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Como construir e conservar as estradas? A lei da corvéia em Minas Gerais: barreiras, estradas e os manuais de engenharia

A preocupação em erguer estradas e conservá-las estava presente na obra de Joze Diogo Mascarenhas Neto. A obra, publicada, em 1790, se dedicou ao estudo das estradas em Portugal e se dividia em três capítulos: 1) “Direcção, construcção e methodo de trabalhar

nas estradas, e do seu governo economico”; 2) “Da conservação das estradas artificiaes, e das commodidades, que as devem acompanhar”; 3) “Dos meios, porque se podem fazer as estradas, e da sua administração e governo”.

No primeiro capítulo, estabelecia a divisão das estradas em três classes. Na primeira classe estavam às estradas chamadas reais, que se encaminham da Corte para as Capitais das províncias. Essas vias teriam em suas primeiras dez léguas a largura de trinta pés e em seu restante a largura de vinte e quatro pés. A segunda classe seria as estradas denominadas de comércio, que se dirigiam de umas cidades para outras e para as Vilas com mais de quinhentos fogos. A largura da estrada de comércio era de vinte pés. Na terceira classe estavam as estradas que ligavam cidades e vilas com povoações de trezentos fogos e deveriam ter dezesseis pés de largura.

Em todas as estradas descritas havia a preocupação com a largura das mesmas. A constante menção à largura das estradas se justificava tanto pela intensidade do fluxo das vias quanto pela esperteza de particulares, que incorporavam parte da estrada às suas propriedades:

“A falta de regulamento sobre a largura das estradas concorre muito para a sua ruina, porque os proprietarios confinantes não perdem occasião de unir ao seu terreno alguma parte das mesmas estradas; e isso tambem succede em algumas Provincias de França (...)”

(MASCARENHAS NETO, 1790, p. 5). Além disso, a superfície da estrada deveria ser convexa para que as águas escorressem em direção aos fossos. Para a conservação das estradas, os carros que transitassem deveriam possuir no mínimo seis polegadas em suas rodas:

Os carros, de que usão os Póvos, principalmente da nossa Extremadura, e Provincias do Norte, são contrários á conservação das estradas, á facilidade do transporte, e á Agricultura, elles vão continuamente rompendo, e escavando as mesmas estradas, não só com os pregos, e ferragem aguda das suas rodas, mas tambem pelo augmento da resistência, que se deduz do muito, que se enterra a dita ferragem, do ângulo, que se forma entre a potencia, e o fulcro, por serem as rodas muito baixas, e ultimamente de se mover o eixo, e não as rodas. (...) Nestes termos, e em beneficio da conservação das estradas, e bem da Agricultura, me parece, que todos os carros, que andassem nas três classes de estradas (...); deverião ter não menos de seis polegadas no trilho da roda e ferragem, pois que desta forma concorrião para se calcar a

estrada, e fazer solido o seu corpo, e além disto se evitava a maior resistência, que se deduz do muito, que se enterra a roda, por causa do seitio agudo da sua ferragem (MASCARENHAS

NETO, 1790, p.53 e 56).

Os desafios da conservação das estradas foram solucionados através da relação entre a construção de barreiras tributárias e o melhoramento das vias públicas. A prática alcançou ampla difusão, conforme indica Mascarenhas Neto. A Inglaterra foi pioneira na prática de tributação da circulação. Foram erguidas barreiras fiscais com a finalidade de adquirir moeda para a conservação. Para Mascarenhas, o mecanismo tributário deveria levar em conta a especificidade da circulação de bens e pessoas em Portugal:

A contribuição de Barreira he evidentemente o melhor meio para a construção de estradas, e como tal se tem estabelecido legitimamente em Inglaterra (...). Neste Reino somente se podem estabelecer as Barreiras nas estradas, que vem das principaes terras da Provincia do Minho para a Corte, por conterem grande affluencia de transporte, e viagem, deduzida da muita população da mesma Provincia, e nestas mesmas estradas se vão incorporar todas as mais importantes das Provincias do Norte, e da Estremadura, que se encaminhão para Lisboa. Em todas essas estradas se pode adoptar a contribuição de Barreira, de forma que por ella se adquira o fundo, que se empregar na sua construcção (...). Com melhor vontade, e mais vantagem pagaria o viajante em Portugal na Barreira de huma estrada commoda, e segura, ou em huma ponte, do que paga nas barcas, onde experimenta a demora, e muitas vezes o risco

(MASCARENHAS NETO, 1790, p.68-69).

