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6. Delineando Costumes e Colhendo os Frutos do Estudo

6.2 Compreendendo os Costumes

Com a participação nesses espaços, como se fosse um membro da comunidade, pouco a pouco algum detalhe, no uso da língua dos surdos, tornou-se familiar e esclarecido. Com o olhar atento ao mundo visual, que havia sido descortinado, contatava o espaço de sinalização, citado no capitulo inicial deste estudo, o qual revelava que a forma de sinalizar e posicionar- se não eram aleatórios, havia um foco dos movimentos, onde a cabeça e o tronco do sujeito, na comunicação de língua de sinais, funcionavam como um enquadramento, a fim de permitir a ênfase no movimento dos membros superiores para expor por meio dos sinais a sua fala e

também havia um grande destaque às expressões faciais, com a intenção de transmitir a entonação e a emoção da fala.

Durante todo percurso da pesquisa, com a inserção nos espaços frequentados pelos surdos, a procura de conhecer o seu cotidiano, seus costumes, a comunicação espontânea chamou a atenção, desvelando um clima natural entre eles, nos quais foi possível presenciar vários estilos e tempo de comunicação. Em um momento intimista, havia um casal de namorados juntinhos a trocarem segredos utilizando a língua de sinais de forma “miudinha” apenas com gestos de dedos e mãos escondidas entre eles. Nesse sentido, Pereira (2011) em seus estudos na comunidade surda portuguesa, que trata das relações de amor e amizade entre os surdos, comenta “os relacionamentos entre duas pessoas Surdas são caracterizados como experiências ricas e profundas, envolvidas numa cultura e numa língua comuns que permitem uma comunicação mais transparente entre as pessoas envolvidas” (p. 68).

Assim, os pequenos detalhes observados e apreendidos criavam uma relação próxima entre pesquisadora e o campo. Em mais um episódio observado, percebeu-se que, na hora da alimentação, destacava-se o cuidado por parte do surdo em tomar uma posição diante de uma pessoa que pudesse desenvolver um diálogo ou um bate-papo, além de ser constatada morosidade para concluir sua refeição, pois as mãos estavam sempre ocupadas em um movimento comunicativo, por cima dos pratos, focando muito mais a conversação que o ato de se alimentar.

Já, em outro momento, foi revelado que os surdos “fofocavam” com as mãos abaixadas e gestos resumidos aos dedos, preocupados se haveria alguém olhando, para não identificarem sobre quem falavam. Surgiram ainda gestos longos em uma discussão entre amigos, a partir de um assunto fleumático, percebido através das expressões faciais com gestos bruscos e longos com os braços. De forma a revelar que a língua de sinais é uma língua completa, desse modo, como os falantes de línguas orais, “as pessoas que falam

línguas de sinais expressam sentimentos, emoções e quaisquer ideias ou conceitos abstratos” (Gesser, 2009, p. 23).

Assim, a cultura surda trouxe algumas peculiaridades e artefatos por ser um mundo visual, ao que se percebeu que para se tornar acessível faria uso da adaptação dos sinais sonoros para sinais visuais, empregando a luminosidade e também a vibração. Um traço marcante dos surdos é a forma como escrevem. Eles revelaram em sua escrita que na língua portuguesa, ao se expressarem textualmente, não fazem uso dos conectivos, e ocorre uma escrita de construção própria, que diverge da escrita do ouvinte. Para expressar a “fala” em língua de sinais apresentavam estrutura de expressão com as palavras em sequência inversa ao português (a língua do país). Nos filmes e na mídia televisiva revelaram a necessidade da legenda e da janela de LIBRAS com o intérprete. O que muitos surdos, por não serem participantes ativos com compreensão profunda desta cultura e dos estudos surdos, explicam a cultura surda exclusivamente pelos artefatos e costumes, colocando-a em uma forma simplista de explicar o que seria o mundo surdo e sua cultura.

O mundo surdo revelou, como característica, a possibilidade de diálogo imediato. Em geral, quando eles identificavam outro surdo no espaço, já procuravam iniciar uma conversação. Como o estrangeiro que encontra um compatriota em outro país e vai ao encontro de seus iguais. Mas não seria possível pensar em uma padronização no “jeito de ser surdo”, quanto à forma de comunicação, cada um teria seu estilo da mesma forma como há vozes e sotaques diferentes, haveria formas diversas de sinalizar.

Outro aspecto interessante, na cultura surda foi revelado como uma característica bem específica: o “batismo com um sinal”, para designar um sinal pessoal de identificação além do nome da pessoa. Esse sinal seria indicado a partir de uma caracterização visual, percebida a partir do comportamento ou dos traços físicos de cada pessoa. Para facilitar a inferência

sobre uma pessoa por um sinal, pois a datilologia – soletração realizada com as mãos – letra por letra do nome, demandaria maior tempo na conversação.

Notadamente, é comum a sociedade criticar o comportamento dos surdos por isolamento e formação de guetos. Como também foi revelado o queixume da família em decorrência do filho surdo preferir sair ao encontro dos amigos surdos, a ficarem em casa ou saírem com a família. Contrapondo-se a essa reclamação o surdo argumentava que em família não participaria das conversas de uma maneira completa e sentia-se sozinho, um estrangeiro em família, enquanto que no grupo de amigos surdos, falavam a mesma língua e compreendiam-se, além de apreenderem o que acontece ao seu redor. Tais depoimentos do surdo brasileiro são comprovados por Laborit (1993/1994) ao narrar sobre sua experiência de vida como surda francesa, ao afirmar que “a comunidade dos companheiros surdos me oferecia essa liberdade. Com eles sentia-me em casa, em meu planeta. Conversávamos durante horas. (. . .) Enorme necessidade de nos encontrarmos, iguais, surdos, e livres para sermos o que somos.” (p. 104).

E eram essas simples coisas até as mais complexas e sutis, pertencentes à cultura surda, que os surdos orgulhavam-se de fazer parte. Ao que de forma veemente Perlin (2010), assegura:

A cultura surda como diferença se constitui uma atividade criadora. Símbolos e práticas jamais conseguidos, jamais aproximados da cultura ouvinte. Ela é disciplinada por uma forma de ação e atuação visual. Já afirmei que ser surdo é pertencer a um mundo de experiência visual e não auditiva (p. 56).

Dorziat (2011) corrobora com o pensamento acima quando afirma que “a Cultura Surda como diferença se constitui numa atividade criadora, composta por símbolos e práticas diferentes da cultura ouvinte” (p. 53).

Assim, foi transitando por estas pessoas que se comunicavam com as mãos, tão cheias de significados, que houve um maior debruçar-se nesta cultura em favor de uma melhor compreensão deste mundo visual, mas não silencioso como se pensa.