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Cinema de Autor vs Cinema Comercial: “Apocalípticos” vs “Integrados”

3. CINEMA DE AUTOR VS CINEMA COMERCIAL

3.2. Cinema de Autor vs Cinema Comercial: “Apocalípticos” vs “Integrados”

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O cinema e a rádio não necessitam já oferecer-se como arte. A verdade de que não são senão negócio serve-lhes como ideologia que deve legitimar a porcaria que produzem deliberadamente. Auto-definem-se como indústrias". Theodor Adorno no texto "A Indústria da Cultura"33

(Adorno,1947 apud Nogueira,1998:1)

As clivagens entre o cinema de autor e o cinema comercial são devedoras do conflito histórico em torno dos conceitos de arte e indústria, na era dos meios de comunicação de massas e da reprodutibilidade técnica. Sendo certo que, para Theodor Adorno, o cinema não é sequer arte34, a

matriz diferenciadora que estabelece entre o produto de alta e de baixa cultura é a matriz de opostos que separa na actualidade o cinema de autor do cinema dito comercial ou de entretenimento. Visto nos primórdios como mero negócio, o cinema, entretanto, internalizou a dialética da arte e da indústria, quer no campo da produção quer entre os seus públicos. De um lado, a cultura autêntica, autónoma e criativa, do outro o subproduto mercantil. Os diferendos ideológicos em torno da indústria da cultura e da cultura de massas, que marcaram quase todo o século XX e que ainda perduram sob formas mitigadas, fazem-se basicamente em torno de quatro pares de opostos35:

1) Cultura autêntica, ascética, auto-determinada, criativa e vanguardista versus cultura de massas, hetero-determinada, mercantil e conservadora;

2) Elitismo, modelo de cultura aristocrático versus democratização da cultura;

3) Reprodutibilidade técnica ao serviço do poder económico e político versus reprodutibilidade técnica ao serviço da participação democrática e de movimentos contra-hegemónicos;

4) Receptor-consumidor passivo, manipulado pela lógica mercantil capitalista versus receptor/produtor emancipado capaz de reacção contra-hegemónica.

Nos anos 60, Umberto Eco faz uma recensão crítica dos argumentos que alimentaram ao longo do tempo a discussão entre os detractores e os apologistas da indústria e cultura de massas, tratando-os ironicamente por apocalípticos e integrados. Estes epítetos caricaturais serviram para tipificar pelo extremo as posições em jogo: de um lado os que viam a cultura de massa como anti-cultura, um abastardamento da verdadeira cultura de matriz aristocrática; do outro os que viam nesse fenómeno a 33Adorno,Theodor e Max Horkeimer, Dialética do Esclarecimento (ou do Iluminismo, conforme as traduções),

1947.

34Em 1966, no texto “Transparências sobre cinema” (Adorno, 2003) o autor revê esta posição e reconhece no

Novo Cinema Alemão uma marca autoral que o distingue do cinema alemão de matriz Hollywoodiana.

35 As ideias contidas em cada par de opostos não são neutras. Alguns enunciados refletem as representações

recíprocas negativas de cada uma das partes da contenda.

democratização da cultura e a circulação irrestrita da arte e da cultura popular. De um lado, o pessimismo militante; do outro o optimismo cândido.

