patrimônio cultural, é ativada, recriada, compartilhada, silenciada e excluída. Trata-se, portanto, de seguir por itinerários dos espaços vivo das ruas, no fluxo da energia vital das cidades, enquanto lugares de realização. Como no ambiente digital, em que as falas e imagens circulam quase aos pulos, rizomaticamente (DELEUZE; GUATTARI, 1994), multiplicando-se, a relação etnográfica no contexto urbano exige, igualmente, observar os contextos flutuantes.

1.3 UM PEDAÇO DE CIDADE: PROJETO “NOVO RECIFE” E OS MOVIMENTOS