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4. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CINEMA

4.3. Portugal [1971-2016]: a legislação

4.3.3. O que FICA do que passa: Lei 42/2004 de 18 de Agosto

Portaria nº277/2007, de 14 de Março

A Lei 42/2004 elide qualquer referência ao Instituto do Cinema, então Instituto do Cinema Audiovisual e Multimédia (ICAM) e prevê a criação dum fundo de investimento de capital, destinado ao fomento e desenvolvimento das artes cinematográficas e do audiovisual, ao qual consigna receitas dos operadores privados de televisão, dos exibidores e distribuidores cinematográficos, para além duma participação do Estado. Com excepção da taxa de exibição de publicidade,89 sem destino

explícito na letra da lei, e de 2% da receita de distribuidoras de cinema e vídeo que se aplicaria ao co- financiamento ou à co-produção directa de cinema (sendo que o não cumprimento total ou parcial dessa obrigação faria reverter a verba para o fundo de investimento), todas as restantes fontes de financiamento são canalizadas para o fundo de investimento, embrião legal do futuro Fundo de

88 Informação mais detalhada na Grelha de Análise: Leis Quadro e Diplomas Regulamentares, Anexo C.

89 A taxa de exibição, para além das salas de cinema, é alargada à publicidade presente em todos os operadores

e distribuidores de televisão e guias electrónicos de programação.

Investimento do Cinema e do Audiovisual (FICA). A reacção ao diploma fez-se sob a forma de um violento manifesto contra a entrada duma lógica de investimento e negócio nas políticas públicas para o sector, que previsivelmente traria consigo o favorecimento de produções de entretenimento.

Depois de um longo processo, o Governo prepara-se para fazer aprovar, no próximo dia 30, no plenário da Assembleia da República, uma nova Lei do Cinema, desta vez intitulada Lei das Artes Cinematográficas (porquê o plural?) e do Audiovisual. Do texto desta Lei desaparece o Instituto do Cinema e é criado um denominado Fundo para o Investimento e Fomento das Artes Cinematográficas e do Audiovisual, através do qual o Governo ameaça converter o (pouco) dinheiro disponível para a produção do cinema português no capital de um suspeito negócio a estabelecer com os distribuidores e exibidores americanos e as estações privadas de TV e destinado a financiar projectos com uma suposta ― grande atractividade comercial.(...) Sacrificar uma cinematografia a tais desígnios é um crime hediondo, incompatível com a história e as regras da democracia e a defesa da liberdade. E tudo indica poder ser este apenas o princípio do fim da soberania cultural portuguesa, um fim anunciado para a sua independência e originalidade, em nome de uma literatura de best-sellers, de uma pintura e de uma escultura decorativas, de um teatro de anedotas, de uma dança folclórica, o regresso, enfim, a um país de analfabetos e ao pesadelo de uma cultura retrógrada, completamente abandonada às conjunturas do mercado e aos interesses dos senhores que o comandam. Viva o CINEMA PORTUGUÊS !90

A regulamentação da Lei 42/2004 é feita dois anos depois com o DL 227/2006, já na vigência de um novo executivo - o XVII, socialista – e recupera a referência ao ICAM. Com a criação do fundo de investimento, os apoios financeiros do ICAM passam a ser atribuídos exclusivamente em regime de financiamento a fundo perdido. O diploma regulamentar de 2006 traz consigo outras novidades. Explicita, pela primeira vez, o regime de constituição de júris para os concursos do Instituto do Cinema e apresenta de forma detalhada e operativa os vários programas de apoio, modelo que passará a ser comum em legislação posterior. Mas a marca do diploma é seguramente outra. O legislador regista o duplo papel do Estado enquanto agente de políticas públicas protectoras do cinema enquanto bem cultural e enquanto promotor da indústria do cinema e do audiovisual, mas o seu posicionamento não parece equidistante. A ampla descrição e fundamentação das virtudes do fundo de investimento no Preâmbulo do DL 227/2006, quando comparada com as parcas linhas dedicadas ao cinema assumido como bem cultural, não rentável, sugere uma forte crença nas potencialidades dum cinema comercial no mercado português, senão mesmo internacional.

