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CAPÍTULO I Repertórios clássicos e novos acordes dissonantes

1.7 O gosto musical: o doce e o amargo da periferia

Entendo que não poderíamos realizar a discussão da tese a contento sem ao menos fazer menção às estratégias arbitrárias de valoração da música que, por sua vez, se vinculam à ideia do gosto. A música de periferia goza de pouco prestígio nas esferas artísticas, bem como são classificadas pelas instâncias de legitimação e consagração como música de mau gosto ou de ―pobreza estética‖. Neste sentido, como temos a intenção de pensar o fenômeno como prática discursiva, faz-se necessário pensar as condições de produção e consumo desses textos (ou ideias). Em suma, existe um forte preconceito relacionado à forma de transfiguração proposta pela Cumbia Villera e pelo kuduro, para nos determos nas movimentações em evidência nesta pesquisa. Embora a questão do ―gosto‖ já tenha sido mencionada acima (sobretudo quando falamos de Adorno), compreendo que algumas abordagens mais recentes do estudo dessa relação música-sociedade estão oferecendo recursos teóricos distintos para a configuração dela.

Ao sugerir esse mote, eclodem como imperativas as contribuições de Pierre Bourdieu. Segundo este autor, agentes e grupos são distribuídos em função de sua posição de acordo com dois princípios de diferenciação, isto é, capital econômico e cultural. Ao ser construído o espaço social, deveríamos estar atentos às dimensões do volume global de capital e à estrutura dele que, por sua vez, teria peso relativo para o capital econômico e cultural. Nesse modelo proposto por Bourdieu, isto é, na compreensão de um caso particular do possível ou do campo de possíveis, deveríamos estar atentos para fazê-lo proveitoso: construção desse espaço social

e simbólico; definição dos princípios fundamentais dessa diferenciação – nesse caso, penso nos gêneros musicais e nas particularidades destas periferias que influenciam na emergência ou constrangimento deles; localização dos princípios distintivos e signos distintivos compartilhados em torno do gênero musical; caracterização dos traços pertinentes que tornam as diferenças significativas nos diferentes subespaços simbólicos. Embora Bourdieu não seja o aporte teórico principal desta pesquisa, alguns elementos podem ser discutidos à luz de suas reflexões.

Discutindo ―o senso estético como o senso da distinção‖, Bourdieu afirma que:

a disposição estética é a dimensão de uma relação distante e segura com o mundo e com os outros que pressupõe a segurança e as distâncias objetivas; a manifestação do sistema de disposições que produzem os condicionamentos sociais associados a uma classe particular de condições de existências quando eles assumem a forma paradoxal da maior liberdade concebível, em determinado momento, em relação às restrições da necessidade econômica. No entanto, ela é, também, a expressão distintiva de uma posição privilegiada no espaço social, cujo valor distintivo determina-se objetivamente na relação com expressões engendradas a partir de condições diferentes. Como toda a espécie de gosto, ela une e separa: sendo o produto dos condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência, ela une todos aqueles que são produtos de condições semelhantes, mas distinguindo-os de todos os outros a partir daquilo que têm de mais essencial, já que o gosto é o princípio de tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que é para os outros, daquilo que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo que se é classificado. Os gostos (ou seja, as preferências manifestadas) são a afirmação prática de uma diferença inevitável (BOURDIEU, 2008 p. 56).

As discussões de Bourdieu estão orientadas por conceitos-chave. O conceito de

habitus é uma dessas chaves analíticas que, em alguma medida, pode nos trazer elementos

para a complexificação desse objeto aqui em análise. Para o autor francês ―os sujeitos sociais diferenciam-se pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas‖ (BOURDIEU, 2007, p. 13). Embora tenha clareza que esses aspectos mereçam ser compreendidos por categorias mais amplas do que aquela de classe social, por exemplo, a perspectiva de Bourdieu me parece oportuna para analisar questões transversais. Segundo o próprio Bourdieu:

O habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas. Na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida (BOURDIEU, 2008, p. 162, destaque no original).

