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4. Ser Surdo: Percorrendo o Caminho da Deficiência à Diferença

4.4 A Deficiência como Cultura

A deficiência, tão apresentada nos manuais como uma consequência de atrasos de desenvolvimento, como algo adquirido e, portado, pela pessoa, tem sido muito questionada universalmente, como vem sendo aludido neste estudo, na proposta de inteirar o leitor sobre esse olhar da área médica, lançado por longos anos, à pessoa com deficiência e,

especificamente, ao surdo. Neste momento, propõe-se sair dessas amarras, para apresentar a deficiência como uma expressão cultural, a começar pela exposição de uma experiência em uma ilha que se tornou ícone nos estudos surdos.

Na ilha Martha´s Vineyard, em Massachussetts, nos Estados Unidos, entre os séculos XVII e XX, havia uma forte incidência de surdez hereditária, que fazia com que as pessoas não ficassem surpresas com o nascimento de um filho, na dualidade de poder ser ouvinte ou ser surdo e, diante da naturalidade da convivência de surdos e ouvintes, foi criado uma língua de sinais utilizada por ambos. Diante da situação, Nora Ellen Groce, antropóloga americana, fez um estudo etnográfico na década de 1980 nessa ilha que deu origem ao livro Everyone here spoke sign language: hereditary deafness on Martha’s Vineyard (Groce, 1985), obra citada pela maioria dos autores que estudam a surdez, o surdo.

Na obra, a autora revela um ideal de comunidade, através da comunicação bilíngue natural, onde surdos e ouvintes convivem e interagem fluentemente, através da sinalização. O uso das duas comunicações era tão espontâneo que entre ouvintes, mesmo na ausência de um surdo, percebiam-se os habitantes a fazerem uso da língua de sinais.

Para melhor entender a naturalidade da situação, apresenta-se o exemplo de uma das entrevistadas de Groce, uma senhora com aproximadamente 80 anos, vividos na ilha, ao ser indagada sobre aqueles que moravam na ilha, quando ela ainda era uma menina, sobre aqueles que não ouviam, com a finalidade de saber se eles eram deficientes, prontamente a colaboradora respondeu que eles não eram deficientes, eram surdos. Mostrando assim o quão natural era ser surdo ou ouvinte naquela ilha.

Além disso, Groce (1985) revela que nessa ilha a surdez não era impedimento para comunicação e convivência entre surdos e ouvintes, pois entre eles, foi desenvolvido o bilinguismo e os surdos eram totalmente integrados à comunidade. A autora enfatiza que a dificuldade de comunicação e a falta de conhecimento sobre a surdez existente para maioria

dos ouvintes geram dificuldades, em todos os aspectos, para os surdos, seja na educação, no trabalho, na comunidade, como também em relação aos seus direitos civis.

Essa obra por retratar o bilinguismo vivido em uma ilha de forma tão natural, tornou- se admirada e cobiçada pelos surdos e intérpretes que enriquecem seus estudos e passam a acreditar, cada vez mais, nesta perspectiva de deficiência como uma percepção cultural e na possibilidade de compreender a condição do ser surdo como uma diferença linguística, ou seja, o problema não está na incapacidade de ouvir, mas na dificuldade que os ouvintes encontram em se comunicar com os surdos e na persistência em afirmar para eles que é difícil essa comunicação.

Dessa forma, o surdo por ser minoria na modalidade da língua portuguesa e não encontrar respaldo na comunicação passa a ser percebido como alguém que se isola. Dentre os estudiosos sobre a deficiência, há uma corrente contrária à cultura e à comunidade surda argumentando que é uma forma de isolamento e formação de guetos. Em contrapartida, os próprios surdos defendem essa postura tomada, argumentando não haver isolamento e afirmam ser a busca por seus iguais a fim de desenvolverem uma comunicação natural entre aqueles que se compreendem. Segundo Strobel (2007):

Quando a sociedade deixa o surdo ser ele mesmo, carece tirar as máscaras e assim chega o momento de o povo surdo enfrentar a prática ouvintista, resgatar-se e transformar-se no que é de direito: partes de nós mesmos, de termos orgulho de ser surdo! (p. 33).

A própria família não desenvolve a LIBRAS e quando assim o faz são poucos membros ou não conseguem a compreensão da língua de sinais com profundidade, para desenvolverem diálogos de forma adequada, sem quebras na comunicação.

Na ilha onde Groce (1985) desenvolveu sua pesquisa, a surdez não era reportada à deficiência, aqueles sujeitos, que ali habitavam, não eram apontados como deficientes ou desiguais, eram, simplesmente, surdos. Lá eles podiam ser eles mesmos e participavam de

todas as atividades da comunidade, ou seja, estudavam, trabalhavam, casavam e constituíam família entre pares surdos ou com ouvintes, sem distinção. Não havia máscaras. Nunca houve a exigência da participação das crianças surdas em escola oralizada. Entretanto, essa situação era única e, como Groce afirma essa forma de convivência contrastava com o que ocorria no continente americano e nos demais continentes que, no mesmo período, percebiam a surdez com preconceito e desinformação.