Eco clarifica a discussão, desmontando os equívocos e as agendas escondidas que pontificam em ambos os lados da contenda, elenca as posições razoáveis e propõe um caminho integrador. Aos apocalípticos aponta “a desconfiança ante o igualitarismo, a ascensão democrática das multidões, o discurso feito pelos fracos para os fracos, o universo construído não segundo as medidas do super- homem, mas do homem comum.” (Eco,1991(1964):36) Segundo Eco, a intolerância alimentada por este campo face à cultura de massas radica num preconceito aristocrático que aponta mais contra as massas e menos aos produtos da dita cultura de massas, que, aliás, mal conhece. O discurso crítico trabalha sobre um ressentimento e sobre a “nostalgia de uma época em que as valores da cultura eram um apanágio de classe e não estavam postos, indiscriminadamente, à disposição de todos” (Eco,1991(1964):36). Na defesa da cultura de massas, Eco encontra falta de sentido crítico e ingenuidade e, não raro também, interesses inconfessados no sistema de produção. O discurso elide por completo, por inconsciência ou interesse, o facto de a cultura de massas ser na sua grande maioria produzida por grupos económicos a quem interessa muito mais vender e induzir o desejo de consumo do que oferecer um produto verdadeiramente cultural. A salvo desses vícios, considera as abordagens de autores como Gilber Seldes, Daniel Bell, Edward Shils, Eric Larrabee, Georges Friedmann. São destes as proposições que Eco nomeia como atendíveis no campo dos apologistas e que se enumera em versão sumária:

a) A cultura de massas não é típica de um regime capitalista, mas de uma sociedade industrial. Nasce numa sociedade em que todos os cidadãos participam, com direitos iguais, na vida pública, nos consumos e na fruição das comunicações.

b) A cultura de massas não tomou o lugar da cultura superior, simplesmente difundiu-se junto de pessoas que nunca antes tiveram acesso aos bens da cultura.

c) Os media propõem informação em fluxo contínuo, onde, muitas vezes, não se distingue o dado válido do de pura curiosidade ou de entretenimento, mas esse acumulo resolve-se em muitos casos em formação efectiva.

d) À objeção de que a cultura de massa difunde produtos de entretenimento pouco dignos replica- se que desde sempre as multidões gostaram de circo.

e) A homogeneização do gosto contribuiria para eliminar diferenças de casta, permitiria unificar as sensibilidades nacionais e accionar reacções anticolonialistas em muitas partes do globo. f) A divulgação dos conceitos sob a forma de digest e a "revolução dos paperbacks"36 funcionou

como estímulo cultural.

36Difusão em massa de obras culturais canónicas a preços muito baixos e em edição integral.

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g) Os media não são estilística e culturalmente conservadores. Ao criarem um conjunto de novas linguagens (novas gramáticas do cinema, a transmissão em directo ou a BD) introduzem necessariamente novos modos de falar, novos estilos e novos esquemas perceptivos.

Do argumentário dos apocalípticos moderados, Eco retém como válidas as seguintes "peças de acusação":

a) Os mass media dirigem-se a um público heterogéneo e nivelam-no por baixo segundo "médias de gosto", evitando soluções originais.

b) Difundem à escala mundial uma "cultura" de tipo "homogéneo", destruindo as diferenças culturais de cada grupo étnico.

c) Dirigem-se a um público inconsciente da dominação cultural a que é sujeito, portanto incapaz de reagir em igualdade de forças.

d) Tendem a seguir o gosto existente ou consagrado, não promovendo rupturas nem renovações de sensibilidade. Mesmo quando parecem inovar, resumem-se à divulgação de modelos já há muito tempo difundidos no nível da cultura superior.

e) Apelam à adesão emocional e às emoções vivas e não mediadas.

f) Sujeitos à lei de mercado, oferecem ao público aquilo que ele quer ver ou pior, através dos mecanismos de sedução da publicidade, oferecem ao público aquilo que querem que veja.

g) Os produtos da cultura superior só passam nos mass media em formatos digest para não implicarem esforço.

h) Difundem informação em fluxo continuo sobre o presente e bloqueiam a consciência histórica. Encorajam uma visão passiva e acrítica do mundo.

i) Vocacionados para o entretenimento e o lazer requerem apenas um nível superficial de atenção, criando inapetência para a concentração.

j) Tendem a impor estereótipos e convidam ao conformismo no campo dos costumes, dos valores culturais, dos princípios sociais e religiosos e das tendências políticas.

l) Na aparência livres e democráticos, os mass media são uma típica superestrutura de um regime capitalista, usada para fins de controlo e manipulação das consciências.

