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A circulação do conhecimento técnico: uma perspectiva para a abordagem dos engenheiros em trânsito pela província de Minas Gerais

Atenta-se, segundo Gavroglu (2008), que a abordagem da transmissão/difusão do conhecimento técnico apresenta limites (GAVROGLU et al, 2008, p. 154).55 Para Gavroglu, os estudos que utilizam os conceitos de transmissão e difusão enfatizam as ideias e as práticas científicas se movimentando de um lugar para outro como se fossem commodities.56 Essa perspectiva não abre espaço para análise do processo de negociação e de apropriação das ideias e das práticas científicas. Decorrente de tal perspectiva emerge o conceito de centro e periferia na ciência. Isto é, as ideias e práticas se difundem do centro transmissor de uma comunidade ativa para a periferia de recebedores passivos (GAVROGLU et al, 2008, p. 167):57

Studies on science in the periphery have often employed the notions of “transfer”, “spread”, “influence”, “transmission”, “introduction”, “resistance” and “adoption”. These concepts imply a particular model for the circulation of knowledge: after being formulated in the centres, those who use these concepts consider scientific knowledge as a kind of commodity,

55

Utiliza-se o termo técnica para referenciar um “conjunto de regras práticas para fazer coisas determinadas, envolvendo a habilidade do executor e transmitidas, verbalmente, pelo exemplo, no uso das mãos, dos instrumentos e ferramentas e das máquinas. Alarga-se frequentemente o conceito para nele incluir o conjunto dos processos de uma ciência, arte ou ofício, para obtenção de um resultado determinado com o melhor rendimento possível” (GAMA, 1986, p. 30). Cf. GAMA, Ruy. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1986.

56 “The diffusion of technology as an object of historical study originated partly in the years after World War II as a critique of the West’s self-confidence embodied in developed countries’ solutions to poverty. Such solutions, usually defined in terms of resolving technical “backwardness”, promulgated a simplistic and imperialistic notion of transfer that suggested quick action, linearity in time and space, and unilateral political decisions” Cf. HILAIRE-PÉREZ, Liliane; VERNA, Catherine. “Dissemination of technical knowledge in the Middle Ages and the early Modern Era: new approaches and methodological issues”. Tecnhnology and Culture. v.47 , nº3, p. 536, 2006.

57 A noção de centro/periferia foi amplamente utilizada e desenvolvida por economistas nas décadas de 1950 e 1960. A palavra centro foi utilizada tanto no sentido literal (geográfico) quanto metafórico (político ou econômico). O termo centro/periferia demonstra uma relação de dependência econômica e política. Desenvolve- se uma relação dominação-subordinação entre as estruturas capitalistas de países de desenvolvimento desigual, implicando mecanismos de geração, transmissão e absorção de excedentes o que favorece os países de desenvolvimento capitalista mais avançado. No âmbito da dependência tecnológica, a periferia em processo de industrialização torna-se dependente do capital estrangeiro e da introdução de tecnologia. A demanda de tecnologia é dirigida por forças externas, o que implica em extrema fraqueza dos sistemas nacionais de pesquisa e desenvolvimento. Portanto, a periferia carece de poder de barganha para escolher e comprar tecnologia nos mercados nacionais, onde prevalecem diversas barreiras (patente e licenças) para o livre acesso ao “know-how” tecnológico. Cf. RATTNER, Henrique. Inovação tecnológica e progresso técnico nas teorias de desenvolvimento econômico. In: RATTNER, H. Tecnologia e sociedade: uma proposta para os países subdesenvolvidos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.

which can be distributed by means of various intellectual networks. As a result, scientific centres and peripheries are defined on the basis of the separation of production from distribution and use of scientific knowledge (GAVROGLU et al, 2008, p. 159).

Gavroglu postula que deve ser superada uma abordagem que considere a transmissão/difusão de ideias e práticas como algo estático e determinado, que se realiza em um centro e se difunde para a periferia.

Na década de 1960, George Basalla, ao tentar compreender o processo de difusão da ciência, elaborou um modelo interpretativo acerca do processo de transmissão da ciência moderna no ocidente. Partindo da premissa de que um pequeno círculo de países ocidentais (Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Áustria) foi responsável pelo desenvolvimento da ciência moderna, afirma que a Europa foi o centro de difusão da ciência. Para isso, desenvolve o modelo interpretativo da difusão da ciência, que se caracteriza por três fases: 1) sociedades não científicas; 2) período da ciência colonial; 3) completo processo de transplantação com o esforço para consolidar uma tradição científica independente.

A primeira fase se caracteriza por um processo de transmissão, no qual europeus viajam para coletar e estudar as principais características da flora e da fauna. Salienta-se, assim, que a ciência pode estar espalhada no mundo, mas apenas as nações com cultura moderna e científica podem avaliá-la, utilizá-la e interpretá-la:

Thus European science, its practioners forced to come to terms with exotic material at home and abroad, underwent a significant transformation while it was in the process of being diffused to a wider world (BASALLA, 1974, p. 5).

