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4. Ser Surdo: Percorrendo o Caminho da Deficiência à Diferença

4.3 Circulando pela Cultura Surda

Tem-se muito a se descobrir e a se trilhar nesse novo mundo, com toda interface das relações sociais, como assegura Sacks (1989/1998):

O estudo dos surdos mostra-nos que boa parte do que é distintivamente humano em nós – nossas capacidades de linguagem, pensamento, comunicação e cultura – não se desenvolve de maneira automática, não se compõe apenas de funções biológicas, mas também tem origem social e histórica; e essas capacidades são um presente – o mais maravilhoso dos presentes – de uma geração para a outra. Percebemos que a cultura é tão importante quanto a natureza (pp. 10,11).

Procurando caminhar por essas novas trilhas, que se abrem para que se possa conhecer esse povo, ressaltou-se a ideia de uma “cultura inventada” como propõe Wagner (2010) e também foi levado em consideração o conceito de cultura surda de Strobel (2008) quando revela:

Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-os com as suas percepções visuais, que contribuem para definição das identidades surdas e das „almas‟ das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo (p. 24).

É importante evidenciar-se que existem peculiaridades e regionalismo nessa cultura: “Embora o termo cultura surda seja usado frequentemente, isso não significa que todas as pessoas surdas no mundo compartilhem a mesma cultura” (Wilcox & Wilcox, 2005, p.78).

Pensando a cultura surda como sendo inventada, dentro de uma perspectiva simbólica, há a constatação dos traços dessa cultura surda através da afirmativa de Finuras (2010) quando sugere que “a cultura torna-se, assim, o padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, incluindo-se aqui as expressões linguísticas, acções e objectos significativos, através dos quais os indivíduos comunicam e partilham experiências entre si” (p. 194). Como vem sendo dito, é comum os surdos conviverem em uma sociedade que obriga a comunicação oralizada e os surdos seguem essa imposição de desmutização.

Entretanto, ao tomarem consciência de sua condição de surdo, passam a se perceberem como estrangeiros em sua própria terra e procuram seus iguais.

Isso porque, como Dorziat (2011) ressalta, a ideologia da normalidade desconsidera o sujeito surdo como capaz de construir e buscar outros caminhos para expressar sua forma de ser e estar no mundo. E, ao que se contrapõe a esta ideologia, o movimento Surdo, no mundo, proporcionou uma organização política que avança no sentido de superar essa marginalidade e trazer esse sujeito para os espaços que o vislumbrem como um cidadão.

O surdo, ao entrar em contato com seu povo e constituir a sua identidade surda, passa a defender o direito de ser surdo e de transitar pelo mundo, em suas relações, como seu povo. Desse modo, verifica-se o movimento como Wagner (2010) assegura: “Poder-se-ia dizer, ele não tinha nenhuma cultura, já que a cultura em que crescemos nunca é realmente „visível‟ – é tomada como dada, de sorte que suas pressuposições são percebidas como auto evidentes” (p. 31).

Quanto a essa cultura, que ora é inventada, Strobel (2008) garante que “a cultura surda exprime valores, crenças que, muitas vezes, originaram-se e foram transmitidas pelos sujeitos surdos de geração passada ou de seus líderes surdos bem-sucedidos, através das associações de surdos” (p. 26). Os surdos vão se constituindo e criando a sua identidade a partir de sua relação com o ambiente, absorvendo e lendo o mundo de forma genuinamente visual. Neste sentido, Bauman (1999/2005) acrescenta “a questão da identidade precisa envolver-se mais uma vez com o que realmente é: uma convenção socialmente necessária” (p.13). De tal modo que o surdo, em sua cultura, possa ir constituindo sua identidade e tomando consciência de quem realmente é e quais são seus valores, para que venha a desenvolver uma visão de mundo com o sentido que lhe imprime. Assim, é imprescindível esclarecer que “uma vez que tanto a cultura como a identidade são ambas construções simbólicas a sua relação torna-se mais estreita. Porém, convém clarificar que, não são a mesma coisa” (Finuras, 2010, p.196).

