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1. ESCULPINDO O OBJETO DE PESQUISA: PERCURSOS TEÓRICOS E

1.3. A cientificidade na abordagem do objeto

Os que levam a preocupação metodológica até a obsessão nos fazem pensar nesse doente, mencionado por Freud, que passava seu tempo a limpar os óculos sem nunca colocá-los. (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004, p. 14)

A melhor forma de iniciar a argumentação em defesa do caráter científico desta tese foi lançar luz à consciência de algumas limitações e obstáculos enfrentados na pesquisa. O primeiro item importante nesse complexo é a própria consciência de impossibilidade de neutralidade do pesquisador. Isso não significa de modo algum que as opiniões do senso comum sejam consideradas válidas ou que assumam estatuto científico, mas sim que a consciência das limitações do pesquisador decorrentes de suas posições e disposições no jogo social ajuda-o a manter firme a vigilância epistemológica. Ora, trata-se de saber que “as estruturas mentais são inevitavelmente formadas diferentemente em conformações sociais e históricas diferentes.” (MANNHEIM, 1972, p. 287). Essa premissa é simples no seu entendimento, mas extremamente complexa no seu cumprimento. Parece óbvio que o primeiro passo para perceber os prováveis enviesamentos de percurso seja saber o mais exata e conscientemente possível os lugares que se ocupa na complexa rede social e as disposições adquiridas decorrentes desse posicionamento. Esse autor nos auxilia com as especificações:

Todos os três fatores, a natureza e a estrutura do processo de lidar com as situações de vida, a conformação própria do sujeito (em seus aspectos biológicos, tanto quanto em seus aspectos histórico-sociais) e a peculiaridade das condições de vida, principalmente o lugar e a posição do pensador, influenciam os resultados do pensamento. (MANNHEIM, 1972, p. 318)

Manter essa consciência em todas as fases da pesquisa, desde a elaboração do projeto até a defesa da tese, é que se torna um desafio. Um desafio justamente porque essas disposições adquiridas não atuam no nível da consciência, elas fazem parte de um conjunto de conhecimentos tácitos, implícitos que se desdobram em ações sem que o agente se dê conta da sua existência. Romper com essa barreira da não consciência é tarefa exaustiva e resultado de treino metodológico constante.

Trata-se de exercitar a capacidade de questionamento da própria ação no momento em que ela ocorre e nos momentos precedentes e posteriores. Numa situação de entrevista, por exemplo, ao redigir uma pergunta, cabe refletir sobre o que se pretende com ela, sobre o ponto de vista do entrevistado perguntando: será que ele é capaz de entender o que se quer saber? Muitas vezes uma simples palavra pode gerar o mal-entendido, aliás, para Bourdieu, numa situação de comunicação o mal-entendido é a regra. Quando se diz “educação”, por exemplo, o que se entende por isso nem sempre será o mesmo para agentes diferentes. Além desse difícil

exercício, cabe ter a percepção aguçada no momento da entrevista para notar lacunas, mal- entendidos, para direcionar a arguição ou redirecionar de modo a se obter as informações necessárias. Nem sempre isso ocorre de modo satisfatório numa entrevista; cabe então perceber os deslizes no momento da transcrição e julgar se é o caso de interrogar novamente o sujeito da pesquisa.

Esse foi apenas um exemplo dessa necessidade de vigilância constante. Tal comportamento por parte do pesquisador faz parte da construção do caráter científico da pesquisa. Nesta pesquisa, procurou-se realizar esse exercício constantemente, tanto no momento das entrevistas quanto no momento das observações em sala de aula, análises posteriores e redação deste texto.

