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Cinema de Autor vs Cinema Comercial: “Puros” vs “Bárbaros”

3. CINEMA DE AUTOR VS CINEMA COMERCIAL

3.3. Cinema de Autor vs Cinema Comercial: “Puros” vs “Bárbaros”

Outra chave de entrada no entendimento e configuração das categorias tipo de cinema de autor e cinema comercial é a reflexão de Bourdieu sobre o campo da cultura e as estratégias de distinção que o atravessam.

Para Bourdieu, a cultura, na acepção de produção e de consumo artístico, desempenha mais que qualquer outra dimensão uma função de legitimação das diferenças sociais. A cultura, nos seus vários campos, seria um sistema hierarquizado, um campo de lutas entre grupos, com o objectivo de manter determinados privilégios distintivos. As práticas culturais, na modalidade de produção e consumo, tenderiam a identificar pertenças sociais. Permitiriam, portanto, distinguir dominantes de dominados. Bourdieu disseca os mecanismos da imposição cultural das classes dominantes, expondo os mecanismos ocultos de criação dos modos legítimos de produção e recepção cultural. Contrariando a ideologia carismática, que atribui a um dom da natureza a vocação artística e a apetência estética pela obra de arte legítima e pela cultura erudita, Bourdieu atribui esse “milagre” a um processo de aprendizagem e socialização que de tão natural e integrado se torna muitas vezes verdadeiramente obscuro e inconsciente para os seus próprios agentes. A comunicação entre o campo da produção e o da recepção supõe uma partilha de códigos, um mesmo habitus, um mesmo sistema de disposições permanentes e duráveis, ou seja, formas incorporadas de sentir, pensar e agir, que o autor descreve como habitus de classe.

A definição de “nobreza cultural” é pretexto de lutas simbólicas desde o século XVII entre grupos que esgrimem ideias diferentes de cultura e de relação legítima com a cultura e com as obras de arte e sobre as condições de aquisição. O gosto ou o olhar estético dominante na actualidade é, portanto, um produto da história e da luta de classes. O modo de percepção artístico que se impõe actualmente como legítimo é o do olhar “puro”, a disposição estética para apreciar a arte pela arte, pela forma e não pela função. Este modelo dominante de percepção estética é historicamente correlato de um modelo igualmente dominante de produção artística autónoma. Um modelo de verdadeira autarcia artística que impõe o primado da forma sobre a função e do modo de representação sobre o objecto representado. Passou-se de “uma arte que imita a natureza para uma arte que imita a arte” (Bourdieu, 1968:11) e que não reconhece qualquer outra necessidade para além da inscrita na sua própria história e tradição enquanto disciplina artística, com as suas experimentações, transgressões e rupturas.

Este entendimento da arte pela arte, decreta como legítima apenas a percepção estética dotada de uma competência cultural específica: a capacidade de distinguir os estilos, modos de expressão característicos de uma época ou escola, portanto a capacidade de identificar os traços distintivos, e apenas estes, face a um conjunto dado de obras. Como refere Bourdieu, este é um saber de elite, adquirido pela simples frequência e convivialidade inconsciente com as obras, num contacto de familiaridade despreocupada, portanto natural, incorporado, mas não “escolarizado”. Daí o reconhecimento ser feito sem regras nem critérios explícitos e nem sempre ser fácil a enunciação dos traços constitutivos da originalidade da obra.

O olhar “puro” distingue-se do “impuro”, o dito gosto “bárbaro”, não só por essa competência de classificação da obra, mas também pela recusa de tudo o que é “ordinário” - por oposição a “distinto” -, como as emoções ou as paixões experimentadas pelo homem comum na sua vida igualmente comum. O olhar “puro” é determinado por um princípio de liberdade que se opõe ao princípio de necessidade do gosto “bárbaro”.

Os intelectuais acreditam mais na representação pela literatura, teatro, pintura - que nas coisas representadas, ao passo que o "povo" exige, antes de tudo, que as representações e as convenções que as regulam lhe permitam acreditar "naivement" nas coisas representadas. (Bourdieu, 1968:13)

Com efeito, a estética dita popular subordina a arte à vida e a forma à função. Nenhum experimentalismo formal se pode interpor entre o espectador e as personagens. Nenhum dispositivo de distância é bem vindo e “toda a imagem deve exercer explicitamente uma função, nem que seja a de signo” (Bourdieu,1968:12). Por oposição à estetização da vida, ao despreendimento e agnosticismo moral da estética “pura”, o gosto popular é marcado por juízos morais, obedece a um princípio ético e subordina a arte aos valores da arte de viver.