Tanto nos relatórios provinciais e legislações mineiras quanto na obra de Mascarenhas Neto a construção de barreiras em lugares estratégicos adquire status de provimento monetário ao Estado para a conservação e construção de obras viárias. Em Minas Gerais, a tributação nas barreiras instaladas nas estradas permitiria a arrecadação de fundos e o investimento deste em melhoramentos viários. Segundo Restitutti, o aparato fiscal da província, montado na década de 1830, realça a pujança dos liberais na Regência e a diminuição do centralismo do Império (RESTITUTTI, 2006, p. 36):

Nestas estradas e pontes serão estabellecidas barreiras nos lugares mais apropriados, nas quaes paguem taxas itinerárias todos, os que se servirem das mesmas estradas e pontes. (...) Os productos destas taxas nunca serão desviados, quaesquer que sejão as causas, para outros empregos, que não sejão a solução das despesas feitas com as estradas, e com a sua conservação e reparo, ou com a construcção de novas estradas e canaes (Livro da Lei

Mineira, 1835, Lei n. 18, art. 28° e 31°).

Outra obra, editada, em 1843, na cidade de Lisboa, “Odologia dos engenheiros

constructores ou guia para a construcção e conservação das estradas em Portugal e no Brasil”, de autoria de Barão Von Eschwege, considerava “(...) as estradas o nervo principal do corpo político” (ESCHWEGE, 1843, p. II).65

Na década de 1840, Portugal carecia de uma

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Barão Von Eschwege permaneceu no Brasil durante onze anos. Entre 1810 e 1821 transitou por Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Goiás. Em Minas Gerais, envolveu-se em empreendimentos relacionados à mineração e a siderurgia como, a instalação da fábrica Patriótica no Distrito de Congonhas do Campo, a exploração de uma mina de chumbo no Sertão de Abaeté e da mina de Passagem, localizada entre Ouro Preto e Mariana.

administração de pontes e calçadas e demonstrava um atraso relativo em face aos demais Estados europeus como, a França e a Inglaterra:

Portugal ainda não teve uma Administração de Pontes e Calçadas, como chamão em França, dotada dos meios necessários, e composta de Engenheiros instruídos na theoria e na pratica destes trabalhos, e por este motivo também não tem estradas. Quando se quer mandar fazer alguma estrada, o costume he encarregar a sua construcção a algum Engenheiro, que faz o que pode ou sabe: concluída a tarefa, não se trata de conservar o que está feito, e em breve se arruína a estrada, perdendo-se a despesa que nella se fez (ESCHWEGE, 1843, p. IX).

A construção de estradas e as características construtivas estariam vinculadas a intensidade de uso das vias de comunicação. Em consonância ao pensamento de Mascarenhas Neto, o Barão Von Eschwege estabelece quatro tipologias viárias.

Essa qualificação se dividia da seguinte forma: 1) as estradas principais ou de primeira classe com 24 palmos de largura; 2) as estradas de comunicação interior, denominadas também de segunda classe, tendo no máximo 18 palmos de largura; 3) estradas vicinais ou de terceira classe, pertencentes às câmaras municipais; 4) caminhos de campo (ESCHWEGE, 1843, p. 11-15). Portanto, uma hierarquia de estradas a partir da intensidade dos fluxos de mercadorias e pessoas:

Estradas principaes ou da primeira classe: taes são aquellas que se unem ás estradas principaes dos Estados visinhos, que costumão servir para passagem de tropas, e para o commercio exterior. A estas pertencem as estradas de correios e de diligencias. Semelhantes estradas devem ser o mais solidas e commodas que for possivel, e sempre conservadas em bom estado.

Estradas de communicação interior, ou da segunda classe: estas seguem a sua direcção d´uma cidade ou d´uma Villa para outra: devem ser construídas com a mesma solidez; mas não precisão ser tão largas.

Estradas vicinaes, ou de terceira classe, as quaes servem de communicação entre as differentes povoações e cuja conservação deve pertencer ás Câmaras Municipaes; mas sempre debaixo da inspecção d’um constructor d’ estradas.

Caminhos de campo, que servem só aos lavradores e communicão com as estradas para mais fácil transporte dos productos da agricultura (ESCHWEGE, 1843, p. 11).

