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Portugal [1971-2016]: o capítulo da cultura nos programas de governo

4. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CINEMA

4.2. Portugal [1971-2016]: o capítulo da cultura nos programas de governo

A análise das políticas públicas para o cinema em Portugal entre 1971 e 2016 não se fará sem antes se pintar um retrato rápido das ideias de cultura inscritas nos programas de governo, de 1974 à actualidade. Os capítulos dedicados à cultura dos programas governamentais dos VI governos provisórios (gp) e dos XXI governos constitucionais (gc),77 apesar das marcas do tempo na

linguagem, e das sabidas diferenças ideológicas, são bastante parecidos nos seus enunciados gerais. Mais ou menos detalhados, mais abstractos ou mais programáticos, os objectivos passam invariavelmente pela promoção do acesso à cultura, fomento da criação e da fruição cultural, democratização do acesso à produção cultural, descentralização, valorização da produção cultural de base, identificação da cultura com a identidade nacional. Passam por aqui os vários momentos da consciência colectiva sobre as políticas da cultura – modelo de democratização e de democracia cultural, em modalidade hibrida ou integrativa, permitida pela vantagem do tempo sobre os momentos inaugurais do pensamento sobre política cultural. Foi possível, no entanto, encontrar algumas diferenças no espaço dedicado à cultura - o que só por si pode ser lido como indicador da relevância do tema num determinado período histórico ou para um determinado executivo - bem como a genealogia de algumas ideias. Os programas dos governos provisórios são parcos em desenvolvimentos sobre o tema da cultura: os programas do II e VI dedicam-lhe uma linha, no programa do III o tema é omisso e não é conhecido programa do IV. O programa do V gp documenta o espírito do tempo em que é produzido: sublinha a necessidade de acesso à cultura e de nivelamento sócio-cultural, o combate ao elitismo do passado e percebe-se a intenção voluntarista das campanhas de dinamização cultural no papel de intermediação atribuído a profissionais da informação, intelectuais e artistas. Os primeiros sinais de liberalismo surgem nos programas de governo PSD de Aníbal Cavaco Silva – X, XI e XII. Neles encontramos as primeiras referências à participação das

76 (Cunha, 2003); (Cunha,2005); (Cunha, 2014); (Vieira, 2011) (sem autor, 2004)

77 Programas consultados na página da República Portuguesa:http://www.portugal.gov.pt/pt/o-governo/arquivo- histo rico.aspx Excertos dos capítulos da cultura, disponíveis no Anexo B.

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entidades privadas como agentes de política cultural, à prática do mecenato, à protecção do património como direito e dever do cidadão, à função supletiva do Estado na esfera da cultura, à contenção da intervenção do Estado enquanto afirmação de liberdade e é também nestes textos que pela primeira vez o valor do património cultural se parece sobrepor ao fomento da criação cultural. No entanto, a primeira referência a linhas de crédito e a um sistema integrado de benefícios fiscais encontramo-la mais cedo, no programa do VIII governo constitucional, da Aliança Democrática, presidido por Pinto Balsemão e com Francisco Lucas Pires na pasta da Cultura e Coordenação Cientifica. Estas linhas de força encontram-se amplamente desenvolvidas no programa do XIV e XIX governos, ambos coligações PSD/CDS-PP. Só em 1995, no XIII governo constitucional, presidido por António Guterres e com António Maria Carrilho como titular da pasta, a cultura é elevada a ministério autónomo (da educação e da ciência). Neste consulado, firmam-se novos valores e práticas que circulavam já na esfera europeia e que se mantém válidos na actualidade: a participação das instituições artísticas portuguesas, públicas e privadas, nas redes europeias de produção e circulação culturais, através de modalidades de co-produção internacional; a profissionalização artística como condição de existência de um verdadeiro mercado da cultura, assente em circuitos estáveis de produção, circulação e consumo de bens culturais; o entendimento da cultura como factor de construção e afirmação da identidade nacional, numa perspectiva de universalismo e de diálogo intercultural. A primeira referência explicita ao papel económico da cultura, ao turismo cultural e às indústrias criativas, encontramo-la no programa do XV governo, de José Manuel Durão Barroso. Valor que se mantém presente em todos os governos posteriores de esquerda ou direita.

São poucos os programas de governo que não traçam algumas linhas sobre o sector do cinema. Curiosamente, desde o II governo provisório, portanto desde 1974, são várias as referências à necessidade de revisão da lei do cinema – programa do II gp; I, II, VII, gc – sendo de notar que apesar da intenção, a lei se mantém praticamente intocada durante 22 anos – de 1971 a 1993 – salvo a extinção do “Adicional” pelo Decreto-lei 143/90 de 5 de Maio. Outro dado curioso prende-se com o facto de em vários programas até ao IX gc (1985) se fazer menção ao fomento do “cinema de qualidade” e de a partir dai deixar de haver adjectivação qualitativa e abundar a linguagem tecnocrática do “estímulo a uma programação cinematográfica regular, estável e diversificada” do “reforço dos circuitos de distribuição nacional e internacional da produção portuguesa”78, do “abrir o

mercado à circulação das produções portuguesas“79a “definição de mecanismos de regulação de

mercado, apoiando a difusão da produção de cinema”80. Aparentemente o valor da qualidade, ainda

que ambíguo e discutível, é obliterado e a tónica é colocada sobre a circulação nacional e internacional da produção portuguesa tout court.

78 Programa do XIII gc..Excerto disponível no Anexo B 79 Programa do XV gc..Excerto disponível no Anexo B 80 Programa do XVI gc..Excerto disponível no Anexo B

Convém ter presente que todas as leis quadro do cinema no pós 25 de Abril foram produzidas por governos de direita : DL350/ 1993 de 7 de Outubro - XII gov. constitucional | Lei 42 / 2004 de 18 de Agosto - XVI gov. constitucional | Lei 55 2012 de 6 de Setembro - XIX gov. constitucional - Este dado é interessante na medida em que historicamente os partidos de direita tendem a relevar o valor económico das obras e actividades culturais, enquanto os partidos de esquerda tendencialmente valorizam a sua dimensão artística, formativa, cívica e política. No entanto, a produção legislativa para o sector não se cinge às leis quadro e muita regulamentação coube a governos PS: XIII e XIV; XVII e XVIII gc, entre ela a portaria 714/96 de 9 de Dezembro que aprova o regime de apoio financeiro à produção cinematográfica e o DL 227/2006 de 15 de Novembro que regulamenta a lei 42/2004 de 18 de Agosto, ambos diplomas que restituíram alguma tranquilidade ao meio. O primeiro por regularizar dívidas da produção ao Estado (IPACA) e por instituir o subsídio a fundo perdido como única modalidade de apoio pública ao cinema e o segundo por resolver fantasmas deixados em aberto pela lei 42/2004 - o ICAM, omisso na lei, reaparece como financiador directo da actividade cinematográfica e mantém na integra a verba resultante da taxa de exibição e o Fundo do Investimento para o Cinema e Audiovisual fica claramente delimitado como fonte de financiamento complementar. Os capítulos da cultura dos 27 programas de governo encontram-se sistematizados no Anexo B.