Perlin (2010) indica a existência de múltiplas identidades surdas, as quais seguem algumas categorias de acordo com o modo como os surdos absorvem e admitem a sua experiência e comunicação visual:

O adulto surdo, nos encontros com outros surdos, ou melhor, nos movimentos surdos, é levado a agir intensamente e, em contato com outros surdos, ele vai construir sua identidade fortemente centrada no ser surdo, “a identidade política surda”. Trata-se de uma identidade que se sobressai na militância pelo específico surdo (p. 63).

Além dessa identidade coletiva e politizada, segundo a autora, o sujeito surdo apresenta outros tipos de identidade, dentre elas: 1. identidade híbrida – surdos que nasceram ouvintes e tornaram-se surdos posteriormente. Esses identificam a comunicação falada e depois passam para os sinais: “Nascer ouvinte e posteriormente ser surdo é ter sempre presente duas línguas, mas a sua identidade vai ao encontro das identidades surdas” (Perlin, 2010, p. 64). 2. Identidade de transição – surdos que estavam amarrados à cultura ouvintista e que passaram para comunidade surda. “Transição é o aspecto do momento de passagem do mundo ouvinte com representação da identidade ouvinte para a identidade surda de experiência mais visual” (Perlin, 2010, p. 64). 3. Identidade incompleta – surdos que não conseguem quebrar a rede de poder do ouvinte e lutam para se socializar com o ouvinte de acordo com a cultura ouvintista, ou seja, surdos que não puderam conviver com outros surdos e que a família não permitiu a sua autonomia. 4. Identidades flutuantes – “surdo consciente ou não de ser surdo, porém vítima da ideologia ouvintista que segue determinando seus comportamentos e aprendizados” (Perlin, 2010, p. 66). Acrescenta ainda nesta perspectiva de identidade flutuante que “existem alguns surdos que querem ser ouvintizados a todo custo. Desprezam a cultura surda, não têm compromisso com a comunidade surda. Outros são forçados a viverem a situação como que conformados a ela” (Perlin, 2010, p. 66). Seguindo essa linha de pensamento, pode-se afirmar que, nesse tipo de identidade flutuante encontram-

se os surdos que não querem ser surdos, que negam a sua condição e crescem em sentido contrário a sua tendência natural ao crescimento.

A liberdade de ser o que se é, de comunicar-se com uma linguagem natural, leva o surdo a um desenvolvimento e a um desprendimento das formas impostas ao seu enquadramento ouvintista, como assinala Van Belle (1990), somente quando se permite que as pessoas sejam quem realmente elas são, poderá haver uma transformação naturalmente.

À procura de seus iguais, o surdo fortalece-se do ponto de vista coletivo, passa a perceber o mundo a partir de suas lentes e posiciona-se diante desse mundo a fim de quebrar as amarras da cultura ouvinte dominante, como assegura Reagan (1992): “The deaf constitute a unique subculture in U.S. society. Although many of the characteristic features of the deaf subculture are linguistic, or at least partially linguistic, in nature, other important cultural values, attitudes, and traditions are present as well” (p. 311). Ao longo dos anos, os surdos têm se percebido como estrangeiros, sentem-se diferentes e não aceitos e fortalecem-se a partir de suas comunidades, de uma forma coletiva de se perceber e de lutar pelos seus direitos. Nesses grupos, não existe ênfase à diferença de idade, de sexo, de raça ou de cor, enfatiza-se o que há de comum que é a condição de ser surdo, como assinala Lane (1992):

A projecção da identidade do surdo encobre as diferenças de idade, classe social, sexo, e de etnias, as quais seriam mais notáveis na sociedade dos ouvintes. Existe também na comunidade dos surdos uma propensão para a tomada de decisões em grupo, ajuda mútua e para uma reciprocidade (p. 32). Desse modo, surge um pensamento coletivo em prol de seus direitos.