(...) no presente decreto-lei, o Estado assume claramente, por um lado, as suas responsabilidades na protecção e apoio à criatividade artística na área do cinema e do audiovisual, reconhecendo que a

90Excerto do Manifesto da APR sobre a Lei do Cinema, apresentado na fase de discussão da lei na Assembleia,

a 24 de Março de 2004. Versão integral no Anexo M

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preservação e afirmação do património e das identidades culturais exige políticas públicas que subtraiam os bens culturais à condição de meras mercadorias—como se estabelece, de resto, na Convenção da UNESCO para a Protecção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada em Outubro de 2005, subscrita pela grande maioria dos países, incluindo todos os da União Europeia. Por outro lado, porém, é criado simultaneamente, através do referido fundo de investimento, um instrumento complementar, que contempla a dimensão económica do sector do cinema e do audiovisual e a necessidade de promover a sua sustentabilidade, designadamente através do estímulo ao investimento e à participação do sector privado no desenvolvimento dessa indústria, bem como através do recurso a novos mecanismos financeiros. Mais próximo da realidade do mercado, o fundo tem como missão principal promover a consolidação e o desenvolvimento do tecido de pequenas e médias empresas do sector. Pelo exposto, o fundo é configurado como um património financeiro autónomo, sem personalidade jurídica. Funciona como um instrumento de direito privado com participação minoritária do Estado, ao qual é reservado o papel de zelar pelo cumprimento dos objectivos estratégicos que, em termos de política pública, o mesmo se propõe atingir. (...). No mesmo sentido, considerou-se importante assegurar vias de compatibilidade e complementaridade entre o fundo e outros financiamentos públicos e privados potencialmente acessíveis, a nível nacional e internacional, convidando ao desenvolvimento de modalidades inovadoras e mutuamente vantajosas de engenharia financeira aplicada ao audiovisual, em sintonia com os objectivos nacionais gerais de reforço da inovação e da competitividade, de acordo com as recomendações europeias. Com a configuração acolhida no presente diploma, o fundo é colocado em sintonia com uma óptica de longo prazo e de desenvolvimento estrutural, que consagra o sector do cinema e do audiovisual como um sector por excelência e de grande potencial da sociedade do conhecimento, com ritmos e capacidade de crescimento superiores aos de muitos outros sectores, assente em capital criativo e emprego qualificado, estreitamente associado à introdução e utilização de novas tecnologias, mas que apresenta ainda notórias desigualdades de desenvolvimento entre os seus diferentes subsectores, bem como insuficiências estruturais e lacunas de mercado. A abordagem de longo prazo que os mecanismos de financiamento agora introduzidos visam servir permite que o sector cinematográfico e audiovisual seja mais facilmente integrado em estratégias de desenvolvimento nacionais e comunitárias mais abrangentes, inclusivamente em ligação com as intervenções dos fundos estruturais ou outros dispositivos europeus. Quanto aos domínios inscritos na política de investimento do fundo, considerou-se que a interacção entre os subsectores do cinema e da televisão é uma realidade característica do sector audiovisual, na acepção lata, e que uma visão integrada do sector deve contemplar ambos os tipos de produção, também com vista ao reforço da sustentabilidade económica e da capacidade criativa e produtiva das empresas independentes que operam nos dois subsectores em causa. Do mesmo modo, e tendo em conta os desafios das novas tecnologias e da nova economia do cinema e audiovisual, considerou-se importante estimular o desenvolvimento de obras concebidas para explorações inovadoras que incluam plataformas não tradicionais. (...). (Preâmbulo do DL 227/2006)