Em seguida, a segunda fase é marcada pela ciência colonial. Esta, por sua vez, ocorre em uma relação de dependência em relação à ciência europeia, ou seja, depende de uma tradição científica externa. Contudo, Basalla pondera que a ciência colonial se desenvolve tanto em localidades que pertenciam como colônias de países europeus quanto em países independentes, por exemplo, a Rússia e os Estados Unidos. Para Basalla, o cientista colonial necessita de apoio externo, visto que ainda nesses espaços coloniais não há instituições científicas. Resulta daí a ausência de uma tradição de ciência e a necessidade de interlocuções científicas externas. Assim, o cientista colonial recorre aos institutos educacionais situados na Europa para realizar a sua formação e os países em estágio de ciência colonial importam cientistas estrangeiros (Ibidem, 1974, p. 5/7).

Na terceira e última fase estabelece-se uma tradição científica independente através da criação de instituições científicas. Portanto, o cientista recebe sua formação em seu país, consegue exercer a função de cientista, encontra estímulos intelectuais dentro da sua

comunidade científica em expansão, torna-se capaz de comunicar as ideias científicas aos seus pares no país e no exterior e de desenvolver novos campos para a atividade científica (Ibidem, 1974, p. 8).

O estudo de Basalla ressalta uma relação desigual e de subordinação no universo da ciência, reafirmando o caráter de dependência do desenvolvimento cientifico nos países coloniais e dos seus respectivos cientistas. Porém, George Basalla, ao enfatizar o caráter internacional da investigação científica através dos processos de transmissão/difusão, não postula nenhuma consideração acerca do fato de que a ciência se desenvolve em um ambiente social específico. Tal perspectiva é reiterada em outra obra de George Basalla intitulada “A

Evolução da Tecnologia”:

Nenhuma sociedade é tão isolada ou tão auto-suficiente que não tenha recebido, pelo menos em alguns aspectos, influências de uma fonte exterior. Dado que os seres humanos comunicam e trocam informações acerca de técnicas e artefactos novos, os contactos gerais entre culturas são o mais antigo meio de transferência de conhecimento tecnológico de uma cultura para outra. Estes contactos podem ser resultado de exploração, viagem, comércio, guerra ou migração Todas estas trocas de conhecimento garantem que as partes envolvidas estarão expostas a novas oportunidades tecnológicas. O que constitui prática comum para uma cultura pode ser uma inovação importante para outra. (...) O imperialismo e o colonialismo assumem um papel de destaque entre os tipos específicos de contacto social que conduziram à difusão da tecnologia. Sob estas formas de domínio, a cultura receptora tinha poucas hipóteses de não aceitar a tecnologia imposta pelos senhores imperiais. Este facto não foi sempre negativo. A Índia, sob o domínio britânico, fornece um dos melhores exemplos de como um poder imperial pode levar as mais recentes invenções para a sua colônia, se tiver capacidade e vontade para o fazer (BASALLA, 2001, p. 81/83).

Torna-se fundamental uma mudança de abordagem no estudo da ciência, na qual se deve mudar o ponto de vista da transmissão para a apropriação (GAVROGLU et al, 2008, p. 154/155). Dentro dessa perspectiva, a apropriação evidencia um processo de produção de conhecimento. Tal processo ocorre através da circulação do conhecimento, que se entrelaça a circulação de pessoas e as especificidades locais:

Circulation of knowledge has been taken as a kind of mediating processes, from the local to the global, or from a multiple, varied and contingent knowledge to universal knowledge. The circulation of ideas and practices, depending first and foremost on people, is a fundamental component in the consolidation of scientific and technological cultures (GAVROGLU et al, 2008, p. 161).

Para Kuhn, o historiador deve tratar a ciência e a tecnologia como empreendimentos radicalmente distintos e, dessa forma, analisar as interações entre a ciência e a tecnologia

(KUHN, 1977, p. 183/185). Segundo Thomas Kuhn, a ciência quando interfere no desenvolvimento sócio-econômico realiza tal contribuição através da tecnologia:58

A emergência da ciência como motor principal no desenvolvimento sócio-econômico não foi um fenômeno gradual mas súbito, prefigurada significativamente pela primeira vez na indústria da tinturaria químico-orgânica, nos anos 1870, continuada na indústria de energia eléctrica desde de 1890 e rapidamente acelerada a partir de 1920 (KUHN, 1977 ,p. 185)

Contudo, no século XIX a tecnologia “floresceu sem contribuições significativas das

ciências” (Ibidem, 1977, p. 184). Nessa medida, os processos de pontes e estradas são

significativos à medida que relevam diversas operações e situações não planejadas ou projetadas pelos engenheiros, que foram realizadas e justificadas pela prática e empirismo dos arrematantes e administradores das obras. Evidencia-se, portanto, a singularidade de cada projeto de ponte e estrada, bem como as correlações de diversos interesses. Esses interesses envolvem os recursos para financiar, o retorno do financiamento, os aspectos técnicos, a disponibilidade de matéria-prima, etc.

