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4 A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA E A CLÍNICA DA ATIVIDADE

4.2 A Clínica da Atividade

Baseando-se nos conceitos da PSH, em especial a visão de homem como um ser que se constitui socialmente na e pela atividade, Yves Clot vem articulando a sua Clínica da Atividade de forma a dar visibilidade ao trabalho e às suas possibilidades de desenvolvimento e transformação.

De acordo com Silva, Barros e Louzada (2011, p.188), essa corrente da Psicologia do Trabalho tem como principal característica a definição da atividade de trabalho como “fonte permanente de recriação de novas formas de viver”.

Para Clot (2007), o trabalho tem uma função vital, não é uma atividade qualquer, mas por ser uma atividade dirigida para si e para os outros, mantém sua centralidade na vida social, sem perder de vista a sua contribuição para o desenvolvimento individual e para a contribuição de cada um na formação do patrimônio histórico-cultural humano.

Assim, Clot (2007) considera que a atividade de trabalho se desenvolve com recursos da subjetividade do indivíduo e tem como referência as experiências e memórias pessoais e coletivas. A compreensão acerca da relação entre o coletivo e o individual no desenvolvimento da subjetividade é considerada na Clínica da Atividade a partir da ideia de Vigotski de que:

[...] o social não é simplesmente uma coleção de indivíduos, não é simplesmente o encontro de pessoas; o social está em nós, no corpo, no pensamento; de certa maneira, é um recurso muito importante para o desenvolvimento da subjetividade. Nesse sentido, o coletivo não é uma coleção, é o contrário da coleção. O coletivo, nesse sentido, é entendido como recurso para o desenvolvimento individual. É isso o que interessa à clínica da atividade (CLOT, 2007, p. 102).

A partir dessa apropriação do social pelo indivíduo, Clot também situa o desenvolvimento da atividade real. Para ele, o real ultrapassa a dimensão dos objetos físicos, por tratar-se bem mais próximo a uma repercussão dos “processos de utilização e concepção desses objetos, no cruzamento de atividades às vezes rivais” (2007, p.117).

Com essa afirmação, recupera o conceito de Vigotski de que “o homem está pleno, em cada minuto, de possibilidades não realizadas”. Desse modo, o comportamento é sempre “o sistema de reações vencedoras” (VIGOTSKI, 2003, p. 74 apud CLOT, 2010, p. 103) afirmando que o objeto de análise da Clínica da Atividade, é acima de tudo o desenvolvimento das atividades, suas histórias e impedimentos.

Nesse sentido, Clot faz a distinção entre tarefa prescrita (aquilo que se deve fazer) e atividade (aquilo que se faz) e completa que esta última engloba diferentes aspectos como a busca de informações, a tomada de decisões, a adoção de posturas diversas, os deslocamentos e as comunicações com outras pessoas, consistindo-se entre outras coisas, na utilização articulada do corpo e da inteligência para a realização das tarefas (CLOT, 2007).

A atividade se efetiva como elaboração por parte do sujeito de sua tarefa, pois ao executá-la, o trabalhador, marcado por sua história e guiado por seus objetivos, a transforma. Essas transformações, no entanto, transbordam a esfera individual do trabalhador, uma vez que, participando de um coletivo profissional, esse indivíduo compartilha de regras tácitas, empreendidas e negociadas pelos próprios trabalhadores e muitas vezes independentes das regras formais e prescritas pelos seus superiores (CLOT, 2007).

Avançando na explicação acerca da atividade, Clot afirma que essa é formada por duas dimensões: a atividade real e o real da atividade. A atividade real é aquela que visivelmente se concretizou, mas que nem de longe detém o monopólio da atividade, uma vez que o realizado é apenas uma pequena parte do que seria possível. Já o real da atividade, é aquilo que, mesmo não se concretizando, permeou a atividade real. Nesses termos, define o real da atividade como:

[...] o que não se faz, o que se tenta fazer sem ser bem sucedido – o drama dos fracassos – o que se desejaria ou poderia ter feito e o que

se pensa ser capaz de fazer noutro lugar. E convém acrescentar – paradoxo frequente – o que se faz para evitar fazer o que deve ser feito; o que deve ser refeito, assim como o que se tinha feito a contragosto (CLOT, 2010, p. 103-104).

A partir dessa definição, Clot (2007) nos traz que os sujeitos se constituem na tessitura desse conflito entre a atividade real e o real da atividade e para se livrarem deles, os transformam em atividade mental que também compõe o resultado da atividade de trabalho e se transforma em uma prova da subjetividade individual construída a partir do coletivo.

Ampliando a concepção acerca da sua proposta de análise, Clot afirma que não se trata de encontrar uma cisão entre a prescrição social e a atividade real, ou o coletivo de trabalho e a atividade do sujeito. Colocando a história do desenvolvimento dos meios de trabalho e dos próprios sujeitos no centro da sua análise, considera que exista nessa relação, um “trabalho de reorganização da tarefa pelos coletivos profissionais, uma reorganização do trabalho pelo trabalho de organização do coletivo” (2010, p. 119).

