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O Modelo Médico – Surdez como Deficiência

4. Ser Surdo: Percorrendo o Caminho da Deficiência à Diferença

4.1 O Modelo Médico – Surdez como Deficiência

As trilhas a serem tomadas neste estudo distanciam-se do modelo médico em direção à perspectiva cultural. Deste modo, para que possa chegar a essa percepção de diferença, será realizada uma explanação rápida sobre a deficiência através das lentes do modelo médico até chegar ao olhar que ora é lançado por meio deste estudo, com o foco na deficiência como cultura.

Para o modelo biomédico, a surdez é percebida como uma falta, como uma deficiência e, portanto necessita de tratamento e procedimentos médicos e terapêuticos. O que pode ser percebido na afirmativa: “A maioria das pessoas com perda auditiva podem ser ajudadas por meio de tratamento médico, cirúrgico ou de aparelhos de audição” (Surdez.org.br, 2014).

Isso porque “uma função crucial da audição é permitir a compreensão do mundo dos sons, especialmente os sons da fala” (Almeida-Verdu, Souza & Bevilacqua, 2008, p. 373). Em outras palavras, Gesser (2009) ao referir-se a perspectiva médica, complementa: “a surdez é construída na perspectiva do déficit, da falta, da anormalidade. O normal é ouvir, o que diverge deve ser corrigido, normalizado” (p. 67). Assim, o sujeito, que apresenta déficit em sua audição, neste modelo, é apontado como uma pessoa com deficiência auditiva. E, para categorizá-lo, o diagnóstico é realizado a partir da avaliação clínica e da audiometria, a qual indica a classificação da perda de decibéis (Db) – relacionada a intensidade sonora, e que poder ser visualizada, brevemente, na tabela abaixo.

Tabela 1

Classificação das Perdas de Audição

Grau Perda em

Db

Percepção Sonora Causas habituais

Normal 0 – 15 Normal. –

Ligeiro 16 – 25 Não percebe a voz sussurrada. Otite serosa, perfuração timpânica.

Leve 26 – 40 Percebe os sons mais sonoros da fala.

Perda neurossensorial.

Moderado 41 – 65 Recorre à leitura labial para perceber uma conversa normal.

Otite crônica, anomalia do ouvido médio, perda neurossensorial. Severo 66 – 95 Percebe a fala ao se gritar ao

ouvido.

Perda neurossensorial ou mista.

Profundo › 95 Não percebe a fala, só ruídos. Perda neurossensorial ou mista.

Total Não ouve nada. 90

Fonte: http://surdinfo.surduniverso.

Para reforçar o que foi dito anteriormente, na perspectiva médica, as pessoas que apresentam alguma perda, exposta na tabela 1, dentro do nível leve ao profundo, caracteriza- se como deficiente auditivo, enquanto que a categoria do surdo compreenderia, apenas, aqueles que indicaram perda total de Db. Ainda, nessa perspectiva, Coelho (2011) assegura que “tanto o limiar auditivo quanto o papel da percepção auditiva devem ser levados em consideração ao pensarmos sobre a relação entre audição-linguagem-fala” (p. 163). E, a partir dos resultados apresentados, médicos e fonoaudiólogos devem orientar aos pais de como realizar os tratamentos ao que, em geral, não incluem a indicação da aprendizagem da língua de sinais, mas um treino para adquirirem a fala e suprirem a falta da audição através dos aparelhos auditivos.

Acredita-se que, quanto mais precoce seja realizado o diagnóstico, mais rápido haverá intervenção para amenizar a perda e levar o surdo a falar. Por isso, no Brasil, foi inserido

como medida preventiva o diagnóstico precoce da surdez, através do teste de emissões otoacústicas, popularmente conhecido como o teste da orelhinha, que deve ser realizado nos 30 primeiros dias de vida do bebê. Sobre o teste, Kelman (2011) comenta: o “teste é rápido e indolor. Consiste na observação de respostas auditivas e estímulos sonoros dados pelas células nervosas responsáveis pela audição. Essas células apresentam respostas em forma de eco, captadas pelo aparelho” (p. 181).

Essa prática do exame precoce é nova. O que sempre ocorreu foi a identificação do filho surdo a partir da observação da falta de reação, da criança, aos barulhos e sons corriqueiros. O que denotava preocupação à família e gerava a procura pela assistência médica. Assim, a partir do diagnóstico, a família passava a receber orientação de como agir diante da condição surda de seu filho, e recebia acompanhamento dos profissionais envolvidos no tratamento, como assinalam Motti e Pardo (2008):

Sendo ideal que os profissionais especializados acompanhem o uso do aparelho de amplificação sonoro individual, discutam dúvidas, ansiedades e inseguranças, incentivem as atividades de estimulação de linguagem e auxiliem os pais a desenvolver a percepção da evolução a criança e se conscientizem de sua capacidade e competência (p.189).

