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Em pouco tempo, o Kuduro como estilo de música invadiu os meios de comunicação de massa em Angola e se tornou objeto de consumo cultural mais amplo, principalmente entre os jovens. Embora suas primeiras manifestações tenham ocorrido a partir do início da década de 1990, nos últimos anos esse gênero não se limitou aos circuitos negros ou populares e

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Fonte: Caio, 29 de Maio de 2012, Luanda-Angola, em arquivo digital 60 Fonte: Caio, 15 de Abril de 2013, Recife-Brasil, em arquivo digital

passou a fazer parte do campo de preferências também dos jovens de classes médias (não só de Luanda, mas de Portugal também). Essa reconfiguração é de suma importância para não incorrermos numa leitura simplista do fenômeno e chegarmos no ―mistério‖ que Vianna (1995) observou no samba brasileiro.

O Kuduro emerge da periferia, mas sob o contato61, seja com o próprio centro ou mesmo com elementos difusos do processo de globalização. De forma semelhante ao que seria identificado no samba62, existe uma tensão na relação entre brancos e negros em Angola.

Alguns discursos vão reivindicar essa resistência heroica dos mussekes, mas, por outro lado, existem aqueles que buscam mostrar esse ―diálogo cultural‖ centro local-periferia-centro global. Caso assumisse essa versão da resistência sem contatos ou negociações, teria que lidar com o mesmo mistério identificado por Vianna (o que, definitivamente, não é o caso).

Nesse contexto, a música de Angola processa tal dinâmica trilhando caminhos particulares onde as tecnologias foram manipuladas de modo astuto e orientadas, em certa medida, por uma perspectiva de autonomia (reconheço, como tese, que essa apropriação gera graus diferenciados de autonomia). Essa conjunção de novas tecnologias coincide, em Angola, com uma mudança social significativa, haja vista o adensamento da cidade de Luanda, a transformações das relações políticas, uma maior liberalização econômica, entre outras (WILPER, 2011). É importante fazer esse registro da cidade que ultrapassa o Estado, uma vez que, segundo Deleuze, a cidade seria um correlato da estrada, ou seja, ―ela só existe em função de uma circulação e de circuitos; ela é um ponto assinalável sobre os circuitos que a criam ou que ela cria. Ela se define por entradas e saídas, é preciso que alguma coisa aí entre

61 Existem discursos que vão sinalizar a emergência do kuduro no centro, e não na periferia de Angola

62Hermano Vianna, autor de O mistério do samba, concentra seus esforços na compreensão desta passagem do samba de ―uma prática social discriminada‖ a ―símbolo artístico e de identidade nacional‖.A reconstrução deste processo não é consensual e poderíamos lançar dois paradigmas de referência: ―o da repressão e o da concepção tópica‖. Enquanto o primeiro paradigma reforçaria a vitimização e os cerceamentos destas práticas operadas por negros, a segunda sublinha um aspecto estratégico, isto é, de uma prática invisível a determinados grupos (classes dominantes). Desta forma, o samba se preservaria pela astúcia de seus agentes. A tese de Vianna aponta para uma ruptura com a historiografia tradicional sobre o samba, uma vez que ele observa o ―interesse e apoio à música popular por parte de membros de elite‖ (SANDRONI, 2012, p. 113). Sandroni frisa que estaria de acordo com a tese geral do livro: a aceitação daquele gênero, nos anos 1930, como ‗música nacional‘, foi ‗o coroamento de uma tradição secular de contatos entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras‖ (SANDRONI, 2012, p. 113). Trata-se, portanto, de um ―caminho‖ que minimiza algumas visões românticas de emergência – mitológicas e heroicas. Discorrer apenas sobre esse processo de resistência e combate implicaria desvendar um ―mistério‖. Elucubrar sobre possíveis ―diálogos culturais‖, mesmo que assimétricos, nos permitiria suplantar este mistério (investigação com apelos ficcionais e dramáticos) e nos provoca no sentido de buscarmos os contatos, bem como a complexidade e heterogeneidade dos grupos sociais. Nem todos os policiais reprimiam, nem toda a elite ignorava a prática social do samba. Como bem sabemos, o estigma e a carga simbólica negativa leva a certos ocultamentos de práticas. Isso não significa dizer, no entanto, que os indivíduos não participavam delas. Esse é um dos grandes desafios da pesquisa social, afinal, lidamos com ―objetos‖ que falam, dissimulam, interpretam e fazem escolhas.

e daí saia. Ela impõe uma freqüência‖. (DELEUZE; GUATTARI, 1994, p. 440). Segundo Mejía, a cidade não contém apenas a dimensão política, mas a micropolítica também.