Através do consumo e do gosto materializam-se estilos de vidas e o habitus externaliza também esquemas sociais classificatórios que estabelecem processos de identificação e mesmo as distinções sociais. Não estou corroborando, contudo, com perspectivas que pensaram o consumo como válvula de escape que ameniza os transtornos do dia-a-dia advindo do trabalho. Estou interessado em reforçar que

quando se investigam as expressões culturais no mundo da música é que mesmo os indivíduos e os grupos sociais que não possuem propriamente uma agenda política (como, por exemplo, clubbers e funkeiros) acabam promovendo uma ―política da experiência‖ (Gilbert e Pearson, 2003), da identidade (Laclau e Mouffe, 1987), isto é, fundam um sentimento de ‗comunidade‘ (Frith, 2006b), estabelecendo estratégias de distinção social (HERSCHMANN, 2007, p. 57).

Outra discussão associada ao gosto diz respeito à construção de critérios de valoração, que, por sua vez, definem arbitrariamente o que é ―bom‖ ou ―ruim‖. Do ponto de vista sociológico, arbitrar ou estabelecer critérios rigorosos e sistemáticos acerca do é ―bom‖ e ―ruim‖ torna-se um problema. Luiz Campos sintetiza bem este imbróglio das pesquisas sobre música ao evidenciar que não cabe à sociologia arbitrar o problema

(...) do valor da música, sejam ele e ela quais forem, mas sim examinar o contínuo processo de construção, conflito e negociação de sentidos. Dito de outro modo, o que as pessoas dizem sobre música e o que para ela reivindicam deve tratar‑se como informação relativa às suas convicções e crenças sobre ela. (...) Implica, isso sim, aceitar que o trabalho artístico existe e tentar compreender como e porque é que as pessoas orientam as suas condutas em relação a tais artes. A sociologia da música não deverá, pois, preocupar‑se com procurar algum verdadeiro significado de uma obra, mas sim interessar‑se pelo que as pessoas acreditam que significa, porque é este significado que influencia as suas respostas, a forma como a praticam e com ela se relacionam (CAMPOS, 2007, p. 86-87).

Como já dito anteriormente, as músicas massivas foram preteridas enquanto objeto de análise da musicologia, etnomusicologia, antropologia, sociologia, entre outras áreas. Quando tomadas como objeto pelas mesmas, a compreensão se deu em larga medida pelas lentes da teoria crítica e, neste sentido, as análises muitas vezes estavam encerradas e limitadas à percepção de formas alienantes e geradoras de conformismo.

Superando essa barreira estrutural que hierarquizou objetos de investigação, Frith (1996) reflete sobre o que poderíamos e temos chamado de música ruim. O autor envereda pelo descortinamento dessas questões e assimila o debate no sentido de perceber os sentidos e critérios desse julgamento. Para o autor, a ―musica ruim‖ só pode ser assim qualificada dentro

de arbitrários culturais, sociais e linguísticos, ou seja, qualquer juízo é fruto de complexo conjunto de variáveis, tais como: quem produz e escuta, como as pessoas conversam sobre e performatizam e quem referenda ou rotula a música como ―ruim‖.

No artigo intitulado ―Pragmática do Gosto‖, Hennion busca, especialmente, afastar-se dessas teorias ―restritivas‖ que classificam os sujeitos por meio de características demasiadamente negativas por serem, em última instância, desconsiderados aspectos de relevância sociológica. Segundo Hennion:

Nos piores casos, ele é um ―cultural dope‖ que se engana quanto à natureza daquilo que faz; nos melhores, ele é o sujeito passivo de uma ligação cujas determinações verdadeiras ele ignora e que, a despeito de suas resistências, são reveladas por impassíveis estatísticas. Sua relação com a cultura ou com os objetos de sua paixão é submetida a uma análise puramente negativa que mostra que essa relação não é o que ela acredita ser. Nessa ótica, os gostos são radicalmente improdutivos: seus objetos não passam de signos arbitrários e os sujeitos apenas reproduzem a hierarquia das posições sociais. O gosto é a máscara colocada pela cultura sobre a dominação (HENNION, 2011, p.255).

