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A resignificação das cidades latinas através do consumo de cinema e cultura.

A “BROADWAY” BRASILEIRA E SEU SIGNIFICADO NO PROJETO DE FRANCISCO SERRADOR

3.1 A HEGEMONIA DO CINEMA AMERICANO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CINELÂNDIA SE CRUZAM NO PROJETO DE

3.3. O PAPEL SIMBÓLICO QUE A INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA DESEMPENHOU NA HERANÇA HISTÓRICO-CULTURAL DA

3.3.2. A resignificação das cidades latinas através do consumo de cinema e cultura.

A internacionalização da industria cinematográfica norte-americana é um fenômeno cultural reproduzido espacial e culturalmente. Elaborado a partir de uma simbologia comum atrelada ao “modo de vida americano”, tornou-se fator de significação para várias cidades latinas. Canclini pesquisou como as entidades se organizam tanto a partir dos símbolos nacionais como em torno daqueles produzidos pela indústria cultural e afirma que a escala espacial em que ocorre a reprodução dos valores do cinema americano parece apontar para um alcance mundial. Quando atribui sua abrangência à maior parte da América Latina o faz como se este fenômeno nesta parte do mundo fosse peculiar, mas ressalta que está integrado a um processo cujas tendências hegemônicas da urbanização e da industrialização da cultura são observadas globalmente.

Deste modo, seria importante distinguir nesta reprodução, os fatores culturais recorrentes na América Latina que sejam comuns em vários países e regiões e aqueles mais específicos que depois esclareçam em um recorte geográfico mais localizado os sentidos da construção do significado da Cinelândia no Brasil.

Estabelecido como elemento cultural reproduzido no continente cabe observar como o cinema americano ocupou os espaços internos nas cidades destes países, assim como perceber um conjunto singular de motivações políticas e sociais que permitiram sua implantação e expansão.

Para uma compreensão mais ampla deste estudo, é necessário destacar que na última década do século XX, as ciências sociais – antropologia social, sociologia, urbanismo – ao se ocuparem da vida contemporânea e dos processos urbanos acabaram

priorizando suas pesquisas no campo da produção cultural imaterial e no estudo dos atores que conduzem esta “fábrica de significados”.

Correa (2003) acredita que este processo dá-se pela apropriação e uso das mensagens trazidas pela indústria cultural, pela atividade turística e pelo fluxo imigratório. Estes três fenômenos se combinaram na sociedade americana em torno das grandes cidades que recebiam enormes contingentes de imigrantes e posteriormente de turistas.

Historicamente, as cidades são agrupamentos de poder que controlam fluxos econômicos, sociais, culturais e políticos, constituindo centros de acumulação de riqueza e informação. Nos EUA foi se construindo uma tendência de converter as cidades maiores em metrópoles de sistemas socioeconômicos organizadas em uma estrutura espacial capaz de articular a economia nacional e internacional. Assim foram construídas ou ocupadas as cidades de Nova Iorque, Chicago ou Filadélfia, posteriormente Los Angeles e Miami, cidades mais recentes. Esses aglomerados urbanos se transformam gradualmente nas primeiras décadas do século XX em centros de espaços econômicos e culturais transcontinentais mesmo sem possuir bases territoriais importantes como ocorria com as cidades-estado da Idade Média.

Essas metrópoles estão condicionadas por sua própria dimensão econômica e pelas exigências dos processos de acumulação de capital à presença de um número apreciável de empresas que se tornam internacionalizadas e que se organizam como agentes de produção e financiamento, além de se constituírem como importantes mercados consumidores.

Na América Latina é possível reconhecer cidades que se tornariam grandes aglomerações metropolitanas de significação internacional até a metade do século XX. Cidades como Buenos Aires, Rio de Janeiro, Cidade do México e São Paulo ganham dimensões nacionais e disputam um lugar de destaque na representação simbólica de seus respectivos países. Outras cidades menores como Lima, Bogotá, Santiago e Caracas compartilham muitas das características das metrópoles da região, mas o fato de pertencerem a economias nacionais de menor dimensão limita suas possibilidades de crescimento à medida que se desenvolvem as suas capacidades de inserção nos circuitos internacionais de produção e consumo.

Centros regionais de economias pequenas como Montevidéu, Havana, Santo Domingo, Assunção, Cidade da Guatemala e San José se formam em torno de paises limitados geograficamente. Outros núcleos regionais de economias subnacionais como

Guadalajara, Monterrey, Belo Horizonte, Salvador, Medellín, Santa Cruz de la Sierra e Guayaquil completam o quadro urbano das metrópoles latinas que começam a crescer explosivamente em diferentes momentos até 1950 e que concentram a maior parte do poder econômico, político e cultural de seus respectivos paises.

Nas décadas seguintes à implantação do cinema ocorreu na América Latina uma intensa transformação da estrutura e da localização de seus assentamentos humanos. A população urbana saltou de pouco mais de 20% no início do século para 70% na década de 1980. Os assentamentos periféricos passam a ocupar partes importantes destas cidades e crescem mais velozmente que os segmentos das classes médias. Os setores hegemônicos dos paises industrializados que operam com a indústria cultural, principalmente o cinema, vão direcionando para estes públicos os seus produtos.

