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O cinema resignificando a Praça Floriano

A “BROADWAY” BRASILEIRA E SEU SIGNIFICADO NO PROJETO DE FRANCISCO SERRADOR

3.1 A HEGEMONIA DO CINEMA AMERICANO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CINELÂNDIA SE CRUZAM NO PROJETO DE

3.3. O PAPEL SIMBÓLICO QUE A INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA DESEMPENHOU NA HERANÇA HISTÓRICO-CULTURAL DA

3.3.3. O cinema resignificando a Praça Floriano

No que diz respeito à Praça Floriano, no Rio de Janeiro, a reprodução cultural baseada nos valores americanos construiu um significado emblemático. Os novos contextos de representação cultural e urbana que se organizaram no início do século XX permitiram na década de 1920 a harmonização dos interesses dos especialistas da indústria cultural com os do poder público na busca por uma identidade civilizatória para o Rio de Janeiro.

O processo de formação do patrimônio simbólico da Cinelândia foi possível através da transformação do espaço urbanístico que trouxe novos ares europeus ao centro cosmopolita da cidade. A construção do “Pentágono das Artes” na Praça Floriano (Praça Ferreira Viana, até 1910) foi a vertente cultural desta intervenção. No Rio de Janeiro, nos anos seguintes à proclamação da República, a nação que interessava ser apregoada tinha que ser cosmopolita mediante a reprodução de uma modernidade em nome da qual se organizava uma reforma urbanística e cultural na Europa.

Por outro lado, a alta cota de cosmopolitismo da cidade revelou sua contradição que foi a exclusão de setores populares das áreas valorizadas da nossa suposta brasilidade. Intensificava-se ou em alguns casos surgia a diferenciação de lazer de elite e do povo, do agravamento das diferenças sociais e da perda de referencias culturais especificamente nacionais.

Com a passagem dos EUA como centro de referencia mundial após a Primeira Guerra Mundial, esta alta cota de cosmopolitismo explicada pelos movimentos migratórios e pela crescente urbanização vai consolidar a influencia cultural naquele espaço fortemente vinculada ao cinema.

A industria cinematográfica está regida pelas necessidades de acumulação econômica e reprodução da forca de trabalho. Através dela será conduzida a tentativa de exercer uma profunda transformação na paisagem cultural da Praça Floriano, cuja função se enquadra no projeto de recriação da Broadway por Francisco Serrador. Embora tenha havido transformação do espaço físico, ela é menos evidente. Os edifícios construídos por Serrador e seus parceiros ainda usufruem a estrutura eclética do Pentágono das Artes, embora tenham sido acrescentados nos novos prédios os formatos afinados com as vanguardas estabelecidas pela Escola de Chicago nos grandes “arranha- céus” americanos e no art-decó.

Vimos anteriormente como os novos prédios erguidos por Serrador buscavam aproveitar a base européia nas construções demonstrando mais empenho pelas funcionalidades. Assim, sem abrir mão dos interesses voltados para o consumo de massa se permitia fazer adaptações ao modelo americano mais espetacularizado. É claro que parte destas adaptações possa ser explicada pela falta de investidores que financiassem os planos mais ousados de construção, mas também é verdade que Serrador sabia das limitações de seu sonho. As transformações ocorrerão então, mais nos sentidos da apropriação cultural e menos nas transformações do patrimônio físico instalado no espaço do Convento da Ajuda.

Alguns aspectos de adaptação à matriz americana quando se estuda a implantação das indústrias culturais na América Latina foram captados por Paulo Paranaguá (2003)156. A consolidação dos principais gêneros cinematográficos, como o melodrama e a comédia, ambos com fortes ingredientes musicais está vinculada na

156 Cf. PARANAGUÁ, Paulo Antonio. La Cinelandia carioca: una utopia ciudana. Amérique Latine

América Latina à sua tradição teatral, independentemente da origem européia ou americana. O cinema mudo explorou outros temas como os filmes policiais, de aventura ou históricos, mas sem suplantar na América Latina a comédia e o drama. Os diversos movimentos de renovação cinematográfica dos principais países latinos estão vinculados às diversas manifestações do teatro. Pode ser citado o Cinema Novo brasileiro alimentado pelas obras de Nelson Rodrigues e pelo teatro nacionalista. O teatro independente portenho que estimula o “Nuevo Cine” argentino. Em Cuba o cinema pós-revolucionário encontra seus antecedentes no Teatro Estúdio de 1958. Venezuela, Colômbia e México seguem o mesmo caminho.

