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Religião, política e cultura na origem da ocupação da Cinelândia.

AS TRANSFORMAÇÕES DO RIO DE JANEIRO E SUAS RELAÇÕES COM A CINELÂNDIA.

2.2. A “INVENCÃO” DA CINELÂNDIA CUMPRE O SEU PAPEL NA UTOPIA DA CIDADE-CAPITAL.

2.2.2. Religião, política e cultura na origem da ocupação da Cinelândia.

A arquiteta e urbanista Evelyn Lima destaca que assim como a Praça Tiradentes, a Praça Floriano não se caracterizou como um espaço de centralidade política municipal como em outras cidades do mundo. Não existiam ao redor construções que justificassem alguma valorização urbanística porque somente após a Proclamação da Republica é que se poderia delimitar a vocação política e cultural do local.

A Avenida Central concluída no Governo Rodrigues Alves havia deixado de lado uma extensa aérea ocupada pelo Convento da Ajuda e limitada pelo Teatro Municipal, Palácio Monroe e as calçadas da Biblioteca Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Esse espaço desde o tempo dos vice-reis era conhecido como Campo da Ajuda, e nele coexistiam na verdade dois largos: aquele em “frente à Ajuda” e o Largo da Mãe do Bispo, assim chamado por ser a residência da mãe do bispo D. José Joaquim Justiniano de Mascarenhas Castelo Branco.

Na origem do convento está a visitação à ermida de Nossa Senhora da Ajuda que acarretou o surgimento de um dos mais antigos caminhos da cidade, a Rua da Ajuda,

que por sua vez abrigou as construções da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda e em 1748, do Convento da Ajuda.72

Posteriormente em área cedida pelas freiras do Convento foi construída em estilo gótico, a Escola São José, em 1871, cujo mentor principal foi Ferreira Viana, presidente da Câmara e na qual se alojaria o Conselho Municipal a partir de 1895. Até este momento, a Rua da Ajuda teve importante função na vida cultural e no lazer do Rio de Janeiro pela proximidade com o Passeio Público, a área mais agradável da cidade naquele momento.

Pode ser citado como exemplo, que entre 1863 e 1890, depois de inaugurado como Eldorado e passado por vários proprietários, funcionou ao norte do Largo da Mãe do Bispo, o Fênix Dramática, um dos teatros mais freqüentados e que foi demolido por ocasião da abertura da Avenida Central.73

O Largo da Mãe do Bispo, recanto urbano até o fim do Império foi transformado em Praça São José em 1871 e depois de modificações no seu traçado passou a ser chamado de Praça Ferreira Viana pouco antes do inicio do período republicano. A atual denominação para Praça Floriano, onde se localiza a Cinelândia surgiu em 1910, quando foi erguido num dos canteiros, o monumento a Floriano Peixoto.

Brasil Gerson nos conta que a idéia de um monumento a Floriano originou-se no Clube Militar em 1904, exigindo-se do artista que se dispusesse a esculpi-lo total identificação com os ideais florianistas de repulsa ao Império. (2000:248). Tendo sido o concurso vencido pelo pintor Eduardo Sá, críticado por não ter contato com esculturas, o conjunto de mármore e bronze foi fundido em Paris e acabou revestido de um simbolismo que silenciou a polemica.

O Rio de Janeiro começava a contar com um estoque importante de imagens de escultura nos espaços públicos no início do século XX. Segundo Paulo Knauss, esta é uma prática iniciada no Brasil na década de 1860, com a inauguração da estátua eqüestre do imperador D. Pedro I, na atual Praça Tiradentes. (Knauss, 2000).

A estatuamania74 remonta à cidade de Paris no século XIX e marca a correspondência da cidade moderna com o liberalismo burguês. A mobilização social em torno da produção de objetos e sua relação com os símbolos que evoca no

72 Ibidem p.2

73 O jornal O País retrata a reinauguração do teatro reformado em 23/11/1888, dois anos antes de seu ultimo espetáculo de grande porte, uma peça traduzida por Artur Azevedo. O teatro quando demolido já não funcionava como tal, sendo local de extração de loterias federais.

74 Ver Agulhon, Maurice. La statuomanie et I’historie. In: Historie vagabonde. Paris: Gallimard, 1988,v. I.

imaginário urbano constituem ferramentas pela quais se formam os significados dos espaços da cidade.

O posicionamento fixo e central da estátua do Mal. Floriano Peixoto na antiga Praça Ferreira Viana organiza simbolicamente o espaço e a temporalidade característicos dos novos tempos republicanos. Pode-se dizer que a praça Floriano que surge a partir de 1910 elabora um novo sentido para o local repleto de apelos cívicos e morais com base nos feitos dos “grandes homens” e seus “relevantes serviços prestados” ao país, conforme citado por Knauss em referencia à obra Monumentos

Principais do Distrito Federal, de Antonia de Amarante La Tardé. Nessas

circunstancias é fácil entender o alvo a que se presta o monumento na futura

Cinelândia, centrado na educação política conservadora, na reprodução dos padrões

sociais estabelecidos e no reforço do poder instituído.

