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A pesquisa na abordagem sócio-histórica: aproximações com o processo de colaboração e transformação da realidade

5 PERCURSO METODOLÓGICO

5.1 A pesquisa na abordagem sócio-histórica: aproximações com o processo de colaboração e transformação da realidade

Diante da complexidade e natureza dos objetivos propostos neste estudo, elegemos a pesquisa do tipo qualitativa com abordagem Sócio-Histórica para nos guiar metodologicamente nas definições do seu desenho, dos instrumentos e técnicas para geração dos dados e do tipo de análise a ser desenvolvida. Apesar de algumas controvérsias serem apontadas entre os fundamentos epistemológicos da pesquisa qualitativa e da pesquisa baseada no materialismo histórico-dialético32, identificamos nas proposições de Freitas (2002; 2007; 2010), a possibilidade de realizar uma pesquisa com base na teoria Sócio-Histórica, representada fundamentalmente por Vigotski e seus seguidores, utilizando fundamentos, instrumentos e procedimentos comuns à abordagem qualitativa de pesquisa.

De acordo com Freitas (2002, p.28), fazer pesquisa qualitativa numa abordagem sócio-histórica implica em uma “[...] preocupação de compreender os

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Para maiores esclarecimentos acerca desta questão, vide o texto apresentado por Lígia Márcia Martins na 29ª reunião anual da ANPED em 2006: As aparências enganam: divergências entre o materialismo histórico dialético e as abordagens qualitativas de pesquisa. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT17-2042--Int.pdf.

eventos investigados, descrevendo-os e procurando as suas possíveis relações, interligando o individual com o social” e ainda, tem como pressuposto básico transcender a descrição da realidade, explicando-a e “[...] realizando um movimento de intervenção nesta mesma realidade” (FREITAS, 2010, p.13).

Para compreendermos a lógica da pesquisa sócio-histórica, descreveremos inicialmente os três princípios definidos por Vigotski e seus colaboradores para a análise das formas superiores do comportamento humano (VIGOTSKI, 1996):

 Analisar processos e não objetos - este princípio baseia-se na premissa de que o desenvolvimento do pensamento e do comportamento voluntário é dinâmico e modifica-se historicamente. Dessa forma, é importante criar condições para seguir esse desenvolvimento, fazendo-o retornar aos seus estágios iniciais para identificar os principais pontos constituintes da história dos processos.  Explicação versus descrição – a compreensão de que “A mera

descrição não revela as relações dinâmico-causais reais subjacentes ao fenômeno” (p. 82) é o que levou à necessidade de desenvolver uma análise que propõe revelar a gênese do comportamento e suas bases dinâmico–causais, ou seja, a essência dos fenômenos (abordagem genotípica) e não a sua manifestação externa (abordagem fenotípica).  O problema do “comportamento fossilizado” - durante a pesquisa, o

pesquisador deve fazer um esforço no sentido de alterar “[...] o caráter automático, mecanizado e fossilizado das formas superiores de comportamento, fazendo-as retornar à sua origem através do experimento” (p.85), pois só assim é possível o estudo da história do comportamento e do seu processo de mudança.

A partir desses princípios e com as aproximações apontadas por Freitas (2002; 2007), entendemos que a pesquisa qualitativa nos dá a possibilidade de analisar um processo e não apenas etapas ou momentos recortados. Essa questão é crucial, ao considerarmos os princípios metodológicos da pesquisa sócio-histórica. De acordo com o próprio Vigotski (1996, p.85-86): “estudar alguma coisa historicamente significa estudá-la no processo de mudança: esse é o requisito básico do método dialético.”

Percebemos que a partir da aproximação com o campo, preconizada na pesquisa qualitativa, o pesquisador tem a oportunidade de observar esse processo, porque além de se aproximar do seu objeto de pesquisa, terá condições de gerar conhecimentos a partir dessa realidade (CRUZ NETO, 2004).

