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Cochichos inacabados sobre a trajetória da pesquisa e do pesquisador

2 VOZES DO ENVELHECER E DA VELHICE

2.5 Cochichos inacabados sobre a trajetória da pesquisa e do pesquisador

“É inútil procurar encurtar o caminho e querer começar, já sabendo que a voz diz pouco, começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via crucis é um descaminho; é a passagem única. Não se chega senão através dela e com ela.

Clarisse Lispector30

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Ao rever minha trajetória reconheço-me e ao mesmo tempo me estranho nela. Com o que é familiar, me emociono. Vêm à tona o humano, e por vezes, experimento novamente as lágrimas no que foi vivido como dor ou como afetos de alegria. Rememoro afetos de alegria, bons encontros e instantes de prazer que nesse caso superaram os afetos de tristeza, o amargor das desilusões e sofrimento pelos investimentos que se perderam no caminho sem gerar uma conquista efetiva. Mas é o estranhamento nesta trajetória, que traz indagações e busca a construção de sentido sobre o espaço vivido. É o estranho dentro de mim que provocou e provoca o exercício de buscar mais conhecimento, e que impulsiona a pesquisa que foi se desenhando no projeto que se será aqui detalhado, e que continuará seguindo seu rumo e sua vocação de obra aberta.

O cochicho que consigo fazer sobre a minha trajetória nesta pesquisa:, tentando dar um contorno teórico e afetivo é que se o sentido que consegui atribuir à minha história pessoal e aos conteúdos psíquicos da minha vida afetiva , que conduziram inconsciente e conscientemente minha escolha pelo trabalho com idosos

foi que “na presença ausência do olhar da minha mãe os velhos me viram primeiro, e

eu simplesmente respondi ao seu olhar”, o lugar que me sustenta como pesquisadora

inquieta sobre essa temática é o desejo de empreender projetos, estudos e pesquisas, que busquem compreender os caminhos do envelhecimento, como caminhos biopsicológicos, históricos, políticos e culturais, mas sobretudo como um caminho para alcançar uma visão mais ampliada do homem sobre si mesmo, um caminho para a alteridade e para a construção de uma ecologia humana, necessária para reduzir as desigualdades sociais e contribuir para relações mais justas, capazes de favorecer bons encontros entre os homens, nos seus diversos contextos e nas relações intergeracionais. Sobretudo, para a potencialização dos espaços de participação política das pessoas idosas, num contexto que propicie não apenas a garantia de direitos e o exercício da liberdade de expressão, mas que promova o reconhecimento dos processos de dominação, e a contenção desse processo pela via do exercício da cidadania e pelo acolhimento da manifestação das diferenças e da heterogeneidade de um povo.

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A escuta das falas das mulheres idosas sobre si mesmas e sobre o processo de participação política, configurou-se um ponto importante na produção de alguns resultados sobre a sua forma de participação, como veremos no decorrer deste texto. Isso porém não apresenta algo extraordinário, uma vez que é na ressignificação do olhar sobre si mesmo, sobre os outros e sobre a realidade que são propiciados novos devires e novas formas de existência na velhice. Entretanto, contribuiu para reafirmar o conceito de homem como sujeito de afetos, histórico e social, cujas transformações são observadas à luz daquilo que produz no movimento simultâneo de transformar a si mesmo e a própria realidade. Isso tira o foco de um pensamento sobre a velhice, como algo dado, pronto, e sobre o velho como uma concepção universal, para pensar mulheres que estão se desenvolvendo ao longo do seu processo vital e de participação política. Considerando o autoconhecimento a autovalorização e simultaneamente o impacto que causam em si mesmas e na sociedade e que a sociedade lhes causa ao longo desse processo.

Deste modo, a pesquisa foi um caminho que se ofereceu para possibilitar não apenas o percurso dos cochichos de mulheres idosas se transformando em voz audível. Ou o seu movimento ao se deslizar da coxia, dos grupos de convivência, para o palco da vida, dos conselhos, dos fóruns, das instâncias mais formais de participação política, mas sobretudo para possibilitar ao pesquisador avaliar a sua forma de escutar essas mulheres e de produzir ciência com a responsabilidade de quem se implica não apenas com os resultados do que foi produzido, mas sobretudo com o processo de produção. Ou seja, com uma ciência que opera em favor das humanidades e da construção de novos modos de ser e se fazer humano.

Volto dessa reflexão com a sensação de que ainda há muito a aprender e a construir nesta trajetória da ciência, a despeito de já ter realizado essa pesquisa. Outros trabalhos são apontados na gerontologia, não apenas na consolidação dos direitos da pessoa idosa, mas sobretudo da velhice como um lugar possível de realizações e de felicidade a ser vivido pelas pessoas. Neste caso estudar a velhice requer do pesquisador a desconstrução de lugares instituídos, bem como a sua acuidade para descobrir novos arranjos sociais que possibilitem a construção de novas subjetividades. Isto implica, em uma análise científica, que explicite a velhice como uma construção cultural dinâmica e não como algo naturalizado. Isso envolve a

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escuta de outras vozes, de velhices possíveis, que evidenciam a sua heterogeneidade cultural. Esta pesquisa científica chama a atenção para as falas das idosas como sujeitos e para seus cochichos como vozes audíveis buscando evidenciar e negar aquilo que se apresenta de pronto como natural e familiar. Tal como aponta Luiz Cláudio Mendonça Figueiredo, ao discutir a alteridade e as ideias de Ogden no texto “Uma complexa noção de voz”. (1998)31 :

“A voz, a voz viva, bem entendido, é “ao mesmo tempo” o que de mais próprio pode brotar do sujeito, mas é, antes disso, o que o possibilita e, em seguida, [...] o remete para longe de si, para o momento paradoxal de um novo conhecimento de si pela via da desfamiliarização. (FIGUEIREDO, L.C.1998).

31 In: FIGUEIREDO, Luiz Cláudio M. A complexa noção de Voz. Revista Brasileira de Psicanálise. São Paulo, Órgão Oficial da Associação Brasileira de Psicanálise 32(3): 605-609

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