Os termos 1°, 2° e 3° classe de estradas também estão presentes no plano viário da província de Minas Gerais de 1864, elaborado pelo engenheiro Henrique Gerber, como se observa na seguinte passagem:66

66 A província intentava regular o sistema viário através de uma rede que articulasse os centros produtores, os rios navegáveis e os grandes troncos que seguiam para o litoral. Ao engenheiro Henrique Gerber coube a tarefa de traçar sobre a carta geográfica da província as estradas já existentes e as que se deveriam ser abertas. O plano de Gerber previa os seguintes troncos obrigatórios: a Estrada de Ferro Dom Pedro II, a Estrada União e Indústria e os rios navegáveis. O próprio engenheiro ressaltava que o estudo era preliminar e contemplava amplos aspectos, que exigiam estudos para definição exata do traçado definitivo das estradas. O tempo para viabilizar o plano em perfeição foi afetado pelo retorno à Europa do Engenheiro Gerber: “Peço perdão a V.Exc para as lacunas que ha no meo trabalho, e que só com mais tempo, em extenso { } estado poderei supprir: no entanto, previno a V.Exc, que os traços desenhados na Carta não indicão senão a direção geral das estradas, que em

Na Carta achão-se marcados – a navegação de rios com um traço azul, as estradas de ferro com um dito preto, a estrada União e Indústria com um traço encarnado duplo, as outras estradas de 1° classe com um traço dito simples as estradas de 2° classe com um dito dito ponteado. Deixei de projectar muitas de 2° e as de 3° classe, por ser impossível desde já prever a sua mais conveniente direção (Appensos n° 5, Relatório de Presidente de Província,

1864, p. 1).

Segundo Eschwege, para a durabilidade e conservação de uma estrada era imprescindível que a mesma fosse edificada com materiais de primeira qualidade. Embora significasse maiores gastos orçamentários obtinha-se vantagem pela economia resultante da duração e comodidade oferecida à circulação comercial:

Quando não seja possível construir todo o leito d’uma estrada com pedra dura e resistente, ao menos para a última cobertura de cascalho deve-se procurar a mais dura que houver, ainda que seja necessário conduzi-la de maior distância e com mais despesa. O constructor deve ter sempre em vista, que uma estrada de pedra dura e de primeira qualidade se conserva em bom estado o triplo do tempo (...). (ESCHWEGE, 1843, p. 10).

Em face aos critérios de construção (durabilidade e qualidade dos materiais utilizados) e ao uso das vias de comunicação, as estradas portuguesas necessitariam de uma administração nos moldes do sistema implantado na França e nos Estados da Alemanha a fim de construir melhores estradas com menor despesa (ESCHWEGE, 1843).

A Administração Geral das Estradas deveria contar com os trabalhos de três a cinco oficiais Engenheiros, um Secretário, um Contador, dois Amanuenses e um Contínuo. Além disso, a Administração contaria com a presença de barreiras, sendo os guarda-barreiras e cantoneiros responsáveis por conservar as estradas, arrecadar o tributo de passagem e evitar fraudes e extravios:67 “Haverá nas estradas, de duas em duas légoas, uma barreira, onde

todos pagarão o tributo estabelecido (...)” (ESCHWEGE, 1843, p. 42-46). Isentava-se do

pagamento pessoas em serviço do Estado, militares, o serviço de correios e os estafetas. Contudo, a implantação da “Polícia das estradas” com barreiras provocava descontentamentos: “Em um paiz onde a polícia das estradas he uma cousa inteiramente

nova, naturalmente deve achar difficuldades a sua execução (...) já pela natural desobediência dos povos, que sempre tem repugnância em si sujeitar ao regulamento das estradas (...)” (ESCHWEGE, 1843, p. 51-52).

muitos casos o traço definitivo terá de afastar-se 2 a 3 léguas da linha por mim riscada o que em si o exame no próprio terreno tem de decidir” (Appensos n° 5, Relatório de Presidente de Província, 1864, p. 1).

67 No modelo francês de estradas destaca-se os cantoneiros. Esses eram trabalhadores responsáveis pela conservação de trechos da estrada: retirar a lama, limpar as valetas e cuidar das obras de arte. Cf. GUIMARÃES, Arthur da Costa. As estradas de rodagem em Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas Gerais, 1916.

