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5. O CORPO ALVO DE PRECONCEITOS: PADRÕES E ESTEREÓTIPOS

5.3. O preconceito socioeconômico e de lugar

Esse mostrou-se como o grande vetor do preconceito de Violeta. Constantemente repetido, reforçado e manifesto verbalmente e nas suas ações. Em relação aos alunos era fortíssimo, desde sua lembrança dos alunos que foram seus colegas de estudo, até a sua atuação profissional com seus alunos em sala de aula. Violeta chegou a manifestar esse preconceito de forma bastante agressiva, tanto ao criticar para a pesquisadora os programas assistenciais do governo, a abertura da escola para a diversidade de alunos, quanto nas interações que estabelecia com os alunos.

Uma das suas manifestações contra os programas assistenciais do governo foi feita no primeiro dia de observação da aula, logo em seguida à crítica feita ao aluno C. em episódio já relatado há alguns parágrafos atrás. Violeta continuou conversando com a pesquisadora sobre esse aluno e sobre a vergonha que sentia atualmente em ser professora, disse chorar várias vezes com a situação da educação, criticou o bolsa família, a nota global, disse ter ficado 15 anos afastada da sala de aula por ocupar cargo de confiança e agora ao retornar, ficou decepcionada com o que encontrou. Disse ser essa a pior classe com a qual já trabalhou, que 3/4 dos alunos em média não sabiam ler nem escrever. Esses comentários de Violeta foram feitos com muita irritação na voz, externalizando um sentimento de muito descontentamento e revolta. O baixo

aprendizado foi sempre relacionado pela professora aos problemas sociais, econômicos e de lugar e nunca às estratégias didáticas utilizadas em sala de aula.

Quando era questionada sobre o seu período escolar como aluna, a professora manifestava de forma destacada esse preconceito. A questão está integralmente transcrita, a seguir, para que se possa entender o contexto da pergunta:

PESQUISADORA: “Você cursou Educação Infantil? Se sim, qual era a escola? Onde se localizava? Como eram os alunos?”

VIOLETA: “sim senhora.”

PESQUISADORA: “em que escola que era?” VIOLETA: “no C. B.”

PESQUISADORA: “em Santos né?”

VIOLETA: “isso.”

PESQUISADORA: “e você lembra dos alunos?”

VIOLETA: “dos alunos eu não me lembro muito não, eu lembro da minha professora só...”

PESQUISADORA: “a professora de educação infantil...”

VIOLETA: [interrompe minha fala] “bom os alunos naquela época não era [sic] tão bagunceiro que nem agora. Sendo que aquela escola lá, a clientela, era tudo criança de morro né; Nova Sintra, né, Morro do Pacheco, essas coisas. E, por ser [sic] crianças de lá, era muito raro ter briga, confusão, naquele tempo era mais rígido né. A professora podia chegar até o aluno e... hoje em dia é difícil” [fala entre dentes]

O exemplo mostra claramente que Violeta relaciona a questão social, de origem (crianças “do morro”) como a responsável pela indisciplina em sala de aula. Essa disposição se repetia – e com essa repetição ganhava reforço – em vários momentos. Mais adiante nas entrevistas, a professora retornou a essa questão do tratamento dispensado à criança “da favela” ou à criança “da mansão”. Quando a pesquisadora perguntou sobre quais marcas os bons professores deixaram em Violeta, ela se referiu a uma de suas professoras da infância e disse:

“Porque ela tratava todos iguais, não tinha diferença. É o que eu faço, pra mim não importa se a criança mora na favela ou se mora numa mansão, se eu tiver que brigar eu brigo com a que mora na mansão e com a que mora na favela. Porque tem no, aqui [bem enfática] e lá no L. [outra escola municipal na qual a professora trabalha] eu tenho alunos que só porque

eles sabem um pouco mais do que as outras eles ficam... lá é 3º ano, mas precisa de ver o que que eles fazem com as crianças que não sabem nada, eu pego e chamo, mas aí eu brigo com eles na frente de todo o mundo.” (Violeta, 2013)

Esse mesmo tipo de manifestação verbal foi repetido várias vezes. No contexto das suas lembranças da sua época de escola ela novamente citou essa diferenciação de forma preconceituosa:

PESQUISADORA: “Seus professores eram carinhosos? Se sim, como demonstravam

isso? Como os alunos reagiam? E você, o que achava disso?

VIOLETA: “ah eles são carinhosos, eram carinhosos sim, muito...”

PESQUISADORA: “e como que eles demonstravam isso? Como que...”

VIOLETA: “ah eu acho que quando eles transmitem alguma coisa assim, é assim, como as criançadas eram mais do morro e a gente era da cidade, é diferente né? Tem aqueles que têm e recebem carinho e tem aqueles que não recebem, então quando vinha uma criança lá do morro que já vinha sem comer, que vinha a pé, que era longe; ela chegava, sentava, ficava alisando a cabecinha, até a criança né, se levantar e fazer as coisas. Mas em compensação aquela bruxa [fala entre dentes] já gritava, mandava sair da sala de aula e que se dane o mundo...”

Mesmo quando era questionada sobre se havia tratamento diferente para meninos e para meninas nas escolas em que estudou, Violeta respondia como se tivesse sido questionada sobre a diferenciação por questões sociais. Essa forma de distinção era para ela tão forte que Violeta parecia enxergá-la em todos os momentos.

