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O cinema americano como ferramenta da indústria cultural.

A “BROADWAY” BRASILEIRA E SEU SIGNIFICADO NO PROJETO DE FRANCISCO SERRADOR

3.1 A HEGEMONIA DO CINEMA AMERICANO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CINELÂNDIA SE CRUZAM NO PROJETO DE

3.1.4. O cinema americano como ferramenta da indústria cultural.

Entendemos que a sociabilidade urbana relacionada aos avanços técnicos desta época se destaca na análise da formação da Cinelândia. Entre as invenções do século XX que servem de pilares para a transformação do novo comércio de serviços que vinha se desenvolvendo durante todo o século XIX estão o disco e o cinema, cujas tecnologias de aperfeiçoamento mais arrojadas vão se desenvolver nos EUA e deslocarão o centro de entretenimento comercial da Europa para a América.

No caso do disco, por exemplo, a música dos negros nos EUA ganhava espaços próprios na fase pré-industrial da cultura de massas pela oferta de ingressos baratos para se ganhar no volume de vendas. Era um tipo de música que Roberto Moura insere

como “cultura industrializada” pronta para exportação e mesclada pela tradição folk inglesa com os elementos culturais vindos da miscigenação com irlandeses e italianos124.

Moura constata que a entrada no campo internacional da cultura dos diversos gêneros de origem negra introduzidos de forma duradoura pela indústria cultural é o fenômeno mais significativo na cultura do século XX. Ele assegura que este processo integrado precisa ser compreendido como uma totalidade, “repercutindo reciprocamente, se opondo, se influenciando subrepticiamente.”125

Quanto ao cinema os filmes americanos começam a se sofisticar em suas estruturas narrativas, apresentam vários planos conectados entre si e a filmagem assume uma relação direta com a montagem na ânsia de conquistar mercados consumidores. Surgem efeitos de animação, stop motion126 e filmagem quadro-a-quadro, cujo objetivo era encantar visual e esteticamente o consumidor permitindo a criação de estilos cômicos e dramáticos que se apresentaram como alternativas às películas narrativas ou de ação contínua.

No contexto da indústria cultural que se formava com o disco e o cinema e mais tarde com o rádio, os conceitos de “popular” e “popularizado” poderiam ser classificados como distintos, sem qualquer pretensão de teorizar a respeito. De fato, o grau de disseminação do bem cultural não dependia mais no início do século XX de sua classe de origem para ser aceito por outra.

Antes do advento do cinema falava-se de cultura popular em oposição à cultura erudita das classes aristocráticas. Vimos como Ginsburg introduz posteriormente a idéia de que a cultura popular traz embutidas as conexões mais ou menos heterodoxas que constroem um tecido interativo, portanto mais associado a um mosaico cultural. A indústria cinematográfica que se organizava em Hollywood está ancorada em um sistema que agrega diversas categorias sociais como alvo. Em determinado local pode atender especialmente as elites, em outros às camadas mais populares. Seu comprometimento principal está em expandir-se como comércio cultural voltado para públicos heterogêneos dispersos ou não nas grandes cidades. Este modelo não está preocupado com os códigos culturais que classificam os gostos em eruditos ou populares porque os transforma em mercadoria.

124 Ibidem, p. 132 125 Ibidem, p. 153

126 Ladislaw Starewicz desenvolve na Rússia a técnica de filmes com bonecos animados chamados de

Esta matriz de negócios ganharia um termo próprio, “indústria cultural” cunhado pelos filósofos e sociólogos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer utilizado no livro Dialética do esclarecimento de 1947. As primeiras empresas cinematográficas, especialmente as americanas, já operavam desde a década de 1910 com as ferramentas que seriam padronizadas posteriormente quando se consolidaria o conceito. De acordo com os autores a criação deste marco teórico serve para definir a conversão da cultura em mercadoria, tendo na sua vertente midiática, isto é, nas possibilidades exploradas pelos veículos de comunicação (jornal, radio e TV) os portadores de uma produção cultural guiada pelo consumo mercadológico.

Embora este debate possa ajudar a identificar as formas de estandardização do gosto público, a imposição de estereótipos ou até a qualidade dos produtos, é a ênfase de Adorno na questão comportamental que nos interessa aqui. O autor afirma que não se pode estudar o comportamento dos ouvintes [telespectadores] sem levar em conta que seja resultante de amplos projetos de comportamento social condicionados pela estrutura da sociedade. (Adorno, 1950).

Também por essa via, o indivíduo não é mais soberano como a indústria cultural parece supor, não o seu sujeito, mas seu objeto. Seguindo este raciocínio estaríamos na situação de conferir ao observador que entra em contato com o produto cultural o papel de recebedor de ordens, indicações, proibições ou restrições.

Theodor Adorno, pesquisador da segunda fase da Escola de Frankfurt127 desenvolve uma construção analítica que considera que estes fenômenos são atribuídos às forças sociais que os originam. A indústria cultural é um parâmetro teórico que Adorno utiliza para explicar como os empreendedores culturais determinam o consumo excluindo tudo que é novidade periférica, o risco inútil e impõe uma adesão acrítica aos valores emitidos. Num consumo como esse, o tipo de linguagem utilizada permite ao consumidor pensar que ela é sua, um sujeito sem ser, pois o consumidor funcionaria como receptáculo de necessidades institucionalizadas.