Em Minas Gerais, as proposições normativas relativas às estradas e pontes demonstraram, assim como o manual de Joze Diogo Mascarenhas e do Barão Von Eschwege, constante preocupação com os modos de construção e conservação. A Lei n. 310 de 1846, em seu primeiro artigo, dividia as estradas em provinciais e municipais. Em seguida, afirmava que cada município teria um Inspetor de Estradas. Este seria responsável pelo alistamento dos habitantes com idade entre 8 e 60 anos, em perfeito estado de saúde, aptos a prestarem serviços para a garantia do bom estado de conservação e construção das estradas. Cabia ao indivíduo, alistado pelo Inspetor de Estradas, a prestação de dois dias de trabalho a cada ano. Restavam, para esses habitantes, duas opções: pagar em dinheiro um valor correspondente aos dias de trabalho ou executar os dois dias de trabalho braçal. O alistamento atingiria membros de família, escravos e criados:

Art 12° Todos os habitantes do Círculo, chefes de família, ou de estabelecimentos que sejão proprietários ou administradores, quer sejão arrendatários, colonos ou agregados das Fazendas de cultura e criar, e bem assim todos os trabalhadores poderão ser chamados a dar cada ano uma prestação de dois dias (...) (LLM, 1846, Lei n. 310)

Contudo, a lei se tornou letra morta em poucos anos. O relatório de presidente de província avaliou da seguinte forma a ineficiência da promulgação normativa concernente à lei número 310 de 1846:

A lei n. 310 de 1846, vulgarmente conhecida pela lei das corveas, ainda não teve execução, à falta de um regulamento, que nenhum dos meus antecessores animou-se à expedir. Ella é machina de tanta, e tão odioza oppressão, sobretudo para as classes menos abastadas, que convem quanto antes revogal-a (Relatório de Presidente de Província, 1850, p. 22).

Não é possível afirmar se a legislação tornou-se inoperante devido à resistência dos habitantes em aderir ao alistamento e prestarem os serviços, ou se as Câmaras Municipais foram ineficientes e/ou relutaram em executar a dita lei. Independente dos motivos que levaram, em 1850, a revogação da lei, se deve levar em conta que o Estado não se preocupava apenas em construir estradas, mas em mantê-las em bom estado de conservação.

Em outro ponto comum aos manuais portugueses estava a associação entre circulação e tributos. Tornava-se inerente à construção de estradas a colocação de barreiras. Em outros termos, a geração de receita para os cofres públicos mantinha uma relação direta entre a edificação viária e o universo fiscal:

Em lugar de se entender que é preciso fazer uma estrada primeiro para depois se pôr a barreira, entenda-se que a barreira devem-se espalhar pela provincia, collocando-as nos lugares em que a passagem se torne inevitavel para que a cobrança de impostos seja a máxima possivel com a menor despeza; e reconhecido o principio que o producto geral das

barreiras será exclusivamente empregado no melhoramento das estradas (...) Feito e entendido isto, haverá desde logo dinheiro para concertar as estradas, e conservá-las uteis e intrasitaveis (...) (Relatório de presidente de província, 1844, p. 48).

Construir barreiras, em lugares estratégicos, significava a incidência de tributos sobre a circulação de bens e pessoas (Planta 1). As recebedorias tinham por objetivo taxar os bens exportados, onerar as importações de mulas, animais e carros carregados de gêneros importados do exterior (RESTITUTTI, 2006, p. 35).68 Além de impor ônus à circulação, a província atentava para a conservação das estradas. A sugestão presente no relatório de 1844 clamava pela associação entre proprietário de escravos, interesses locais, jornaleiros livres e os trabalhos de manutenção das vias públicas. No trecho abaixo, reproduzimos a proposta elaborada pelo presidente da província relativa ao modo de conservação das vias públicas:

Todo o senhor de escravos deverá dar um dia de serviço de cada um delles por mez em beneficio do melhoramento das estradas, e os jornaleiros livres que se empregão em trabalhos do campo concorrerão da mesma sorte com o seu serviço pessoal, não se admittindo em caso algum a substituição por dinheiro. Um regulamento a propósito pode explicar o modo de se fazer effectiva esta contribuição e designar pessoas que devem encarregar-se de dar direcção a estes serviços e as correcções contra os remissos. Conseguidos estes meios, basta que os caminhos todos se vão aproximando pouco e pouco á largura viva de doze palmos, quando já a não tenhão maior, e que ao mesmo tempo se fação desvios ás águas, e se concertem os passos perigosos segundo os methodos que podem ser indicados no mesmo regulamento, para que os viandantes tenhão um transito seguro e livre em todos os sentidos. Chegando os caminhos a este ponto, poderá continuar o serviço alargando-os (Relatório de presidente de

província, 1844, p. 47-48).

68 Segundo Restitutti, os direitos de entrada não devem ser compreendidos na acepção colonial, visto que não incidiam sobre gêneros importados. Constituíam-se como taxas de pedágio sobre animais e carros que entrassem com gêneros de comercio, portanto, eram taxas de utilização das vias interprovinciais (RESTITUTTI, 2006, p. 44).

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