Mau grado as expectativas do governo, o FICA, cujo regulamento de gestão é fixado pela Portaria nº277/2007 e revisto pelo menos três vezes, tem uma carreira muito curta e conturbada.91 Com um

capital inicial previsto de 83 milhões de euros para um período de sete anos, participado pelo Estado, pela PT Multimédia, RTP, SIC e TVI, o fundo paralisa em 2009, com um capital efectivamente realizado pelos participantes e investimento efectivo de 23.900.000€ e 20.392.254€ de prejuífzos acumulados, contas feitas à data da sua liquidação em 2014 92. A maior parte das obras participadas

pelo FICA pertence à matriz do produto televisivo (ex. Second Life de Alexandre Valente e Miguel Gaudêncio, Amália – O Filme e Uma Aventura na Casa Assombrada ambos de Carlos Coelho da Silva, A Bela e o Paparazzo de António-Pedro Vasconcelos, Assalto ao Santa Maria de Francisco Manso; Arte de Roubar de Leonel Vieira; Quero Ser Uma Estrela de José Carlos de Oliveira ou

Collider de Jason Butler (projecto transmédia); A Teia de Gelo de Nicolau Breyner; Moral Conjugal

de Artur Serra Araújo), mas nem por isso cumpre a pretensão de ganhar com foguetes e fanfarra na box-office e muito menos de dar cartas na arena internacional. Uns pontos acima deste padrão, contam-se alguns títulos como: Entre os Dedos de Tiago Guedes e Frederico Serra; Como Desenhar

um Círculo Perfeito de Marco Martins; Morrer como um Homem de João Pedro Rodrigues, A Espada e a Rosa de João Nicolau, Duas Mulheres de João Mário Grilo, A Religiosa Portuguesa de Eugène

Green e os documentários Pare, Escute e Olhe de Jorge Pelicano, Joana – Coração Independente de Cláudia Varejão, O meu amigo Mike - M. Biberstein de Fernando Lopes e As Horas do Douro de Joana Pontes e António Barreto. Entre outros problemas, o FICA ter-se-á confrontado com o crónico problema da ausência de mercado e não foi capaz de o inverter. Os filmes financiados não se distinguem por performances excepcionais em sala. Após três anos de actividade do FICA e depois do cinema português ter alcançado em 2005 um novo record de bilheteira,93 com os mais de 380 mil

bilhetes vendidos para O Crime do Padre Amaro de Carlos Coelho da Silva, em 2009 o panorama da exploração em Portugal é ainda o seguinte: 174 recintos com 577 ecrãs perfazem €1,8 milhões (2,5% da cota de mercado em receita) com 22 estreias nacionais, vistas por 426.229 espectadores dum total de cerca de 16 milhões anuais, o que equivale a uma quota de mercado de 2,7%. Considerando apenas as longas-metragens, os espectadores portugueses viram no cinema, nesse ano, um total de 271 filmes: desses, 49,8% eram americanos, 16,6% co-produções Europa/ EUA, 31% europeus, 2,6% vinham de outras regiões do globo e os filmes portugueses representaram unicamente 8,1% do total. 94

O fracasso do FICA e a fragilidade do modelo de financiamento do ICA, combinadas com o empobrecimento do país, sob as ondas de choque da crise financeira de 2008, tornam a situação dos cineastas cada vez mais crítica e é neste contexto que surge em 2010 o movimento de contestação 91A gestão financeira do fundo passa do grupo Espírito Santo (ESAF/BES) para o BANIF.

92 Relatório de Auditoria nº 27/2015 do Tribunal de Contas

93 Depois do filme Tentação de Joaquim Leitão ter conseguido 360 mil espectadores em 2004. 94Dados do Anuário do ICA de 2014 relativos a 2009. Anexo J

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Manifesto pelo Cinema Português. Vários realizadores e produtores, em petição dirigida à Ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, apelam à normalização da actividade do FICA e a um novo modelo de financiamento do cinema, dependente há décadas dos cada vez mais parcos proveitos da publicidade nas televisões e salas de cinema.

