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Artigo completo disponível em http://edant.clarin.com/diario/2003/02/16/c-00811.htm 136 Disponível em: http://www.fotocumbia.com/fotos/18/4282.jpg. Acesso em: 15/01/2015

Além disso, os usos do corpo nas performances são importantes para a configuração do ―desvio‖ ou do incômodo provocado. Os gestos que insinuam práticas sexuais, o estímulo ao consumo de drogas lícitas e ilícitas é indissociável dessa configuração discursiva que os grupos assumem. Não obstante, como são bem observadas por Semán, as melodias suaves (percepção dos agentes da Cumbia) ou melosas (para alguns críticos) suavizam o que poderia ser uma afronta descabida e inapropriada. A sonoridade, portanto, diluiria ou mascararia, em alguma medida, o seu caráter transgressor.

Para tentar compreender isso, Semán adverte que é preciso estar dentro dessa ―comunidade discursiva‖ ou ―comunidade imaginada‖, isto é, embrenhar-se pelos sentidos e contextos de circulação e apropriação da Cumbia Villera. Desta forma, para Semán, poderíamos problematizar os aspectos que sinalizam para a reprodução de desigualdades sociais, como também, dentro de um contexto interpretativo específico, perceber elementos de ―emancipação‖ ou empoderamento.

Neste sentido, muito atento às abordagens metodológicas que evidenciam o ―lugar de fala‖ do investigador, o antropólogo Pablo Semán percebe que a sua aproximação com a Cumbia é, fundamentalmente, de um acadêmico de classe média que fora socializado num ambiente onde a música deveria assumir um compromisso social e estético. O autor vai localizar o debate em torno das questões de gênero, por exemplo, como uma situação que demanda um deslocamento e um aprofundamento nas comunidades discursivas, sob o risco de assumir uma leitura que relativiza a misoginia. Ao localizar as suas próprias faculdades, Semán aponta que outras leituras também são críveis, além daquela que percebe o juízo de mulheres numa situação degradante. Diz ele que ―Lo que es obviado em las percepciones escandalizadas de la Cumbia Villera es la activación de uma agenda sexual, el empoderamiento de las mujeres en cuanto agentes de placer propio y de sus partenaires, poseedoras de una iniciativa y un interés legítimos‖ (SEMÁN, 2012, p. 154). O que em princípio poderia ser lido numa chave de reprodução de imagens estereotipadas, um estilo reprodutivo de desigualdade gênero e/ou de coisificação da mulher, ganha lentes que permitem também a observância de discursos numa perspectiva de construção de autonomia. Como coloca Martín, esta mulher é construída em contraste com a lógica tradicional que se

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Disponível em: http://www.clarin.com/espectaculos/Amo-senorPablo-Lescano-Luna- mundialista_CLAIMA20100626_0098_16.jpg. Acesso em: 15/01/2015

limita ao papel passivo, ou seja, a mulher que aparece na poética villera seria aquela que deseja e tem papel ativo nas relações afetivo-sexuais.

O que fica cada vez mais claro, e já fora mencionado acima, é que se desejamos compreender o fenômeno das músicas de periferia, devemos considerar um material discursivo mais amplo, uma vez que a análise focada apenas nas letras não daria conta dos sentidos compartilhados nessa experiência de produção musical e construção identitária. Visualizando esta particularidade, Semán admite que:

fijarse en letras que las personas no escuchan supone una generalización indebida de las concepciones del mundo de los analistas (que en general no bailan) y presupone la universalidad de concepciones intelectualistas del mundo. Lo que ocurre con la Cumbia Villera impone una síntesis: son los propios cultores del género (específicamente, los oyentes) los que, sea por adhesión, sea por distanciamiento, enfatizan hasta cierto punto el valor de las letras, adicionándolo al del baile (SEMÁN, 2012, p. 156).

Encontraremos, pois, argumentos que destacam nas letras a banalização da violência, as ilegalidades e os desvios operados discursivamente, como também atinaremos que, esse mesmo material discursivo, serve-nos para a compreensão de outra sorte de elementos. Na outra ponta, portanto, evidenciando o caráter disruptivo – mas ambíguo – podemos extrair desses textos o brado de repulsa, a não concordância, ou simplesmente outra forma de contar as histórias (que também são outras).

Neste sentido, ampliando o olhar para as práticas discursivas, é interessante como a produção bibliográfica argentina destaca a atividade produtiva, isto é, o trabalho como variável definidora dessa geração. Míguez constrói um argumento que procura demonstrar a relação entre a violência e seus discursos com o contexto, experiências e ações cotidianas. Segundo Míguez (2010), "los Pibes Chorros" são um produto dos fenômenos sociais que emergiram no final da década de 1970 e se agudizaram nas décadas posteriores.