O papel simbólico que a industria cinematográfica desempenhou na herança histórica da Cinelândia passa pelos referentes de identidade coletiva que foram estudados por Canclini (1994:98). Ele entende que a cultura nacional muda de acordo com a época. O território, a população e os costumes são as partes formadoras de uma nação, mas esta é uma construção imaginária. Assim, segundo Canclini, o modelo ideal de nação é tanto resultado de fatos altamente significativos quanto da matriz idealizada por quem elabora o sentido da nação. A concepção coletiva então é conduzida pelo discurso político a partilhar valores que se constituem em patrimônio. (p. 99).

Ocorre que o conjunto social pode considerar como patrimônio tanto os bens de natureza material, como monumentos, museus ou desenhos urbanísticos, quanto os de natureza imaterial, como linguagem, tradições, conhecimentos e modos de uso.

Essa construção vai sendo atualizada pelos processos modernizadores suscitados pela urbanização e industrialização da cultura, originando novas referências de identificação coletiva. Os veículos de comunicação como o rádio e cinema, surgidos no inicio do século XX, descrevem essa realidade material e simbólica da maneira que lhes convém, ou melhor, da maneira como interessa aos atores políticos e da indústria cultural emergente. Esta ficção desempenha um papel preponderante quando se organiza junto aos detentores de capital político, que se interessam em projetar um mapa mental na vida social dos habitantes da nação ou da cidade.

O crescimento das cidades latinoamericanas em princípios do século XX originou uma outra classe de idealização contraposta àquela que ainda se podia observar nos primeiros anos do cinema, voltada para as cenas provincianas. A idealização centralizada na utopia urbana refletia-se no Brasil em mentalidades sintonizadas com as metrópoles como São Paulo ou com o cinturão cosmopolita da Praça Floriano. O espetáculo cinematográfico ocupou um lugar fundamental na nova cultura urbana.

Considerada uma intervenção de alinhamento radical na cidade, a reforma Passos tenta preparar a cidade para uma paisagem estabilizada que erradicaria os pobres e prepararia a cidade para o mercado internacional. Ao contrário das demais cidades latinas que cresceram em volta de uma plaza mayor com um desenho retilíneo das ruas, a população do Rio de Janeiro foi se adaptando à paisagem sem uma planificação elaborada e observando vários centralidades geográficas desde a vinda de D. João VI.

Estas centralidades variaram bastante, mas podem ser citadas: a atual Praça XV de novembro (ex Largo do Paço e Largo do Rocio), no período colonial; Praça da República e Praça Tiradentes no Império; Rua do Ouvidor no final do período imperial e a faixa Avenida Central e Praça Floriano, no início do período republicano.

A imagem cosmopolita idealizada no governo Rodrigues Alves, conduzida por Pereira Passos e Paulo de Frontin produziu modernidade nesta última praça mencionada. Os aparatos do governo e da iniciativa privada transformaram a cidade na metáfora da vida moderna e o desejo de se destacar pela indumentária, pelo comportamento e posteriormente pelo ato de freqüentar o cinema marcaram um referencial físico e afetivo na Praça Floriano, a Terra dos Cinemas.

Evelyn Lima ressalta que a praça é um local de reunião, um “nó urbano na legibilidade da cidade” (p. 335) destacando o fato de que a memória coletiva se apega aos espaços e aos símbolos físicos garantindo uma certa continuidade no uso que as diversas camadas sociais projetam sobre o tecido urbano. Estes usos deterioram os valores do local com o passar do tempo e suas referencias vão perdendo o encanto e mesmo a intenção deliberada de transmitir alguma perenidade, como foi o caso da intervenção de Passos, não garante que os mesmos símbolos de convivência e troca sejam mantidos.

O próprio cinema seria combatido por novas forcas emergentes da indústria cultural nos anos 1940, quando a gênese de Serrador estava sendo ultrapassada pelos

night-clubs, como o Casablanca, Night and Day e o Montecarlo. Assim a Cinelândia

deixava de ser a Terra dos Cinemas, para ser apenas a “Cinelândia” – um local, de novos encontros e novas significações. O termo Cinelândia não se apresentava no fim dos anos 1950 como em referencia aos cinemas, mas retomava o sentido de uma praça que remodelada com vários prédios demolidos e reconstruídos prepara a cena urbana para significados que envolverão o local como síntese da política nacional nos anos 1980.

CONCLUSÃO

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