De acordo com Freitas (2002), na pesquisa qualitativa de cunho sócio- histórico partimos de uma imersão no campo, inicialmente norteada por um objetivo central e questões orientadoras, que podem ser acrescidas de outras que ajudarão na compreensão da situação estudada. Além disso, a autora complementa que essa imersão serve para que o pesquisador se familiarize com as situações e pessoas estudadas, mediante observações e contato direto com os sujeitos, além da coleta de dados qualitativos que descrevam pormenorizadamente essas pessoas e situações. Araújo e Moura (2008, p.91), corroboram essa perspectiva, afirmando que devemos “[...] considerar a hipótese de que, ao fazer a atividade, o sujeito se revela e que a qualidade dessas ações depende de sua finalidade, do contexto, das interdependências”.

Dessa forma, podemos avançar na análise desvelando os fenômenos e não apenas observando-os de maneira superficial e imediata, ou seja, analisando o processo sócio-histórico que os constituíram, apreendendo o concreto em toda a sua diversidade e contradição ao considerar o objeto estudado na sua especificidade e na sua totalidade (IBIAPINA, FERREIRA, 2005).

Assim, por estar inserido no contexto estudado, o pesquisador passa a fazer parte do processo da pesquisa; suas impressões, sentimentos, interpretações, enfim, sua subjetividade, ficam registrados e compõem os resultados a serem analisados (FLICK, 2009). Para Manzini (2008), a modificação do ambiente que o pesquisador provoca quando de sua entrada na escola para participar como observador e parte integrante do processo é justamente um dos pontos fortes da pesquisa qualitativa na área da educação.

Esse entendimento é outro ponto crucial em se tratando da pesquisa sócio- histórica. De acordo com Freitas (2002; 2007), a produção do conhecimento ocorre em um processo dialético, mediado pela relação entre sujeitos, que como tal, se expressam e, portanto, podem aprender de forma compartilhada, gerar conhecimento e se ressignificarem.

Nesse sentido, a pesquisa deve ser direcionada no seu aspecto de intervenção e não apenas de observação dos dados do campo. No entanto, a intervenção, na perspectiva sócio-histórica, não pode se encaixar no seu significado geral, em que alguém (o pesquisador) interfere de forma autoritária e monológica na ação do outro (professor). O sentido que adotamos para a palavra intervenção em nossa pesquisa é o mesmo reconhecido pelo grupo de pesquisa Linguagem, Interação e Conhecimento (LIC), isto é, se aproxima da ação dialógica, de partilha, de ação mediada e de reflexão do pesquisado e do pesquisador durante o processo da pesquisa (FREITAS, 2010).

Nesse sentido, concordamos com Ibiapina e Ferreira (2005) ao identificarmos na investigação colaborativa uma forma de mediação para a concretização de estudos de base sócio-histórica, uma vez que essa modalidade de pesquisa pode oferecer ferramentas compatíveis com um processo de investigação dialética.

Para a autora, a pesquisa colaborativa no contexto da educação é entendida como:

[...] atividade de co-produção de saberes, de formação, reflexão e desenvolvimento profissional, realizada interativamente por pesquisadores e professores com o objetivo de transformar determinada realidade educativa (IBIAPINA, 2008, p.31).

Segundo essa mesma autora, a pesquisa do tipo colaborativa é uma das vertentes da pesquisa-ação emancipatória, que retira o professor do papel de objeto de análise e coloca-o no centro da pesquisa, como sujeito, participando de forma ativa e consciente de todos os seus momentos (IBIAPINA, 2008).

Ibiapina (2008) ressalta ainda que o trabalho na perspectiva colaborativa é democrático, por permitir que todos os seus atores tenham voz ativa e possam refletir sobre o processo em estudo; o pesquisador passa a ser um mediador e o professor constitui-se, além de sujeito da pesquisa, em um colaborador.