Ao investigar a categoria ―trabalho‖, recorrente nas investigações sobre a cúmbia villera, Martín lembra que esse comportamento não disciplinado ou desviante está inscrito num conjunto amplo de acontecimentos – que incluem as mudanças estruturais que apresentamos acima – que provocam a elaboração de um discurso contrastante em relação ao binômio ideal família-trabalho. Segundo a autora, a Cumbia Villera atormenta a cultura do trabalho e oferece um novo horizonte de valores. Em comunhão com Martín, Míguez deixará claro que essas experiências transgressoras evocadas pela Cumbia também constróem um

sistema de valores, ou seja, os apegos, moralidades e convenções da sociedade argentina são questionadas por outros modelos elaborados pelo mundo onde a Cumbia se inscreve.

En la experiencia de los jóvenes delicuentes esos ámbitos son el barrio y la calle, vistos fundamentalmente como espacios en donde estabelecen vínculos de amistad sumamente significativos para ellos. Esas amistades son en general con otros chicos de la mesma edad o, as veces, con individuos mayores. Es en ese espacio de sociabilidad donde se generam muchas veces sistemas de valores, hábitos y actitudes que se relacionan con la transgresión y el delito (MÍGUEZ, 2010, p. 71)

O trabalho, lido noutra chave ou modelo de interpretação, pode ser compreendido como alienante, atividade de exploração e, por essa mesma codificação, adotada por sujeitos que são qualificados como ―otários‖. Neste sentido, a perspectiva do trabalho dignificante é ressignificada a partir da ótica dos ―cumbieros‖ e não se apresenta como a única alternativa, isto é, são propostas outros sentidos na poética villera, inclusive a exaltação do roubo como alternativa sagaz. Segundo Martín, ―un quiebre en la concepción de la indisociabilidad entre

trabajo y ocio, del criterio de rendimiento como principio ordenador del tiempo y del espacio y del principio de propriedad de los medios de producción y de consumo‖. (MARTÍN, 2008,

p. 6). Logo, o trabalho, a poupança e o sacrifício seriam, senão substituídos, relativizados pelo valor que assume o delito, o consumo e o ócio.

Essa é uma questão fundamental e está associada à imagem primeira que temos da Cumbia Villera, isto é, aquela do sujeito consumidor e defensor do uso do álcool e outras drogas. Essa experiência com as drogas lícitas e ilícitas estão relacionadas a percepção do tempo e do espaço, já que o uso dessas substâncias não é regrado pela atividade disciplinadora do trabalho. Essa prática ―desviante‖ conduz a outra prova do tempo, ou seja, desfavorável às condições impostas pela escola e pelo trabalho e, uma vez incorporado esse aprendizado do ócio, institui-se uma temporalidade avessa. Martín adverte que:

No debemos interpretar esto, sin embargo, como una romantización del desempleo o como una situación deseada por los villeros. De lo que está dando cuenta la música es de que el trabajo no es más la parte naturalmente más importante y ordenadora de la vida cotidiana, ni el soporte principal de la construcción de las masculinidades en los barrios más pobres. De las letras de la Cumbia Villera emerge la imagen de otro tipo de configuración de prácticas y valencias (MARTÍN, 2008, p. 8).

Semán percebe a necessidade de abranger o fenômeno em sua multiplicidade de situações e sentidos. A partir do exagero weberiano, ou melhor, da construção de tipos ideais, Semán reforça que existem perspectivas possíveis e antagônicas. De um pólo observamos a degradação. No extremo oposto, a Cumbia Villera apareceria como expressões políticas

idealizadas. Compreendo que devemos caminhar pelo contraditório ou dialético, embora o tipo ideal weberiano seja um recurso heurístico importante. Como afirma Semán:

la interpretación del sentido con que circulaba la Cumbia Villera esta más acá de los simplismos (¿revolucionaria o revoltosa?): las expresiones de la Cumbia y el sentido que les daban sus oyentes no pretendían ser una denuncia programática asociada a la secuencia diagnóstico- propuesta-propaganda de um grupo político. Pero eso no quiere decir que se sumergieran en un plebeyismo autodegradante, o que se las debiera rechazar desde el punto de vista de un ciudadano de clase media alta (que comete otras ilegalidades pero repudia estas). La exposición cruda tenía el valor ambiguo de denunciar lo que estaba ocurriendo, de hablar con ironía respecto de las exigencias de buen comportamiento por parte de una sociedad que inducía al mismo tiempo a quebrarlo, de mostrar orgullo por una vida imaginada como lujuriosa en el uso de drogas, que, a pesar de la marginalidad, era posible. En ese sentido, que exige ampliar nuestras nociones de protesta, la Cumbia Villera es una música de protesta (SEMÁN, 2012, p 158-159)