Compartilho da visão de pesquisadores como Trotta (2007), que procuram compreender essas estratégias de valoração e admitem que os sujeitos e grupos sociais desenvolvem critérios de qualidade que distinguem as experiências musicais e, de forma concomitante, fornecem elementos para conformações identitárias. A partir do estudo de um objeto comparável ao nosso (―música popular massiva‖, ―música popular‖ ou ―canção de grande circulação‖), Trotta ratifica a importância deles na construção da identidade de indivíduos e grupos, na própria formação desses grupos culturais e também no processo de hierarquização de gostos. Grupos sociais, segundo o autor, emergem, elaboram discursos e trazem a público suas passionalidades, afinidades e gostos. Para ele:

Trata-se de um produto cultural que, disponibilizado para amplos setores da sociedade, adquire especificidades simbólicas no momento das experiências culturais, fazendo circular pensamentos e visões de mundo. Essa diversidade estética que a música popular abriga e sua própria importância na vida cultural contemporânea faz com que ela se torne tema privilegiado de acalorados debates sobre qualidade artística. Falar em qualidade significa se referir aos processos de hierarquização produzidos por sujeitos e grupos sociais para valorizar suas práticas em detrimento de outras. Tais processos são resultados de intensos embates que revelam disputas de poder, posições culturais e estratégias de persuasão e sedução entre os atores sociais envolvidos. Todo debate sobre música popular está atravessado pela questão do gosto, ou seja, pelas escolhas individuais e coletivas que resultam da construção de afinidade e identidades musicais, revelando sentimentos compartilhados que estão sempre envolvidos em alta carga emotiva (TROTTA, 2007, p.1-2).

Com relação às estratégias de valoração da música popular, Trotta vai identificar parâmetros distintos de julgamento para esse tipo de música em relação à erudita, por exemplo - muito embora alguns critérios sejam comuns. A música erudita, segundo Trotta, tem como característica

uma audição atenta, silenciosa, que deriva do seu alto grau de elaboração melódica- harmônica e que, consequentemente, exige alto grau de ‗erudição‘ para ser admirada. (...) A conjugação de características estéticas específicas (alto grau de elaboração harmônica-melódica), condições de experiência (audição silenciosa), consumo elitizado (nobreza e classes abastadas) e personalização do criador (o ‗artista‘) estabelece uma referência de qualidade musical (TROTTA, 2007, p. 4-5).

Embora se estabeleçam critérios distintos, como acabamos de demarcar, o prestígio de muitas dessas canções de linguagem pop se aproxima desse juízo quando são erigidas as críticas, isto é, o referencial de qualidade muitas vezes termina por ceder ao parâmetro da crítica, estética ou valor arbitrário do erudito. A legitimidade, portanto, ―tende a aumentar quando são empregados alto teor de individualização do autor, grande complexidade harmônico-melódica, sofisticação poética e sonoridade de arranjo rica em contrapontos e variações de texturas instrumentais‖ (TROTTA, 2007, p. 5).

No entanto, pelo que observamos (embora não fossem os objetivos primordiais desta pesquisa), os parâmetros utilizados para a caracterização ou valoração da música se valem, não raramente, de recursos e linguagem que não se valem do conhecimento mais aprofundado e específico.

Dito isso, falta ainda para a construção de uma lente teórica mais rigorosa refazer a tessitura analítica que problematiza a relação entre produção e recepção dos produtos culturais. Embora adiante esse arcabouço, entendo que o fenômeno investigado borra e suscita outras questões de natureza metodológica, haja vista o imbricamento desse processo coletivo de construção artística com o material humano de onde ele insurge.