Apesar das críticas que se fazem ao estudo de Adorno centradas nas estruturas primárias da sociedade, o capitalismo e a industrialização, como determinantes das práticas programadas dos indivíduos, entendemos que a indústria cinematográfica

127 A Escola de Frankfurt (Institut fur Sozialforschung) propõe uma teoria social como um todo. Um dos objetivos principais da Escola era o de explicar como se dava a organização e a consciência dos

trabalhadores industriais, com aplicações na Comunicação Social, Psicologia e Antropologia. Além de Adorno e Horkheimer, destacam-se neste grupo de pesquisadores, Herbert Marcuse, Walter Benjamim, Jurgen Habermas, Thomas Mann, entre outros.

americana utiliza-se de vários preceitos que se encaixam no formato teórico pretendido aqui por Adorno.

De inicio, o que confere uma certa singularidade no estudo da formação da

Cinelândia é que a reforma urbana que conduziu a formação da Praça Floriano permitiu

a ocupação dos espaços abertos por Pereira Passos aos imigrantes recém chegados ao Brasil como Serrador. Interessados em expandir seus negócios no formato da cultura de

massas contribuíram por ampliar a esfera de influencia dos Estados Unidos, até então

circunscrita a uma elite esclarecida ou percebida em movimentos de libertação como os da Inconfidência Mineira no século XVIII. A interação cultural com a Europa não desaparece, como temos demonstrado, mas vai ser deslocada para uma relação triangular mais intrincada.

Também por esta via, a tendência americana para o formato exclusivamente cinematográfico das salas de exibição, ao contrário da experiência européia de adaptar teatros e cinemas em um ambiente único, configurava um tipo de espetáculo aberto aos noticiários, desenhos animados e longas-metragens, que insere um tipo de influencia semelhante àquela discutida por Adorno. A tendência à padronização e à diversificação direcionava o cinema para um público mais heterogêneo. Havia um processo de inserção social cuja proposta girava em torno da criação de novas cosmologias e práticas sociais urbanas.

Esta questão está também presente no estudo da cultura popular e com o advento do cinema e do rádio converge parte desta pesquisa para a identificação dos tipos de disseminação de mensagens de massa identificadas na conversão da cultura em mercadoria popularizada, vinda ou não das camadas populares. Moura estudando a progressiva presença da música negra nas cidades americanas identificou a antecipação desta indústria.

“Mais que o jazz, são as danças rítmicas, o turkey

trot, o bunny, o bug e o charleston, que rompem os limites

dos bairros negros, como aconteceria com o rock’n’roll e começam a ser distribuídas para platéias brancas (...) que transcende definitivamente os limites da música industrializada para negros, sendo distribuída internacionalmente (...)”128

Quem ou o que pode determinar se a cultura de massa é menos importante que a interação que apropriadamente pode surgir entre cultura de massa e cultura popular? Se tentássemos fazer uma categorização em 1900, a música africana nos EUA poderia ser identificada como manifestação da cultura popular afro-americana. Como a partir de 1916, segundo Moura, os negros nos EUA passaram a migrar para o Norte, formando bairros locais extremamente populosos e atraente público consumidor não seria incorreto identificar a música dos negros de cultura de massa, especialmente depois do surgimento dos race records.

É a partir dessa avaliação que procuramos elucidar como os cinemas que foram inaugurados a partir de 1925 na Cinelândia poderiam ser descritos como produtos culturais popularizados, ou seja, freqüentados por um vasto leque de categorias sociais. Entretanto, as salas de espetáculo direcionam-se para públicos-alvo específicos. Por exemplo, enquanto o Capitólio atraía predominantemente a classe média e a zona sul, o Palácio da Rua do Passeio configurava-se como referencia em teatro-cassino, o Pathé- Palácio e os cinemas da Rua Álvaro Alvim atraíam as camadas mais populares.

A popularização do cinema foi facilitada porque sua linha de produção não é tangível, isto é, bastavam poucas cópias para se alcançar audiências enormes e poucas dezenas para atingir coberturas nacionais, ao contrário da indústria de bens de consumo, por exemplo.

Isso sem dúvida permitiria um controle mais centralizado da operação de produção e distribuição, que estimulou não somente os primeiros estúdios de cinema de Hollywood a projetar um imaginário de costumes e valores burgueses, como também incentivaria os regimes totalitários a transmitir através do cinema as ideologias oficiais dos regimes políticos no decorrer dos anos 1930.

Quando Adorno e Horkheimer analisaram a produção e a função da cultura no capitalismo, o cinema já tinha atingido milhões de pessoas em sociedades totalitárias e os modelos comportamentais de consumo de massa da sociedade americana já estavam solidamente reproduzidos em larga escala na América Latina, então o maior mercado da cinematografia mundial, fora dos EUA.

Aqui no Brasil o ambiente cultural do cinema importado da Cinelândia foi inspirador de uma parte substancial do projeto político unificador do Estado Novo na década de 1930, correspondendo no plano internacional às mudanças de alguns regimes políticos que anunciavam o fim das liberdades democráticas.

3.1.5. Década de 1930: reflexos dos modelos de Hollywood e da Cinelândia

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