PESQUISADORA: “Em sua época de escola, os meninos recebiam o mesmo tratamento

que as meninas por parte dos professores? Quais semelhanças e quais diferenças?

VIOLETA: “igual, não, não, tudo igual.”

PESQUISADORA: “tudo igual?”

VIOLETA: “tudo igual, não tinha diferença nenhuma. O tratamento delas era igual

pra todos. É que nem eu te falei, não importa se é do morro ou se é da cidade.”

Há uma força latente nessa disposição muito bem inculcada na professora Violeta para o preconceito socioeconômico e de lugar. Ela associava o lugar de origem do aluno (morro, cidade, favela, mansão) com sua condição socioeconômica e ainda com seu comportamento e

sua capacidade de seguir ou não às regras sociais da escola – consideradas legítimas e as únicas capazes de guiar o bom relacionamento interpessoal. Essa é uma disposição que não mostra suas origens ao se fazer uma análise sociológica da vida de Violeta, pelo menos com os dados disponíveis neste estudo. Não fica claro, de acordo com as entrevistas realizadas, se essa disposição foi inculcada em Violeta já no contexto familiar da infância; mas talvez seja esse o indício mais forte de que assim o foi. A força dessa disposição era tão grande que fazia parecer algo natural para Violeta. Ao pensar na sua trajetória da infância, dos anos escolares e da própria inserção na profissão docente, Violeta não indicou a origem dessa sua “verdade”, ao contrário, ela agia e falava como se já tivesse nascido ciente dessa diferença, como se a distinção socioeconômica e de lugar fosse uma verdade da natureza. Vem justamente daí a força dessa disposição, porque uma vez inconsciente, uma vez tornada natureza, não se pensa mais nela. Somente às custas de um esforço gigantesco Violeta refletiria sobre essa questão e mesmo assim sem garantia nenhuma de que tal reflexão mudaria um milímetro suas ações ou julgamentos.

De acordo com Bourdieu (2009, pp. 95-96) as práticas engendradas pelo habitus são compreensíveis mutuamente e possuem um sentido objetivo que vai além das individualidades, das subjetividades. Essa é a força do habitus quando tornado natureza. O “mundo do senso comum” tem sua evidência imediata para os agentes justamente porque reflete esse habitus tornado natureza. Quanto maior a naturalidade com que uma disposição se manifesta, como no caso relatado anteriormente de Violeta, maior é a sua força de engendramento, maior o seu sentido prático.

A disposição entranhada em relação ao preconceito socioeconômico e de lugar exprime sua força ao se constituir como justificativa válida para o desequilíbrio no desempenho da função docente de Violeta. São esses alunos “crianças de favela” ou “crianças do morro” os causadores da indisciplina em sala de aula, segundo a professora. O comportamento de crianças

com essas origens “contaminava” o restante da turma e prejudicava o andamento das aulas. Os

excertos abaixo retratam bem essa realidade de Violeta:

PESQUISADORA: “Você tem autoridade frente aos seus alunos?” VIOLETA: “tenho.”

PESQUISADORA: “hum, hum...”

VIOLETA: “só no finalzinho que eu me descontrolei um pouco porque entrou aluno novo, que vem de favela e quer dominar o pedaço, aí já... mas desde o começo do ano que meus alunos “sim senhora”, “não senhora”, “posso ir ao banheiro?”, tudo assim na educação,

depois que entrou [sic] 3 que veio lá do... cafundó do Judas lá, aí começou a... ainda bem que foi bem no finalzinho...”

PESQUISADORA: “hum, hum...”

VIOLETA: “não deu pra atrapalhar muito.”

PESQUISADORA: “Você acha que ser professor é uma profissão que se distingue de outras profissões? Como? No que é específico?”

VIOLETA: [4 segundos de silêncio] “bom eu acho que é a proximidade, da gente

conhecer, cada ano que passa, um novo aluno, né, a vida dessa criança também que é muito importante, os alunos sofrem demais...” [abaixa o tom de voz]

PESQUISADORA: “hum, hum...”

VIOLETA: “e agora que abriu aí as porta [sic] pra pegar essas criança [sic] da casa

do menor e casa de acolhimento, né, eu acho que tá tudo por aí...”

PESQUISADORA: “hum, hum, você acha que a profissão professor tem de específico

lidar com essas peculiaridades?”

VIOLETA: “nossa, demais né? Se a gente não lida com isso vamos fazer o que? Não

vamos deixar também ao Deus dará, né, não tem como.”

Violeta chegou a atribuir a especificidade da profissão docente ao fato de ter que lidar com crianças oriundas de lugares diversos. Ou seja, o fundamental da prática docente passava a ser lidar com a diversidade na visão de Violeta e esse lidar não apareceu relacionado ao ensinar, mas sim ao educar moralmente, ao conter, ao disciplinar. Ainda extrapolando um pouco os limites da análise desta pesquisa, cabe pensar o quanto essa disposição de Violeta não é uma disposição de todos os agentes daquela escola. Basta pensar no caso citado por Violeta de um

aluno “de inclusão” como ela costuma chamar de outra turma: o aluno era proibido de entrar

em sala de aula pela professora responsável e passava todo o período escolar passeando com a mochila nas costas pelos corredores. Violeta alegou ter tomado conhecimento do fato apenas no final do ano e chegou a comunicar à coordenadora, a qual, segundo ela, alegou ser essa uma responsabilidade da orientadora educacional e, ao que tudo indicou pelas afirmações de Violeta, o caso ficou por isso mesmo.