Voltamos aqui à complexa discussão em torno das novas (re) significações que admite o conceito amplo de resistência. Este poderia assumir, a depender do crivo, uma grande quantidade de práticas, que compreenderiam aquelas mais evidentes dos movimentos sociais ou mesmo estas que aqui apresentamos. Ao alargarmos essa compreensão, seria possível admitir as práticas dos ―pibes chorros‖ como resistentes ou, mais propriamente, como espaços simbólicos de contraposições138 político-culturais. O esforço desse capítulo, portanto, sugere, principalmente, o entendimento do campo de forças engendrado pela Cumbia Villera. Não bastaria, pois, avaliar o texto das letras, pois perderíamos as condições de produção e consumo deles (tão ou mais resistentes). Diz Alabarces:

Exige la construcción de una lectura compleja que no puede reducirse a la superficie del texto poético –partiendo del presupuesto de que las letras de las canciones populares suponen una estructuración poética del lenguaje, pese a las opiniones respecto a su mayor o menor calidad estética–. Debe además abarcar lo musical, la puesta en escena, los circuitos industriales y comerciales –es decir, las condiciones de producción del mercado de la cultura y las relaciones de producción cultural–, los espacios de realización, los rituales de consumo, las prácticas de los consumidores (ALABARCES, 2008, p. 4).

É neste sentido que Alabarces irá construir uma ideia de ―resistência por posição‖ ou ainda um ―ethos antirrepresivo‖, haja vista a comunidade discursiva que se conforma a partir da classe e espaços sociais compartilhados. Segundo o autor, ―el plebeyismo de la Cumbia significa una máxima distancia de las clases hegemónicas, que a su vez la hacen objeto de

operaciones de estereotipización –justamente a los efectos de capturar y reduzir esa distancia (ALABARCES, 2008, p. 7).

Apesar de defendermos essa posição, não se trata de uma leitura consensual. Para Svampa, a Cumbia Villera não poderia ser vista como um movimento de resistência cultural, pois não se configura como expressão reivindicatória de sentimentos de injustiça e desigualdade social. Apesar de veicular temas "das classes subalternas", constrói-se um discurso de valorização que neutralizaria a violência operada pela desigualdade. Isso poderia, de alguma forma, contribuir para a legitimação de um ―status quo‖ (SVAMPA, 2005). Apesar de Svampa apresentar outra possível leitura do fenômeno, entendo que uma avaliação como esta deixa de perceber que a manutenção dos privilégios das elites, no bojo de uma perspectiva neoliberal na qual a maiorias sociedades ocidentais – e modernas – estão inseridas, perpassam o mascaramento ou apagamento das periferias. A manutenção da desigualdade social, do Status quo ou de uma ordem só faria sentido a partir do momento que o discurso dos privilegiados ou ideologia dominante fosse capaz de mascarar ou falsear a realidade. Sustentar-se- ia, pois, a ideia da meritocracia, ou seja, de que os pobres precisam lutar para conquistar os privilégios das elites.

Neste sentido, entendemos que, contra uma discursividade dominante que pleiteia a manutenção da ordem, a Cumbia Villera traz à tona a tragédia, a ―experiência tática‖, a confrontação ou, em última instância, a ―resistência por posição‖. A valorização ou, no mínimo, a apresentação da periferia surge como afronta. Como lembra Foucault, a estrutura trágica a partir da qual se faz a história do mundo ocidental não é nada mais do que a recusa, o esquecimento e o acaso silencioso da tragédia. (FOUCAULT, 1978). Valemo-nos, pois de uma escolha ―positiva‖ que nega a complexidade, a incerteza e a desordem. É necessário refletir acerca dessa condição de existência afogada pela razão tão ventilada pelo iluminismo. Indo de encontro ao legítimo e ao válido, não se trata de uma crítica acidental, uma vez que, lidando como uma ―estrutura de sentimento‖ (WILLIAMS, 1979) podemos alargar uma visão programática de política. Não se trata, pois, de um movimento social ou de uma expressão militante, mas de um agenciamento coletivo nos termos de Becker ou de uma estrutura de ―sentimiento‖ – villero.

Foto 26 - Pablo Lescano – Líder do grupo ―Damas Gratis‖ e um dos criadores do gênero Cumbia Villera139