Outra necessidade urgente e primeira para o desenvolvimento de um trabalho científico é o rompimento com as pré-noções que tornam a realidade social familiar ao pesquisador. No caso abordado aqui, isso é particularmente importante e difícil, porque a pesquisa é realizada em escolas de ensino fundamental e o próprio ambiente escolar é muito familiar para qualquer cidadão escolarizado. Romper com as aparentes causas e efeitos presentes no cotidiano da professora sujeito da pesquisa é um constante desafio, mas foi uma tarefa que precisou anteceder todas as demais. Sem esse rompimento seria impossível qualquer pretensão de elaborar um trabalho científico. O rompimento se deu com o exercício do estranhamento da realidade, com o questionamento das coisas aparentemente simples, com o tornar complexa toda e qualquer relação que se apresentasse. Tal exercício caminhou lado a lado com o exercício anterior de vigilância constante. Como afirmou Bachelard (2005, p. 18) “a ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião”. Mais ainda, “não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado.” (BACHELARD, 2005, p. 18). No campo das ciências sociais essa atividade torna-se ainda mais difícil, uma vez que o tecido social é aquele no qual todos estão entrelaçados. Procedeu-se constantemente, então, a uma desnaturalização da escola, um estranhamento dessa realidade. Há certas bases na área social que, apesar de parecerem ultrapassadas, permanecem para orientar quanto ao rigor. Esse é o caso da consideração feita por Durkheim:

Portanto nossa regra não implica nenhuma concepção metafísica, nenhuma especulação sobre a essência dos seres. O que ela exige é que o sociólogo se coloque no estado de espírito em que estão físicos, químicos, e psicólogos, quando trabalham numa região ainda inexplorada do seu domínio científico. É preciso que, ao penetrar o mundo social, ele tenha a consciência de penetrar no desconhecido; é preciso que ele se sinta na presença de fatos cujas leis são tão inimagináveis como eram as leis da vida antes da constituição da biologia; é preciso que ele esteja pronto para descobertas que irão surpreendê-lo e desnorteá-lo. (DURKHEIM, 2012, p. 18)

Nessa obra de onde foi retirada a citação, Durkheim apresenta três corolários como regras para observação dos fatos sociais. Embora Durkheim trate os fatos sociais como coisas em si, e essa constitui sua regra fundamental, o que se afasta um pouco da perspectiva relacional intrínseca à presente pesquisa, obedecer aos corolários apresentadas pelo autor é extremamente fecundo para almejar o caráter científico da tese. Tal comportamento pode parecer paradoxal, entretanto argumenta-se em defesa de sua fecundidade pelo motivo exposto a seguir.

A perspectiva relacional não recusa a existência dos fatos sociais como coisas, mas sim a engloba e vai além. O caráter estrutural e objetivo da sociedade existe e é aceito nessa perspectiva, mas a própria estrutura da sociedade incorpora-se no sujeito e expressa-se por meio

das subjetividades – noção que Bourdieu desenvolve por meio do conceito de habitus. A própria

estrutura da sociedade, estrutura organizadora dos fatos sociais, habita o sujeito e, apesar de não depender das individualidades, depende das subjetividades para sua existência. Por isso Bourdieu chama de agentes aqueles que agem na sociedade, e não atores ou sujeitos. O caráter histórico das relações ganha aqui um aspecto essencial, ou seja, não é possível compreender o aqui e agora sem ter consciência da historicidade dos fatos, das tramas existentes por trás dos fatos.

É nesse sentido que a perspectiva relacional incorpora as regras de Durkheim para ir

além delas, ou seja sabe-se que: “é preciso eliminar sistematicamente todas as noções prévias”

(DURKHEIM, 2012, p. 54); “o primeiro passo do sociólogo é definir as coisas de que trata,

para que se saiba e se saiba bem a questão com que está lidando” (DURKHEIM, 2012, p. 57);

e mais ainda o sociólogo precisa saber que “as características exteriores em função das quais

ele define o objeto de suas pesquisas devem ser também as mais objetivas possíveis”

(DURKHEIM, 2012, p. 64). “Em resumo, o homem movido pelo espírito científico deseja

saber, mas para, imediatamente, melhor questionar.” (BACHELARD, 2005, p. 21)

Uma das características marcantes do conhecimento científico é a ideia de superação. Ou seja, nunca se começa do zero, há sempre um conjunto de conhecimentos a partir do qual estuda-se algum tema. Isso engloba tanto o processo de formação do pesquisador quanto o próprio processo de desenvolvimento do conhecimento. De acordo com Bachelard (2005, p. 17), “no fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização.” A própria metodologia de pesquisa também passa por esse processo, ou seja, não há métodos universais, receitas prontas para aplicação nas ciências sociais. Mesmo

Durkheim (2012, p. 16) ressalta isso quando diz “também em termos de método só se pode almejar o provisório, pois os métodos mudam à medida que a ciência avança.”