A sociedade latinoamericana passa então por um processo de internacionalização crescente. Neste fenômeno as referencias culturais de natureza tipicamente burguesa que se consolidam na América do Norte nos anos 1920-30 mesclam-se aos valores tradicionais de cada matriz social, gerando uma “cultura híbrida”155. A marca característica deste novo padrão cultural foi a valorização do popular, apresentado agora em um plano de consumo no qual se transforma em mercadoria, porém mantendo os códigos de comportamento regulados na exclusão social.

Nestor Canclini afirma que a América Latina foi “inventada” pela Europa em um contínuo processo colonizador que se iniciou com a Espanha e Portugal, mas que logo foi reelaborado pela França e Inglaterra. Essa relação de dependência foi acentuada com o deslocamento do eixo hegemônico mundial para os EUA, no início do século XX. A mudança de subordinação foi acompanhada de profundas alterações nos mercados industriais e financeiros, além de influir nos movimentos populacionais e no consumo de tecnologia e cultura, onde diversos atores funcionaram.

Como centros transnacionais em que foram se transformando as cidades americanas, suas funções também foram se alterando e criando deslocamentos de sentido interessantes. Um deles diz respeito à própria concepção de cidade tradicional que nos velhos moldes europeus já não podia ser mais definida a partir dos anos 1930.

Essa alteração revelada desde o início do século XX, isto é, a “perda da importância da cidade em sua concepção européia, como núcleo de vida cívica e

comercial, acadêmica e artística” (p.15) para as “metrópoles” americanas, que sequer são cidades como Stanford, Duke, Disneyworld, Broadway ou Hollywood, coloca a discussão no seio daquilo que esse autor define como “reestruturação transnacional dos mercados de bens materiais e de comunicação”. (p. 16).

Canclini ressalta, entretanto que a desintegração das megacidades latinas não é fruto de imposições imperialistas nem cópia da urbanidade americana, mas fruto de desigualdades internas no processo de absorção da experiência transnacional que ao longo das primeiras décadas do século XX fizeram surgir urbes degradadas, informais, contraídas no mercado de trabalho e expansivas no mercado de consumo, com insuficientes políticas de habitação e deterioração da qualidade de vida, encontrada em metrópoles como Cidade do México, São Paulo ou Bogotá.

É notório reconhecer o destaque que Canclini emprega quando afirma que a industrialização dos meios de comunicação inspirada na experiência americana continua se desenvolvendo na América Latina e que nem a comunidade européia desde o início do século XX conseguiu “proteger a esfera pública midiática das coações do mercado internacional”. (pg. 19).

Um dado que reforça o entendimento do enunciado acima é que a aspiração por bens industriais e culturais dos países periféricos até algumas décadas atrás se espelhava nos bens dos países do primeiro mundo. Conseqüentemente o simbolismo de valorizar o repertório “nacional” era sustentado por essa racionalidade econômica, isto é, pela noção de que não podendo possuir o que não se tinha, voltava-se ao que “se tinha” tornando o bem acessível por ser “nosso”.

Isso explica em parte o movimento de oposição que se formou paralelamente aos novos modos e comportamentos urbanos americanos reproduzidos no Rio de Janeiro no início do século XX. Já foi visto aqui como crescia o movimento por um cinema nacional em meio à experiência de consolidação dos exibidores oligopolizados como Serrador, que cresciam na base da sustentação da influencia americana no mercado carioca.

Vimos também o expressivo combate de parte da imprensa, especialmente das revistas satírico-humorísticas às novidades “made in USA” que atestavam o modo desta parcela da intelectualidade carioca olhar a modernidade.

Achamos que esta reprodução foi se relativizando, para vincular um significado que sem deixar de ter uma raiz americana, se estabelecia num formato “brasileiro”,

resignificada num tipo especial de mercadoria cultural mesclada com o novo sentido político da paisagem da cidade naquele Rio de Janeiro dos anos 1920-1930.

As mercadorias culturais formadas e disseminadas na urbe passam a servir para pensar, carregadas de significados, rituais e celebrações que regulam a vida social de determinado grupo.

Este mercado cultural exerce função de distinção e comunicação, altera o conceito de que apenas é útil para a expansão do mercado e a reprodução da força de trabalho. Desta forma, o consumo – especialmente o de natureza cultural - não é algo que se realiza individualmente, mas de modo social e coletivo. Por isso, as grandes cidades elaboram sua produção simbólica criando e recriando novas identidades inseridas no processo de acumulação de capital.

É preciso ressaltar, entretanto que a maior parte dos países da Europa também se tornou uma apropriação cultural americana. Estaríamos assim, diante de um fenômeno cultural reproduzido na América Latina, mas com relativa implicação global. Não vamos nos ocupar neste trabalho do fenômeno de apropriação ocorrido no continente europeu. Passemos a discutir um pouco mais os detalhes relativos a influencia americana que através do cinema culminaram em uma nova roupagem simbólica para a Praça Floriano atrelada aos valores americanos.

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