O espaço urbano não só é atravessado por segmentos binários: classes sociais, gêneros, gerações, espacialidades, etc., ele implica também uma função subjetiva. As cidades nos interpelam, acionando e modelizando intensidades, perceptos, suvenires. A aventura própria das cidades consiste em produzir um espaço feito de exterioridades, compreende a experimentação ampliada e intensificada da alteridade, um devir estrangeiro de cada um, um interstício subjetivo (...) As cidades conjurariam e antecipariam a forma-Estado possibilitando uma aventura que fugiria à axiomática capitalista (MEJÍA, 2012, p. 1-2).

Essa autonomia que apresento como argumento pode ser defendida a partir da conformação de cartografias anteriormente não previstas pela indústria do entretenimento (mussekes) e pela capacidade de aprendizagem desses sujeitos que implicam no manejo extremamente criativo das ferramentas tecnológico-digitais. Seus principais promotores, oriundos dos estratos menos favorecidos da sociedade angolana, aos quais sempre seria imputado o estigma de massa (ADORNO, 1994) e, por isso, o papel unicamente de consumidores (passivos, neste caso) contrariaram essa lógica ao se tornarem produtores de conteúdos. Chamarei, a partir daqui, esse fenômeno de “trans-borda”, uma vez que a imagem que percebemos não é aquela cristalizada pelas assimetrias culturais, isto é, da inovação e produção que parte do centro para periferia, mas de um volume que sai borda para inundar ou respingar no centro. O que está sugerido aqui, por consequência, é um ambiente de instabilidade, porém de criatividade e enfrentamento à exclusão e concentração, que marca o mercado musical tradicional das indústrias culturais.

Descrevendo tão criativo cenário, cabe-nos refletir mais sobre seus agentes e pensar sobre como se estruturam suas lógicas, motivos e logísticas. Segundo Certeau, ―é preciso interessar-nos não pelos produtos culturais oferecidos no mercado de bens, mas pelas operações dos seus usuários; é mister ocupar-se com as maneiras diferentes de marcar socialmente o desvio operado numa dada prática‖ (CERTEAU, 1994). O teórico volta-se para a ―proliferação disseminada‖ de criações anônimas e ―perecíveis‖ que irrompem com vivacidade e não se capitalizam, mas usam de astúcias nas práticas.

Certeau é bastante influenciado por Wittgenstein, principalmente se lembramos das reflexões acerca dos ―jogos de linguagem‖. Para Wittgenstein (2000), seria impossível pensar num ajustamento único entre a palavra e significado, já que o uso da palavra é sempre articulado. Essa articulação se daria em jogos de linguagem específicos. Por esse motivo,

seria necessário atentar para os possíveis movimentos que nos habilitam ou permitem o jogo. O consumo seria um processo de apropriação que, ―ao esboçar uma teoria das práticas cotidianas‖, Certeau tenta superar a compreensão dessas apenas como resistências pontuais, mas também como um processo contínuo e não isolado. Para tanto, ele insiste sobre o caráter fundamentalmente imprevisível dos usuários que não param de decompor e reprogramar os serviços e artefatos tecnológicos que lhes são propostos. Como o mesmo admite, há um sujeito que não se limita às "instruções de uso" ou a alguma moralidade imposta e distante da realidade. Decerto, Certeau acertou ao enunciar que:

a cultura articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou controla a razão do mais forte. Ela se desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de violências, a quem fornece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e compromissos mais ou menos temporários. As táticas do consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar então em uma politização das práticas cotidianas (CERTEAU, 1994, p. 45).

Este sujeito resiste na prática ou confronta por posição, em última instância, criando alternativas para dirimir e amenizar efeitos lesivos como, por exemplo, o baixo poder de compra ou capacidade de consumo. As práticas, neste sentido, podem se tornar subversivas ou, nos termos de Deleuze e Guatarri, podem ser vistas como micropolíticas, isto é, aquelas que não pretendem devir uma ciência nem conhecem a cientificidade ou a ideologia, mas apenas agenciamentos maquínicos de desejo e coletivos de enunciação (DELEUZE; GUATTARI, 1994).

Michel de Certeau mostra, por este ângulo, como as práticas dos usuários marcam um distanciamento em relação ao ―conteúdo programático‖ que busca lhes impor as tecnocracias e as indústrias culturais. Pelo viés das engenhosidades, da apropriação indébita, as pessoas forjam uma maneira própria de caminhar nos universos construídos pelas indústrias da cultura ou das tecnologias da comunicação. Os usuários manifestam uma forma de resistência (mas não como fenômeno isolado e esporádico, mas como próprio da dinâmica do fazer), moral e política. Quando por diversas vezes insisto numa ideia de fenômeno não significa anunciar ou acachapar a compreensão de particularidades e práticas cotidianas. Neste sentido é que busco partir para as análises locais, tendo em vista a compreensão de que o desenvolvimento das práticas musicais, embora tenha elementos contextuais e artefatos comuns, não pode ser vistos como ―os mesmos‖.