Com isto, adotamos um processo mútuo, em que a percepção do professor acerca da sua atuação após reflexões críticas nos âmbitos intra e interpessoais, pode interferir no olhar do pesquisador e vice-versa, gerando a construção de novos saberes a respeito da atividade docente e transformando-a. Nessa direção, os trabalhos colaborativos permitem que os seus partícipes coloquem-se sempre em situação de aprendizes, numa relação de troca uns com os outros. Essa

aprendizagem – mediada pelo outro – incide na ideia de zona de desenvolvimento proximal (ZDP), outra questão importantíssima para a teoria sócio-histórica. Assim, contextualizada na possibilidade de promover a ZDP, a colaboração pode significar uma “[...] ajuda para avançarmos nos nossos processos de desenvolvimento pessoal e profissional” (IBIAPINA; FERREIRA, 2005, p.33).

Com foco nessa possibilidade de desenvolvimento por meio da mediação e transformação mediante a solução de problemas da realidade, nesse caso, do processo de inclusão de um aluno com deficiência na escola regular, e partindo da nossa experiência profissional na área da Saúde, especificamente na Terapia Ocupacional, contextualizamos a proposta de intervenção nesta pesquisa nos moldes da Consultoria Colaborativa.

A Consultoria Colaborativa é uma das formas possíveis de trabalho colaborativo na escola e prevê um modelo de suporte entre os educadores da escola regular e outros profissionais especializados, como terapeutas ocupacionais, psicólogos, fonoaudiólogos e fisioterapeutas (MENDES, 2008; MENDES; ALMEIDA; TOYODA, 2011). Nesse tipo de consultoria, de acordo com Churchley (2006) são valorizados os saberes de todos os participantes e os profissionais especializados são itinerantes, mas dividem com o professor assistente a responsabilidade quanto ao planejamento e a avaliação dos alunos com deficiência, contribuindo com suas habilidades e conhecimentos específicos em uma perspectiva de formação em serviço (ALPINO, 2008).

O que caracteriza esse tipo de consultoria, ainda de acordo com Mendes, Almeida e Toyoda (2011), é a colaboração pactuada entre duas ou mais pessoas, visando à resolução de problemas de forma compartilhada, com o intuito de ampliar o bem estar de uma terceira pessoa. Nesse processo, ambos os atores são beneficiados; o professor tem auxílio para resolver situações complexas da sua realidade e o consultor se mune de maior sensibilidade e habilidade para a solução de futuros problemas.

Ainda sobre as peculiaridades da Consultoria Colaborativa, Mendes, Almeida e Toyoda (2011, p.85) descrevem que:

A consultoria para o professor é um processo de resolução de problema que toma parte num período de tempo e segue determinados estágios. Durante este processo, o consultor assiste o

professor de sala de aula para maximizar o desenvolvimento educacional dos estudantes. A consultoria enfoca um problema de trabalho atual do consultado. O processo é diferenciado tanto das supervisões quanto do aconselhamento, porque o intercâmbio é colaborativo, havendo uma ênfase no papel igualitário do consultado na contribuição para a resolução do problema, e o consultado está livre todo o tempo para aceitar ou rejeitar as soluções recomendadas durante a consultoria.

Foi com base nessas concepções de responsabilidade compartilhada na construção do conhecimento que desenvolvemos a nossa pesquisa. Nesse sentido, como optamos por um corpo teórico pautado na Psicologia Sócio-Histórica e na Clínica da Atividade, utilizamos procedimentos metodológicos provenientes das pesquisas qualitativa e colaborativa acrescidos daqueles específicos desta última corrente teórica, com o intuito de analisar a atividade docente de uma professora implicada em um processo de Consultoria Colaborativa para a inclusão escolar de um aluno com paralisia cerebral.

Com essa perspectiva, além da entrevista reflexiva e da observação colaborativa, realizamos videogravações da professora em momentos de aula, das quais extraímos episódios para o procedimento de autoconfrontação simples, que serviram como base para o processo de reflexão e transformação da prática.

No tópico a seguir, descreveremos todos os procedimentos utilizados na produção dos dados.

5.2 Os Procedimentos para Produção dos Dados: estabelecendo as relações