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Onde o carácter sagrado e separado da cultura legítima coloca a solenidade dos museus, óperas e teatros, a censura do conteúdo expressivo, o distanciamento inerente à experimentação formal, a comunicação pouco comunicante, a estética popular coloca a participação no espectáculo, a festa colectiva, o circo, o teatro de Boulevard, a opereta ou o filme de grande espectáculo, tudo manifestações culturais menos formalizadas que oferecem satisfações mais directas e imediatas (Bourdieu, 1968:37). O gosto “bárbaro", nos antípodas da estética dominante, reconhece apenas a representação realista - ou fantasiosa, mas não ambígua - de objetos que se destacam pela sua beleza ou importância social.

A correspondência e a coincidência histórica entre o modelo de produção artístico dominante (e, por conseguinte, legítimo) e o modelo perceptivo dominante – o gosto “puro” - é explicada pela já referida partilha de um habitus de classe e pela “a homologia, mais ou menos perfeita, entre os campos de produção especializados em que se elaboram os produtos e os campos das classes sociais ou da classe dominante em que se determinam os gostos(...)” (Bourdieu, 1968:215). Todos os campos de produção cultural, do cinema, ao teatro, da literatura à alta costura, tendem a organizar-se segundo uma mesma lógica de conflito em torno do capital específico possuído por cada um dos seus agentes e subcampos e da antiguidade desse capital, gerando-se lutas simbólicas entre dominantes e dominados, consagrados e emergentes, entre tradição e vanguarda. Lutas, que homólogas entre os vários campos da produção artística, são também homólogas daquelas que atravessam o campo das classes sociais e o campo da classe dominante entre os grupos instalados e os aspirantes. O gosto selará depois esse acordo e encontro entre classe de produtos e classe de consumidores. Através do gosto, o consumidor procura os bens adequados à sua posição e que estão também eles situados em posições sumariamente equivalentes nos seus respectivos campos. O intelectual procura o filme culto e o cidadão comum procura o blockbuster, a elite procura o romance clássico e o assalariado procura o policial.

De regresso ao cinema, nesse como em qualquer outro campo cultural, verifica-se a existência de clivagens de ordem estética e conflitos simbólicos entre modelos de produção com mais ou menos capital específico, a que correspondem produtores e públicos distintos entre si, também eles com diferentes capitais de prestígio.

No campo cinematográfico português, apesar da suspeita de perda de terreno nas políticas públicas, o cinema de autor detém ainda um papel dominante em termos simbólicos, exactamente por ser aquele que encarna as tradições estabelecidas pelas artes consagradas da alta cultura. O modelo dominante da arte pela arte, marcado pela inovação formal e por uma maior autonomia face ao mercado, consegue ainda atribuir foros de nobreza aos seus autores e aos seus cada vez mais rarefeitos públicos, mesmo quando falamos do cinema de autor tout court e não apenas nacional.

Novamente, com base no contributo da teoria dos campos de Bourdieu podemos acrescentar mais ideias matriciais à definição das categorias em análise.

Ideias Matriciais

• cultura autêntica, ascética, auto-determinada, criativa e vanguardista; • modelo de cultura aristocrático/elitista;

• modelo heterogéneo / contra-hegemónico;

• disposição estética para apreciar a arte pela arte, pela forma e não pela função; • primado da representação sobre o objecto representado;

• percepção estética dotada de uma competência cultural específica: a capacidade de distinguir os estilos, modos de expressão característicos de uma época ou escola;

• estetização da vida, despreendimento e agnosticismo moral da estética “pura”;

Cinema de Autor

• marca autoral;

fórmulas distintas e não padronizadas no campo da fotografia, do texto, da estrutura narrativa da mise en scène ou da montagem;

• sobreposição do valor da liberdade criativa ao valor do mercado;

legitimação no reconhecimento inter pares em festivais internacionais e junto da crítica.

Ideias Matriciais

• cultura de massas, hetero-determinada, mercantil e conservadora; • modelo de democratização cultural;

• modelo homogéneo | hetero-determinado – ao serviço de centros de poder económico; • disposição estética para apreciar a arte associada à função;

• primado do objecto representado sobre o modo de representação, as representações e as convenções que as regulam devem permitir acreditar nas coisas representadas;

• valorização da representação realista - ou fantasiosa, mas não ambígua - de objetos que se destacam pela sua beleza ou importância social.

• A arte deve subordinar-se aos juízos morais e princípios éticos da comunidade

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Cinema Comercial

• realizador frequentemente indistinto, tipo “tarefeiro”;

• recurso a modelos já testados e a fórmulas consagradas na conquista de públicos; • uso de narrativas clássicas, propostas mais comunicativas e populares;

• legitimação na bilheteira