• Nenhum resultado encontrado

1.2 – COLETIVIDADES EXPLORADAS, MENOSPREZADAS E AMBIVALENTES.

CAPÍTULO III – O ARGUMENTO MULTICULTURALISTA

III. 1.2 – COLETIVIDADES EXPLORADAS, MENOSPREZADAS E AMBIVALENTES.

Imagine-se um espectro conceitual de tipos diferentes de coletividades sociais. Em um extremo estão modos de coletividades que se ajustam ao modelo redistributivo de justiça. No outro extremo estão modos de coletividade relacionados ao modelo de reconhecimento. No meio estão casos que se mostram difíceis por se ajustarem simultaneamente em ambos os modelos de justiça.126

Num extremo do espectro se encontram as classes exploradas. Elas diferem das outras coletividades devido seus remédios serem de natureza exclusivamente redistributiva.127 Aqui, as injustiças sofridas pelos seus membros têm uma solução ligada a mudanças no arranjo político-econômico da sociedade, ou seja, redistribuição. É o tipo de exploração sofrida pela classe trabalhadora (novamente em sentido marxiano). A solução definitiva para a classe explorada seria então a abolição do proletariado como classe. Pois só faz sentido, novamente em termos marxianos, falar em classe explorada,

126

Idem, pg 254.

127

Fraser enfatiza novamente que a diferenciação é analítica, as classes só podem ser reconhecidas como tais dentro de uma relação cultural, discursiva, da mesma maneira que as outras coletividades necessitam, em último grau tanto de redistribuição, quanto de reconhecimento.

83

em proletariado, no interior de uma ordem que a explore, a classe capitalista. A classe explorada não pode então desejar o reconhecimento de sua diferença, isso é a cristalização de sua desigualdade, a única forma de remediar a injustiça é extinguir o

proletariado como grupo.128

Do outro lado desse leque conceitual, teríamos coletividades que se ajustam ao modelo de reconhecimento. Essas coletividades têm seus problemas ligados à ordem cultural da sociedade. Por mais que elas possam sofrer injustiças de distribuição, isso se deveria em último caso a um problema de reconhecimento. Aqui a solução não é a redistribuição política-econômica, mas o reconhecimento cultural. Fraser utiliza o exemplo das sexualidades menosprezadas, a questão da homossexualidade. Sexualidades menosprezadas, não podem ser uma questão de redistribuição, pois, segundo a autora,

homossexuais distribuem-se ao longo de toda a estrutura da sociedade capitalista.129 A injustiça por eles sofrida é de reconhecimento, heterossexismo; as normas sociais são construídas para valorizar uma única forma de expressão sexual: a heterossexualidade. O remédio então, para esse caso, é superar os padrões culturais autoritários da sociedade.

Os dois extremos do projeto teórico foram abordados. De um lado as classes exploradas clamando redistribuição; de outro as sexualidades, clamando reconhecimento. Mas é importante que se diga uma coisa: enquanto as classes exploradas necessitam de remédios que suprimam sua diferenciação no interior da sociedade, as sexualidades menosprezadas necessitam de soluções que, ao contrário da anterior, valorizem sua especificidade. 128 FRASER, op cit, 256. 129 Idem, pg 257.

84

Fraser apresenta uma terceira classe de coletividades: as coletividades ambivalentes. As injustiças sofridas por essas coletividades não se restringem nem à redistribuição nem ao reconhecimento, mas necessitam das duas formas de justiça. Gênero e “raça” são aqui utilizados como exemplos de coletividades ambivalentes.

Gênero é uma coletividade ambivalente. Tem seus problemas sediados na estrutura político-econômica da sociedade na medida em que o gênero marca a divisão social do trabalho. As mulheres estão designadas (inicialmente) ao trabalho doméstico, enquanto o trabalho assalariado está (também inicialmente) direcionado aos homens. Mesmo no interior do trabalho assalariado existe o fato de que as mulheres ocupam cargos menos remunerados que os homens. O resultado disso é um reflexo socioeconômico, onde o gênero feminino ocupa um lugar de inferioridade se comparado ao masculino. Nessa perspectiva temos a injustiça de gênero enquanto questão redistributiva. A lógica do remédio é similar à lógica com respeito à classe social: é

eliminar a especificidade do gênero. Se gênero fosse nada mais que uma diferenciação político-econômica, em suma, a justiça requereria sua abolição.130 Mas além de sofrer uma injustiça de redistribuição, o gênero também sofre uma injustiça de reconhecimento, no caso o androcentrismo: as normas sociais são construídas autoritariamente, de uma maneira que beneficiem as características masculinas.

Além do androcentrismo as mulheres ainda estão submetidas à depreciação, incluindo exploração doméstica, violências físicas, esteriotipização e marginalização das esferas públicas deliberativas e de trabalho. Essas injustiças são injustiças de reconhecimento, portanto exigem uma mudança nos padrões valorativos da cultura que beneficiem as mulheres. Sendo uma coletividade ambivalente, o gênero contém uma

130

85

dimensão que reclama redistribuição e outra dimensão que reclama reconhecimento. Aqui se aponta um dilema na perseguição dos objetivos do gênero: se por um lado as demandas de redistribuição eliminam as diferenças de gênero, as demandas por reconhecimento valorizam a especificidade do grupo. Como perseguir esses dois objetivos simultaneamente?

Uma outra coletividade ambivalente é a “raça”. A “raça” também apresenta problemas de injustiça ligados a redistribuição, quanto problemas ligados ao reconhecimento. Assemelha-se à classe quando parte de seus problemas estão ligados a má distribuição do trabalho. Como legado histórico da escravidão, negros tendem a ocupar cargos mal-pagos, insalubres, enquanto cargos de administração e chefia são predominantemente ocupados por brancos. Vista dessa maneira, justiça racial requer a

transformação da economia política para eliminar sua racialização.131

Mas tal qual o gênero, a “raça” também sofre injustiças de reconhecimento. Uma delas é o Eurocentrismo, o que quer dizer que a construção das normas sociais privilegiam representações sociais ligadas a branquitude. Esta coletividade também está submetida padrões estereotipados na mídia e marginalização nas deliberações públicas. Aqui se apresenta o mesmo dilema das demandas de gênero: como a raça pode clamar ao mesmo tempo por demandas de classe (redistributivas) que suprimem as diferenças e por demandas de reconhecimento que visem valorizar a especificidade identitária?

131

86