Retomando Evelyn Lima, o estudo que faz dos aspectos políticos e culturais do espaço que seria conhecido por Cinelândia no início do século XIX nos permite constatar a renovação da Praça Floriano em relação às construções geminadas, de pavimento único do tempo imperial. O espaço aparenta então uma nova vocação e “(...) denota o desejo de provocar no imaginário popular o sentimento de que a República, trazendo a ordem e o progresso, eliminou as feições coloniais da cidade”. (p. 185)75

A Rua da Ajuda encapsulada agora pela Avenida Central deixa de ser um caminho tortuoso entre os morros do Castelo e Santo Antonio, que desembocava na praia para se abrir de forma ordenada em amplo “espaço racionalista”. Das representações cenográficas documentadas por Augusto Malta destaca-se uma foto de 190676 que caracteriza a perspectiva da Avenida Central a partir de um observador postado na Avenida Beira-Mar. Pode-se contemplar a área do futuro “Pentágono das Artes”, do qual sobressaem a Praça Ferreira Viana, o Teatro Municipal já em construção, o Palácio Monroe inaugurado naquele ano e o Convento da Ajuda.

Em pouco mais de três anos, com a inauguração da Biblioteca Nacional, maior e mais importante biblioteca do país e da Escola de Belas-Artes, acrescentadas à instalação de edificações do poder legislativo e judiciário, o Convento da Ajuda passaria a ser visto cada vez mais como uma edificação destoante daquela plástica imbuída dos ideais republicanos que ajudava a montar o espaço eclético neorrenascentista. Tratava-

75 Ibidem p.2

76 Perspectiva da Avenida Central. Foto de Augusto Malta, 27/10/1906. Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro.

se de uma construção do tempo imperial, que já não podia ser aceita como símbolo de modernidade.

Em 1911 o Convento foi adquirido pela Cia. Light & Power e demolido no mesmo ano para que um hotel de luxo projetado por Carlos Sampaio pudesse ser erguido. Segundo Lima Barreto77 o terreno foi arrematado por 1.850 contos. Um outro trecho de propriedade da Brazil Railway deveria juntar-se ao da Light & Power para a construção de outro “arranha-céu”. Com a mudança das freiras do Convento da Ajuda para a Tijuca e posteriormente para o antigo prédio da paróquia de Nossa Senhora de Lourdes, em Vila Isabel78, os projetos dos edifícios não foram à frente e aquele espaço de 1.800 metros quadrados permaneceu ali até que a Cia. Cinematográfica Brasileira de propriedade de Francisco Serrador concluísse a aquisição do imóvel por 1.800 contos de réis. (Máximo, 1997:76).

É preciso ressaltar que esse intenso desejo de “modernização” da cidade e a rapidez na concretização das intervenções urbanísticas e arquitetônicas no inicio do período republicano contrapõe-se às transformações lentas e graduais que deslocaram os antigos centros da cidade: Largo do Paço (atual Praça XV) e o Campo de Santana.

Esta agilidade intervencionista do modelo republicano faz conviver na Praça Floriano, entre 1900 e 1930, duas matrizes arquitetônicas e urbanísticas, que embora conectadas por fortes apelos visuais e estéticos, expressam sentidos que se tornam tipologias diferentes no modo de ver e sentir a cidade.

Em primeiro lugar, as construções ecléticas da reforma Passos em torno da Praça Floriano que simbolizavam o poder político, também construíram um forte sistema emblemático da cultura pública do país, através do “Pentágono das Artes”.

Depois, no final da década de 1910, ainda com o trecho do Convento da Ajuda por ocupar, os prédios hoteleiros projetados, mas não concretizados para aquele espaço deram lugar aos “arranha-céus” que abrigavam ao final da década de 1920 a maior parte dos cinematógrafos e cine-teatros.

Evelyn Lima destaca as fachadas individualizadas em estilo neo-Luiz XV e Luiz XVI destes prédios que ao longo do trecho de numeração “par” equivalente ao antigo Convento da Ajuda foram erguidos pela Cia. Cinematográfica Brasileira. Observa-se o contraste com os prédios neorrenascentistas do lado “ímpar” da então Avenida Rio

77 BARRETO, Lima apud MÁXIMO, João. Cinelândia: breve história de um sonho. Rio de Janeiro: Salamandra, 1997. p. 49

Branco79, como a Biblioteca Nacional, a Academia Nacional de Belas Artes e o Edifício Lafont.

De um lado, a representação do compromisso com a ordem e o progresso para um país civilizado “europeu”. Os “pórticos, colunas gregas e escadarias suntuosas” (p. 190) ajudavam a classe dirigente a formalizar as bases conceituais da cidade-capital que se queria cosmopolita.

Do outro lado, o flanco mais mercadológico, menos político, construído a partir da década de 1920 como um sinal de importação de valores procedentes da matriz cultural americana. A arquitetura progressista dos prédios de mais de dez andares reverencia o capitalismo e o poder econômico parecia subjugar o poder político.

2.2.3. Os cinematógrafos da Avenida preparam o nascimento da

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