No processo de pesquisa uma das principais vias de busca desse avanço é o exercício do levantamento bibliográfico. Nesta tese, o levantamento bibliográfico foi realizado buscando dissertações, teses e trabalhos publicados em anais acerca da temática pesquisada e os mais relevantes foram estudados cuidadosamente buscando possibilidades de avanço nas análises de dados. O que se fez foi olhar para os dados e as suas respectivas análises nos trabalhos detectados tendo em mente a problemática inicialmente estipulada nesta pesquisa e a perspectiva relacional de pensar. Qual foi a surpresa? Os dados e análises apresentados por outros pesquisadores auxiliaram sempre na problemática em questão, colaborando crescentemente para a construção do objeto desta pesquisa. Não se tratou de achar erros em outras pesquisas, nem tampouco de classificar “conhecimentos mal estabelecidos”, mas sim de perceber algumas lacunas, algumas possibilidades de expansão.

Um último argumento em favor da cientificidade desta tese volta-se novamente para o processo de formação do pesquisador. Pode parecer repetitivo voltar novamente a esse argumento, mas se assim ocorre é por sua força legitimadora. A própria estrutura curricular do doutoramento indica a força do papel formativo do programa. A quantidade de disciplinas a serem cursadas no doutorado e a forma como as mesmas são organizadas demonstram uma preocupação forte com a formação teórica dos alunos.

Mesmo que se pense na evolução da ciência pela via revolucionária, não se pode esquecer “que um (verdadeiro) revolucionário em matéria de ciência é alguém que possui grande domínio da tradição (e não alguém que faz tábua rasa do passado ou que simplesmente o ignora).” (BOURDIEU, 2008, p. 31)

Incluir-se, portanto, no programa de doutoramento implica conhecer profundamente, aceitar e obedecer às regras expostas. Ao se escolher uma linha de pesquisa para participar, cabe conhecer melhor seus objetivos, suas formas de trabalho e os trabalhos desenvolvidos em seu interior. Isso significa almejar o domínio da tradição, munir-se de conhecimentos legitimados já na trama de relações e procurar – seguindo as regras estabelecidas – contribuir para o desenvolvimento dos trabalhos.

Por último convém, ainda, tecer algumas considerações a respeito da construção do objeto nesta etapa da redação da pesquisa com a apresentação dos dados.

Se a obtenção das informações já foi decorrência de um longo percurso, quando elas já estavam disponíveis teve início nova etapa para que se tivesse, inicialmente, uma saturação dos mesmos por meio de muitas leituras das transcrições, do questionário e das observações. Como

organizar tudo para dispor ao leitor foi o novo desafio. Nessa etapa foram encontrados alguns eixos de significação nas respostas.

Para não perdê-los, passou-se então a organizar os que tratavam dos mesmos aspectos. Assim, o objeto passou a ter três grandes características, ou seja, as formas pelas quais o corpo da professora se manifestava no conjunto dos dados. A coerção, ou constrangimento; a cisão entre corpo e mente e os preconceitos tornaram-se eixos ao redor dos quais os dados foram sendo dispostos. Restava, porém, uma questão: qual a sequência para tal apresentação?

Como decorrência dessa reflexão os capítulos três, quatro e cinco trataram desses três eixos, com os dados expostos segundo o referencial teórico que orientou todo o trabalho: inicialmente a educação na família, seguida da educação escolar e posteriormente a inserção profissional. No quinto capítulo há uma pequena alteração para abordar os preconceitos pelos seus tipos considerando ser esta marca muito forte quando eles surgem como conteúdo a ser analisado.

Diante disso, no próximo capítulo tem início o relato dos dados obtidos iniciando-se pelo contexto local, os agentes, suas escolas e as dificuldades encontradas para a pesquisa.

2. DESENHANDO PERFIS: MUNICÍPIO, ESCOLA, PROFESSORA E ALUNOS