À medida que, a medicina aprimorou as suas pesquisas e aperfeiçoou os seus recursos, a tecnologia também avançou, os aparelhos auditivos foram diminuindo e tornaram-se quase que imperceptíveis. Todos esses avanços científicos atendiam à uma perspectiva normalizadora e objetivavam a aquisição auditiva e de fala das pessoas que apresentavam “deficiência auditiva”. Nesse sentido, surgiu, nas últimas décadas, uma proposta mais sofisticada, a fim de abolir “a falta” que o surdo apresenta para fazê-lo ouvir e falar. Trata-se do implante coclear, que se caracteriza como uma prótese auditiva, como Kelman (2011) explica, “o implante coclear é um dispositivo eletrônico que transforma a energia sonora em impulsos eletroquímicos, que estimulam as fibras nervosas do nervo auditivo ou as estruturas remanescentes em diferentes regiões da cóclea, chegando até ao córtex cerebral” (p.177).

Acresce-se que a primeira cirurgia para realização do implante coclear ocorreu nos Estados Unidos, em 1980. Enquanto, no Brasil, só veio a ocorrer 10 anos depois. Trata-se de uma cirurgia dispendiosa e que o sistema público de saúde brasileiro privilegia as crianças até a primeira infância. Mesmo assim “Na última década, no Brasil, o implante coclear multicanal tem se tornado uma opção de tratamento para reabilitação auditiva de crianças e adultos com perda auditiva severa e profunda e, consequentemente, uma ferramenta importante para o desenvolvimento da linguagem oral” (Padovani, 2008, p.356). Por conseguinte, para desenvolver a fala, os profissionais orientam para que o implantado e sua família não façam uso de comunicação visual em detrimento da linguagem oral, para desse modo favorecer o uso da audição e da fala. Ao que, em seus estudos, Padovani (2008) percebeu que “a terapia fonoaudiológica para crianças implantadas prevê o desenvolvimento das habilidades auditivas que irão, por sua vez, alimentar a organização do sistema linguístico” (p. 358).

Não se pode afirmar que o implante coclear é a grande solução e os resultados, para escuta apurada da compreensão do discurso oral, seja imediato, pois é necessária a reabilitação pós-implante e fonoterapia, porque no paciente pré-lingual (perda de audição antes da fala) não há a memória auditiva, o que gera longo tratamento com fonoaudiólogo. Como assinala Rezende (2012) “essa tecnologia torna a surdez uma falta da audição, um defeito a ser corrigido pelo implante coclear e cobra da família o empenho para acompanhar a intensa reabilitação pós-cirúrgica e a vigilância dos corpos surdos” (p. 104). E, foi a partir da perspectiva médica que, por muitos anos, os pais passaram a acreditar na possibilidade de reconstruir seus sonhos de um filho perfeito, sem “deficiência” e buscaram atender as indicações de tratamento.

Com esta breve exposição, sobre a perspectiva médica, percebe-se que há uma visão organicista e uma busca incessante por extinguir a falta de audição apresentada pelo surdo e leva-lo a aquisição da fala. Diante desse enfoque clínico, pode-se afirmar que, “a surdez é

vista como doença/déficit/deficiência que necessita ser tratada, visando a sua „cura‟. A „cura‟, nos casos de crianças que nascem surdas, está relacionada, na maioria das vezes, ao aprendizado da linguagem oral e ao uso de aparelho de amplificação sonora” (Silva, Zanolli & Pereira, 2008, p. 175).

Pensando esse modelo médico, que introduziu a preocupação com as pessoas com deficiência, em seu apanhado histórico sobre a Educação Especial no Ceará, Leitão (2008) assegura que:

Nos primeiros cinquenta anos do século XX, o contingente populacional deficiente ou defeituoso no Brasil, pelo que parece, foi alvo de preocupação dos profissionais das áreas médica e paramédica. A historiografia especializada revela que foram esses profissionais os primeiros a realizar estudos e apontar para a concretização de propostas de atendimento a esse segmento da população (p. 55).

De uma forma geral, em todos os países, com a evolução da percepção sobre as pessoas com deficiência, tornou-se necessário classificá-la e a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou o documento denominado de Classificação Internacional de Deficiências, Discapacidades e Minusvalías (CIDDM), no qual se apresenta o direito da pessoa com deficiência e garante o direito às oportunidades como os demais cidadãos, como assinala Correia (2005):

El modelo Médico, surge a finales de la década de 1970, cuando la Organizazacion Mundial de la Salud (OMS), com la finalidad de estabelecer uma classificación que permitiera ofrecer um marco conceptual para la información relativa a las consecuencias a largo plazo de las enfermedades, los traumatismos y otros transtornos (p. 28).