De fato, o conhecimento técnico apresenta uma articulação entre a expressão direta da experiência individual, que emerge através da interação entre os indivíduos e o universo da técnica. No âmbito da construção de pontes e estradas, a interação entre os campos disciplinares da engenharia e da técnica emergiu no momento em que se defrontava com as propriedades dos materiais disponíveis no local e as condições de trabalho (VARGAS, 1994, p. 247). Em face à interação engenharia e tecnologia, segundo Milton Vargas, o ensino da engenharia manifestava limites quando alcançava o universo da prática, mormente no que tange ao relativo desconhecimento dos materiais que deveriam ser empregados nas obras, propiciando margem para a atuação prática dos mestres de obra:

O ensino da engenharia era tão somente baseado em tratados, a maioria dos quais franceses, onde predominam os cálculos matemáticos e os conhecimentos tecnológicos dos materiais e dos processos construtivos era limitado. Além do mais os materiais de construção eram importados e suas propriedades admitidos “a priori” como adequados ao seu emprego nas obras, sem maiores questionamentos. O resultado disso foi que as obras de engenharia civil realizadas no Brasil seriam bem projetadas e calculadas inclusive bem implantadas no terreno; pois a topografia era das disciplinas mais bem estudadas. Mas, as propriedades dos materiais empregados eram muito mal conhecidas e, portanto, simplesmente ignoradas. Por outro lado, os processos e operações de construção eram deixados à prática empírica dos mestres de obra (VARGAS, 1994, p. 248).

Segundo Henry Petroski, o século XIX permitiu um avanço do conhecimento sobre o funcionamento de vigas e estruturas. Mas isso não implicou que a projeção de determinados

design de pontes se tornassem amplamente aceitos entre os engenheiros:

58

Segundo David Edgerton, embora o termo tecnologia seja próximo a idéia de progresso não se deve confundir tecnologia com inovação. Ademais, tecnologia é um termo fluído com constante mudança de significado e amplo uso (EDGERTON, 2010, p. 683).

(...) por volta de 1840, as pontes pênsis não foram consideradas opções viáveis para as ferrovias, na Inglaterra. A desconfiança sobre essas pontes era atribuída à falta de rigidez e ao temor de que poderia desabar sob o impacto de ventos fortes (PETROSKI, 2008, p.137).

Se por um lado, os processos de pontes e estradas permitem uma análise da relação entre os campos disciplinares da engenharia e o universo da prática e, portanto, a interação recíproca de ambas, por outro, os processos são expressivos para uma análise do papel dos engenheiros como mediadores do uso do conhecimento das disciplinas de engenharia e o universo da tecnologia construtiva de pontes e estradas no século XIX.

É, nessa medida, que torna-se fundamental compreender a importância da circulação dos engenheiros, levando em consideração as seguintes questões: i) circular pelo território da província de Minas Gerais representa um processo fundamental da ciência: a tentativa de aplicação de um método e/ou uma técnica que tem validade universal em um local com característica especifica; ii) os engenheiros em trânsito possibilitam identificar a transmissão e difusão do conhecimento técnico, mas também a apropriação do mesmo; iii) a circulação de um indivíduo é fundamental para o processo de apropriação, que envolve negociações entre os diversos atores (arrematantes, administradores de obra, práticas dos artífices) e os engenheiros. Privilegia-se a seguinte abordagem:

(...) enfoque que espacializa os saberes, (...) que constrói uma espécie de cartografia, de geografia histórica das práticas de conhecimentos e técnicas, e que aproxima a comunição entre esses mundos heterogêneos via a padronização das práticas. Ela parte da multiplicidade e da diversidade irredutível dos locais de produção, admite a heterogeneidade dos regimes de legitimação, sua variabilidade segundo espaços físicos e sociais, mas mostra os meios de normatização postos em prática pelos atores para trocar e progredir (PESTRE, 1996, p. 46).

A atividade de engenharia no século XIX incluiu tanto os condicionamentos sociais e econômicos quanto os aspectos individuais. Os engenheiros em circulação pela província de Minas Gerais constituíram-se em importantes atores do processo ativo de aplicação dos campos disciplinares da engenharia às práticas construtivas de pontes e estradas. Evidencia- se, dessa forma, a tentativa de adoção de conhecimentos técnicos no âmbito local, revelando conflitos e a diversidade da província de Minas Gerais.

1.7. Limites do modelo explicativo agrário-exportador para a História dos Transportes:

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