Diante da possibilidade de estudo da sua história possível e impossível, Clot discorre que entre o prescrito e o real emerge o conceito de gênero social do ofício, ou gênero profissional, que remete às “obrigações compartilhadas pelos que trabalham para conseguir trabalhar, frequentemente, apesar de todos os obstáculos e, às vezes, apesar da organização prescrita do trabalho” (2010, p. 119).

Segundo Clot (2007) o gênero é um sistema aberto das regras impessoais não escritas que definem o uso dos objetos e o intercâmbio entre as pessoas; uma forma de rascunho social que esboça as relações dos homens entre si, para agir sobre o mundo.

São regras que tem o objetivo de permitir aos trabalhadores fazer o que se tem de fazer, a partir de um repertório de possíveis e impossíveis maneiras, gestos e palavras que podem ser dirigidas ao objeto de trabalho ou aos demais trabalhadores (CLOT, 2007).

Dessa forma, o gênero regula as relações entre profissionais, ou melhor, representa o sistema simbólico, com que a ação individual deve relacionar-se. Por meio do seu caráter normativo, serve de parâmetro para a definição das fronteiras entre o aceitável e o inaceitável no trabalho (DAVIS; AGUIAR, 2010)

No entanto, apesar desse caráter normativo lhe instituir consistência e perenidade, o gênero não é uma instância imutável; justamente por sua característica de instrumento de ação que ajusta as relações interprofissionais, sua estabilidade é sempre transitória (CLOT, 2010).

Dentro desse movimento do gênero e diante da possibilidade de o trabalhador enfrentar e superar de forma inovadora as dificuldades e impedimentos da sua atividade é que emerge o estilo pessoal. O estilo pode ser entendido na sua relação com o sentido da atividade, onde é implicada a subjetividade do sujeito, a partir da sua apropriação do gênero na ação (DAVIS; AGUIAR, 2010).

Assim como pode ser compreendida como a expressão singular do indivíduo diante das regras compartilhadas pelo coletivo de trabalho a partir do gênero, o estilo também pode ser visto como sua transformação a partir de situações reais, onde o sujeito utiliza-se de recursos próprios para desenvolvê-las e expressar a sua postura ativa, confirmando a existência do homem pensante (consciência) e do ser vivo (experiência) diante do trabalho (CLOT, 2007; 2010).

A respeito dessa dupla vida do estilo, Clot ainda complementa:

[...] o estilo é o que, no interior da própria atividade, permite superá- la. O estilo é essa liberação dos pressupostos genéricos da ação pela qual se realiza um duplo enriquecimento desses mesmos pressupostos: o enriquecimento dos contatos sociais consigo mesmo e o das relações pessoais estabelecidas com os outros – contatos e relações pelos quais podemos, em uma perspectiva vygotskiana, definir a consciência (CLOT, 2010, p. 130).

Atrelada ao conceito de estilo, Clot ainda nos apresenta uma terceira categoria a ser considerada durante a análise do trabalho: a catacrese.

A catacrese pode ser definida como o ato de imputar novas funções ou atribuições às ferramentas para resolver, de forma criativa os problemas do trabalho. Essa abordagem diante dos problemas reflete a ação do homem sobre o seu objeto de trabalho a partir de um desenvolvimento psicológico mediado pela apropriação das significações já existentes no gênero profissional (CLOT, 2010).

Essa transformação criativa e inovadora que surge da apropriação do sujeito do seu gênero profissional pode implicar também na transformação da atividade impossível em possível por intermédio das suas ações e da consequente apropriação para si do seu trabalho, que passa a ser constituído de sentido e onde o

trabalhador passa a mobilizar sua subjetividade, protegendo-se das patologias relacionadas a essa atividade (CLOT, 2007).

Dessa forma, foi diante da necessidade de incorporar na análise do trabalho aquilo que permaneceu ocultado ou inibido, assim como a sua possível transformação que nos anos 1990, Yves Clot estabeleceu um procedimento de pesquisa e de análise que promove a compreensão da correlação entre a atividade e o discurso. Dessa forma, a partir dos conceitos propostos por Vigotski, apresenta a autorreflexão como mediadora do desenvolvimento global da situação de trabalho.

Para isto, propõe que os trabalhadores possam ser confrontados com a sua própria atividade pelo intermédio de imagens filmadas, para uma análise do real da atividade e dos seus gêneros e estilos, em um processo que passa do coletivo ao individual e retorna ao coletivo por meio das chamadas Autoconfrontações Simples e Cruzada31, para promover a transformação da atividade de trabalho e a recuperação do poder de agir dos trabalhadores (CLOT, 2007; 2010).

A partir dos conceitos brevemente explanados acerca da PSH e da Clínica da Atividade, discorreremos no capítulo a seguir os procedimentos metodológicos que utilizamos nesta pesquisa, deixando claro que não pretendemos realizar a análise da atividade docente nos exatos moldes propostos por Clot, mas filtrar o procedimento metodológico da autoconfrontação simples para contribuir com a nossa proposta de intervenção por meio da consultoria colaborativa com vistas à formação em serviço para a inclusão escolar e servir de referencial teórico para a análise do material empírico coletado.

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