Esgrimidos os argumentos de Apocalípticos e Integrados, Eco faz a sua síntese. A cultura de massas, boa ou má, é a condição inelutável do homem contemporâneo. A sociedade industrial e os meios de comunicação de massa são o ar que respiramos, é um exercício estéril saber se é bom ou mau que exista cultura de massas, ela é nos consubstancial. Importa conhecer as suas fraquezas e potencialidades e questionarmo-nos sobre qual a acção cultural possível a fim de permitir que os

media possam veicular efectivamente valores culturais.

As características atribuíveis, grosso modo, às categorias de cinema de autor e de cinema comercial, aplicadas à produção e ao consumo, são herdeiras e reproduzem em termos sintéticos grande parte do argumentário de Apocalípticos e Integrados. Tónica em noções de alta e baixa cultura por parte de autores defensores duma matriz de cultura “aristocrática” versus tónica em noções de acessibilidade por parte de autores adeptos da “democracia cultural”. O cinema de autor, na perspectiva da matriz “aristocrática” será, então, aquele que valoriza um cinema artístico, criativo, reflexivo, transgressor e de “mudança de horizonte”37 e o cinema comercial aquele que aposta no

entretenimento, em propostas mais comunicativas, em formatos reconhecidos e consagrados, portanto, um cinema de tipo “culinário”38. Para o olhar “integrado” ou para a matriz da “democracia cultural” o

cinema de autor é aquele que é feito para um nicho de intelectuais e o cinema dito comercial ou popular o que é feito para ser visto pelo cidadão comum. Não é demais sublinhar a ideia de que lidamos com abstracções ou conceitos puros e que entre um pólo e outro existem inúmeras declinações e matizes. Não é demais sublinhar também que estes conceitos - nas variações produzidas por cada um dos campos - são abstracções tornadas armas de arremesso na disputa por recursos escassos. Estes campos, que se caracterizam sobretudo por diferentes modos de produção de filmes, na luta pelos parcos financiamentos disponíveis, esgrimem argumentos ideológicos legitimadores. Convém ainda reforçar a ideia de que o campo do cinema de autor é muito mais forte na definição da narrativa e da sua representação social. A maioria dos conceitos positivos está associada a esse campo, porque é também ele que produz mais pensamento e teoria.

Ressalvas feitas, com base no contributo de “Apocalípticos” e “Integrados” podemos acrescentar algumas ideias matriciais à definição inicial das nossas categorias.

Ideias Matriciais

• cultura autêntica, ascética, auto-determinada, criativa e vanguardista; • modelo de cultura aristocrático/elitista;

• modelo heterogéneo / contra-hegemónico;

Cinema de Autor

• marca autoral;

fórmulas distintas e não padronizadas no campo da fotografia, do texto, da estrutura narrativa da mise en scène ou da montagem;

37 Conceito de Hans Robert Jauss (1993)que remete para a ideia de expansão de consciência a partir dum

consumo artístico significante e inovador relativamente às referências artísticas e à mundividência do receptor, ou seja relativamente ao seu “horizonte de expectativa”.

38 “Arte culinária”, conceito de Hans Robert Jauss (1993)que remete para a obra que não acrescenta valor e que

apenas confirma as referências culturais e as representações sociais do receptor.

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• sobreposição do valor da liberdade criativa ao valor do mercado;

legitimação no reconhecimento inter pares em festivais internacionais e junto da crítica.

Ideias Matriciais

• cultura de massas, hetero-determinada, mercantil e conservadora • modelo de democratização cultural

• modelo homogéneo | hetero-determinado – ao serviço de centros de poder económico;

Cinema Comercial

• realizador frequentemente indistinto, tipo “tarefeiro”;

• recurso a modelos já testados e a fórmulas consagradas na conquista de públicos; • uso de narrativas clássicas, propostas mais comunicativas e populares;

• legitimação na bilheteira.