Compreender a deficiência como algo constituído culturalmente não é uma posição genuína de nosso estudo, pois Groce já inaugurara esse pensamento com seu importante e denso trabalho para comprovar essa possibilidade. Comungando dessa visão cultural, McDermott e Varenne (1996) ressaltavam que, por muito tempo, a deficiência relacionava-se a medidas físicas, porém ao se investigar como essa diferença é percebida, identificada, como gera consequência na vida do sujeito e como influencia e é influenciado em seu meio, tornou- se um tema profundamente cultural. Esses autores remetem-se à Martha’s Vineyard como uma possibilidade de existir a deficiência como cultura e de se conviver de forma natural com as diferenças. Além disso, os autores citados apresentam fortemente essa visão cultural referindo-se à ilha como um lugar onde as pessoas comunicavam-se umas com as outras independentemente das diferenças, onde a inclusão, da família e da comunidade, foi mais importante que a exclusão. Reportam-se, também, às quebras que podem ocorrer quando a forma de conviver com a pessoa surda difere entre a escola e a família.

A possibilidade de desenvolvimento, criada por um meio que acolhe o sujeito surdo e promove a sua participação total na comunidade, revelada na ilha, indica a imprescindibilidade de pensar a deficiência em seu contexto, pois a sociedade, muitas vezes, tece significados negativos e pejorativos para as diferenças, traduzindo a incapacidade de ouvir como um grande problema na convivência e participação da sociedade ouvinte.

A partir do conhecimento do estudo de Groce sobre a Martha’s Vineyard e a forma como percebiam e viviam surdos e ouvintes, McDermott e Verenne (1996) sugerem que seja refletida a compreensão sobre o papel da cultura no diagnóstico e a remediação de distúrbios do desenvolvimento, propondo (re)pensar sobre a noção de cultura, deficiência, desenvolvimento e as relações entre eles, pois o grande impasse para se compreender o que seja deficiência é a forma como é percebida, considerando o desenvolvimento como etapas a serem alcançadas em determinados períodos da vida, com faixas etárias, de modo determinista e estanque ou, por outro lado, e mais viável, considerando o contexto no qual o sujeito está inserido, sem se apegar de forma rígida a um conceito de deficiência, sem que a compreensão do sujeito seja indicada a partir de suas impossibilidades.

Assim, os autores propõem três formas, dentre as inúmeras maneiras de perceber a cultura, a deficiência e o desenvolvimento, de acordo com os estudos desenvolvidos durante aproximadamente trinta e cinco anos. No período da década de 1960 a 1990, no qual a segunda perspectiva surgiu a partir de um avanço da primeira e a terceira é uma ampliação das duas primeiras com a consideração de novos dados. A seguir, essas formas, propostas, serão apresentadas com maiores detalhes.

A primeira abordagem seria a privação de cultura, que traz as características próprias da época, a qual propunha que as pessoas, em diversos grupos, desenvolviam-se de formas diferentes e desse modo os membros poderiam ser mensurados e avaliados de acordo com os marcos de desenvolvimento. Essa abordagem não considerava as questões culturais e balizava-se no pressuposto de que há um conjunto estável de tarefas a serem avaliadas e indicavam performances que variavam entre as pessoas. Desse modo, aqueles que apresentavam um baixo nível de desempenho eram indicados como ainda não desenvolvidos para determinada atividade, forma de raciocínio, comportamento linguístico e desenvolvimento psicomotor.

Implicitamente, havia uma classificação dos que possuiam mais e os que possuiam menos competência. Assim estariam, também, classificando em habilitados e deficientes. Em outras palavras, essa abordagem corresponderia a tarefa de medir a capacidade e comportamento do sujeito e inseria-se nessa perspectiva, as técnicas de mensuração da psicologia, através dos testes psicológicos, que muitas vezes rotulavam as pessoas com deficiência, indicando-os de acordo com classificações pejorativas como idiota, deficiente mental, dentre outras tantas classificações rotulantes. Em outras palavras, esse tipo de categorização indicaria os capazes e os incapazes para o trabalho e classificaria as crianças para que pudessem indicá-las para as salas especiais das escolas.

A segunda seria a abordagem da diferença cultural, que trazia um olhar menos estanque e considerava a possibilidade de desenvolvimento de habilidades e competências, considerando o contexto. Indicaria que as pessoas de diferentes grupos poderiam se desenvolver de forma similar quando bem sintonizados com as demandas de sua cultura. Revelava, também, que mesmo em culturas diferentes, poderiam existir e serem oferecidos caminhos equivalentes para possibilitar o desenvolvimento humano.