Nessa acepção, o aparecimento e uso das inovações técnicas, sem as quais seria impossível o fenômeno do kuduro angolano (barateamento dos custos de produção), possibilitou a difusão do estilo musical numa velocidade vertiginosa por meio de ferrramentas como YouTube e outras plataformas de compartilhamento, promovendo outra forma de produção musical. Bruno M revelou em entrevista que ―os kuduristas viajavam por aí fazendo videoclipe. O vídeo clip promove muito a própria música... Aliás, o estilo que mais investe em imagem é o kuduro aqui em Angola e que mais faz videoclipes é o kuduro‖. (BRUNO M., 2012)63

Como pude constatar, estes espaços permitiram uma audiência mais ampla e uma comunicação mais direta entre angolanos e pessoas de outras nacionalidades. Apesar dessas estratégias de produção ser levadas a cabo, não devemos deixar, porém, de perceber que se trata de um processo árduo, cheio de entraves, tensões e vulnerabilidades. Entretanto, essas interações em rede permitiram a amplificação das vozes angolanas (sobretudo as do mussekes), como descobrimos na fala do kudurista Sacerdote em entrevista realizada em maio de 2012.

O uso da internet tá começando, pois nem todo mundo tem acesso. Internet aqui é pra quem estudou, pra quem frequenta o ensino acadêmico. Vai lá no São Paulo, nas senhoras, na zungueiras... já ouviram dizer sobre internet, mas aquilo talvez só no paraíso vai encontrar. Então ainda não é pra todos. Porque muito produtores conhecidos nem sequer ainda tem um e-mail. Foi com a internet que eu conheci pessoas cá e a partir da internet começamos esse intercâmbio de fazer música. Eu gravava um instrumental e mandava via internet na altura de 2007 ou 2006 até. Mandava uma cena por e-mail ―ouvisse essa? Tá fixe? Vamos fazer?‖. Foi a partir dali que eu consegui fazer o trabalho com o projeto batida em Portugal. Foi por causa da internet que eu consegui fazer tudo. Num lugar que as pessoas não tem muito acesso a informação, a internet... Eu tinha que ir no Cyber, eu tinha que ir localizar alguém que na casa tinha internet, no vizinho... foi a partir do meu vizinho que eu fazia tudo isso. Não tinha modem nem tinha internet na minha casa. Fizemos todos os contatos a partir da internet. A divulgação de meus trabalhos é graças a internet. Pra mim a tecnologia chegou pra mim no tempo certo, no momento que eu precisava e no momento que eu preciso ter agora. Mas nem todos tem essa facilidade. Nem todos tem essa possibilidade. Muitos já tiveram contato com pessoas da França, pessoas de não sei aonde, mas não conseguiram estreitar e continuar com essa as relações por causa da comunicação (Entrevista inédita concedida a Caio, 28 de Maio de 2012, Luanda - Angola, em arquivo digital).

É interessante observar que o Kuduro surge às margens de um sistema. Conquanto, desenvolveu-se uma maneira inovadora para fazer circular a música através de um circuito original que é marcado pela informalidade e uso largo de tecnologias digitais, e que, por sua

vez, alcançou cartografias imensas em dias, inventando mapas cheios de atalhos. Os empecilhos, portanto, geram astúcias e indisciplinas como a música partilhada por bluetooth64, pelos candongueiros e zungueiros.

Reforçamos, por outro lado, que se trata também de um compartilhamento de ideias, além do registro sonoro. Os agentes do kuduro (público, artistas e pessoal de apoio) produzem textos, ideias, afetos, memórias, identidades, experiências e visões de mundo, ou seja, existe uma elaboração discursiva também publicada que permite uma reconfiguração do social.

A preocupação desta tese, em vista disso, sinaliza para as tensões que perpassam essas construções simultâneas de identidades – artista e público - que passam por elaborações discursivas que auxiliam processos de identificação e legitimação de práticas culturais em contextos periférico-urbanos. Essa produção musical e de sentidos é ventilada por aqueles que aprenderam a criar estratégias menos por opção, mas, sobretudo, por necessidade. Este cenário os levou a uma logística funcional, leve e auto-suficiente em sua produção, sempre orientada por uma economia de meios que reinventa seus procedimentos dia-a-dia, tecendo seu futuro no cotidiano. Assim, tomando as transversais dos caminhos tecnológicos que lhes eram minimamente oferecidos – crackeando softwares em vez de comprá-los, usando equipamentos de segunda mão – foi se inventando essa produção. Além disso, faz-se necessário registrar que o processo de aprendizagem que possibilita o uso dos artefatos também é favorecido pelo material disponível na internet, como destaca o DJ Devictor: ―No meu caso, eu tomei na internet. Eu vou lá sempre. A cada dia sai um programa novo, eu vou investigando. Tem aulas agora no YouTube, aula do programa X, aparece explicando e eu vou aprendendo‖ (DEVICTOR, 2012). Os kuduristas, nessa perspectiva, ativaram e criaram grupos, pensaram e passaram a gerir pequenos estúdios e, neste momento, o Kuduro atingiu seu momento de realização plena, autônoma, leve e funcional.