Depois de mais de seis anos de inoperância e desleixo dos sucessivos Ministros da Cultura, que conduziram o cinema português à beira da catástrofe, impõe-se: 1. Normalizar o funcionamento do FICA (Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual) reconduzindo-o à sua natureza original: um fundo de iniciativa pública, tendo como objectivo o aumento dos montantes de financiamento do cinema e da ficção audiovisual original em língua portuguesa e o fortalecimento do tecido produtivo e das pequenas empresas de produção de cinema. E fazer entrar nos seus participantes e contribuintes os novos canais e plataformas de televisão por cabo (Meo, Clix, Cabovisão, etc), que inexplicavelmente têm sido deixados fora da lei; 2. Multiplicar as fontes de financiamento do cinema português, nomeadamente junto da actividade cinematográfica, recorrendo às receitas da edição DVD (a taxa cobrada pela IGAC, cuja utilização é desconhecida, e que na última década significou dezenas de milhões de euros); à taxa de distribuição de filmes (que há décadas não é actualizada) e à taxa de exibição. As receitas das taxas que o Estado cobra ao funcionamento da actividade cinematográfica devem ser integralmente reinvestidas na produção e na divulgação do cinema português (produção, distribuição, edição DVD, circulação internacional); 3. Aumentar as fontes de financiamento do Instituto de Cinema, para aumentar o número, a diversidade, a quantidade e a qualidade, dos filmes produzidos. Filmes, primeiras-obras, documentários, curtas-metragens, etc. 4. Apoiar os distribuidores e exibidores independentes, e estimular o aparecimento de novas empresas nesta actividade, de forma a que o cinema português, o cinema europeu e o cinema independente em geral, possam chegar junto do seu público. E apoiar os cineclubes, as associações culturais e autárquicas, os festivais e mostras de cinema, que um pouco por todo o país fazem já esse trabalho; 5. Fazer cumprir o Contrato de Serviço Público de Televisão por parte da RTP, que o assinou com o Estado Português, e que está muito longe de o respeitar e às suas obrigações, na produção e na exibição de cinema português, europeu e independente em geral. E contratualizar com os canais privados e as plataformas de distribuição de televisão por cabo, as suas obrigações para com a difusão de cinema português.”95

95Petição Manifesto pelo Cinema Português, assinada pelos realizadores: Manoel de Oliveira; Fernando Lopes;

Paulo Rocha; Alberto Seixas Santos; Jorge Silva Melo; João Botelho; Pedro Costa; João Canijo;Teresa Villaverde; Margarida Cardoso; Bruno de Almeida; Catarina Alves Costa; João Salaviza e pelos produtores: Maria João Mayer (Filmes do Tejo); Abel Ribeiro Chaves (OPTEC); Alexandre Oliveira (Ar de Filmes); Joana Ferreira (C.R.I.M.); João Figueiras (Black Maria); João Matos (Terratreme); João Trabulo (Periferia Filmes) e Pedro Borges (Midas Filmes). Anexo N

QUADRO SÍNTESE:96

Lei Quadro: Lei 42/2004 de 18 de Agosto [2004 - 2012] Diploma Regulamentar: DL 227/2006 15 de Novembro

Cria o Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual – FICA. Tentativa de criação duma indústria de cinema.

O Estado, a PT Multimédia, a RTP ,a SIC, a TVI e mais tarde a ZON/NOS, através do Fundo de Investimento, convertem-se em parceiros de negócio dos produtores de cinema e audiovisual.

Financiamento [FICA]:

5% das receitas relativas à prestação de serviços dos operadores e distribuidores de televisão com serviços de acesso condicionado.

Distribuidores: montantes não aplicados no investimento directo na produção cinematográfica e audiovisual até um total mínimo de 2%.

Exibidores: 2,5% da receita de bilheteira destina-se a assegurar a participação dos exibidores no FICA.

Financiamento [ICAM|ICA]:

Taxa de Exibição (de publicidade): 4% paga pelos anunciantes (3,2% Instituto do Cinema, 0,8% Cinemateca)

Apoios Directos à Produção:

2% das receitas provenientes da distribuição de cinema.

4.3.4. Novos financiamentos, novos problemas: Lei 55/2012 de 6 de Setembro