Esta abordagem não mantinha seu foco em tarefas pré-definidas, enfocava as tarefas realizadas por pessoas comuns, para além das atividades desenvolvidas em laboratório e considerava a questão de incursão em diferentes culturas. Assegurava que se é possível descrever a estrutura da tarefa de culturas diferentes, então é possível discernir as habilidades e as deficiências que podem desenvolver culturas. Essa abordagem considerava que o mundo consiste de uma vasta gama de tarefas, todas elas situadas e emergentes dentro de um contexto cultural. Nessa proposta, já havia uma tentativa de ampliação das causas de uma possível “deficiência”, abdicando da perspectiva reducionista de que o “problema”, a “falha” ou a “falta” fosse algo intrinseco e, apenas, do indivíduo. Dava-se início a importância necessária à existência da deficiência, que trazia em seu bojo um contexto a ser considerado.

Dessa forma o desenvolvimento dar-se-ia de acordo com o avanço do sujeito em direção a alcançar sua competência, respeitando seu próprio ritmo. O contraste entre os habilitados e os diferentes surgiria a partir das diferenças onde alguns alcançam plena competência para realizar determinada tarefa e outros se concentram em apenas algumas partes, como também sugere, que algumas pessoas, parecem ser incapazes de desenvolver qualquer domínio da “totalidade”.

De uma forma, mais ampla e avançada, surgiu a terceira abordagem. Esta na época e ainda hoje, tornou-se bastante aceita por psicólogos, antropólogos e etnógrafos, por indicar a deficiência como cultura. Compreende-se, nessa proposição mais ampla, que a cultura produz grande variedade de papéis para os seres humanos e, dessa forma, exerce grande influência na constituição das pessoas e as limitações de aprendizagem não seriam o mais importante a ser visto. De tal modo, a cultura imprime o que o sujeito é em seu contexto e como ele é percebido, revelando como cada um está sendo colocado e se essa posição lhe exige ser tratado como diferente e não como deficiente.

Similarmente ao que ocorria em Martha´s Vineyard, em sua história pessoal, Laborit (1993/1994), ao relatar quando foi descobrir, com seus pais e outros surdos, a forma de viver dos surdos americanos, apresentou a cidade de Washington como a cidade dos surdos, tamanha foi sua impressão ao perceber muitas pessoas a se comunicarem de forma natural, através dos sinais. Ela conta “havia pessoas que se exprimiam por sinais em todos os lugares: nas calçadas, nas lojas, em redor da universidade Gallaudet. Os surdos estavam em todos os lugares. (. . .) Era como se tivesse chegado a outro planeta, onde todas as pessoas eram como eu” (p. 64). Os surdos eram aceitos em sua língua de sinais e formas de expressão, sem imposições e os ouvintes também se comunicavam com eles através dos sinais, sem restrições.

Na perspectiva da deficiência como cultura, não se propõe grupos dominantes e grupos minoritários. A proposta não seria mensurar as capacidades, mas compreender as diferenças de cada um, isto é, a visão seria muito mais ampla e perceberia o sujeito em relação à sociedade, a sua cultura e não mais em uma tabela que propunha a avaliação de um padrão de comportamento e execução de atividade. E, mesmo diante daquele que parece ter menos capacidade, deveria ser visto como uma diferença, como no caso da comunicação díspar do surdo, e não como uma deficiência. Assim, esta terceira proposta descortina um olhar mais humanitário, a mirar muito mais o sujeito como um todo e o seu entorno, sem se propor a segregar e rotular o sujeito. Traz implícita a necessidade de se respeitar os direitos humanos e de promover uma sociedade atuante a partir da equanimidade.

Após a exposição dessas três abordagens, é possível desenvolver um paralelo com a percepção sobre o surdo, no Brasil, que antes era fortemente visto como um deficiente, a partir de uma perspectiva médica, e por meio das lutas e conquistas dos movimentos para quebrar a visão estanque sobre esse sujeito que se comunica de forma diferente por conta de sua diferença linguística. Também, percebeu-se a existência de uma cultura que influencia e que pode emprestar novas lentes para se perceber o surdo para além de uma deficiência, aniquilando a visão negativa de incapacitado para alcançar o reconhecimento de pessoa competente e participante de uma cultura diferente da do ouvinte. Desse modo, ruma-se para reconhecer que a procura da normalização do surdo, através da fala, é uma invasão ao mundo desse povo, que possui seu jeito genuíno de comunicar-se e posicionar-se no mundo.

Portanto, é essa terceira abordagem que traz a deficiência como cultura, que vem sendo examinada neste estudo e que será discutido, durante todo o percurso de explanação. Em outras palavras, as reflexões desenvolvidas neste trabalho pretendem visualisar este surdo não como deficiente, mas como diferente e como sujeito cultural.

Em outro momento, os autores aqui apresentados entrarão como base para compreensão e análise dos dados obtidos e, a seguir, no próximo capítulo será apresentada a metodologia deste estudo, através da exposição da pesquisa passo a passo.