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A luta pelo reconhecimento: uma crítica universalista ao argumento multiculturalista contemporâneo

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA. A LUTA PELO RECONHECIMENTO: UMA CRÍTICA UNIVERSALISTA AO ARGUMENTO MULTICULTURALISTA CONTEMPORÂNEO. RODRIGO GOMES LEITE. RECIFE, 2006.

(2) 2 RODRIGO GOMES LEITE. A LUTA PELO RECONHECIMENTO: UMA CRÍTICA UNIVERSALISTA AO ARGUMENTO MULTICULTURALISTA CONTEMPORÂNEO. Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre em Ciência Política, do programa de pós-graduação em Ciência Política, do departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de Pernambuco. Orientador: Prof. Dr. Marcus André Barreto Campelo Melo.. RECIFE, 2006.

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(5) 4 AGRADECIMENTO Sempre achei difícil agradecer... Não por nunca ter recebido ajuda, mas justamente por sempre ter recebido ajuda demais; por vezes mais do que julgo merecer. Então, para não pagar o alto preço de esquecer nessa nota alguma das incontáveis pessoas que estenderam seus braços nessa caminhada, dedico este trabalho a todos que se vejam representados nele. Talvez baste lê-lo para fazer parte dele. Muito Obrigado..

(6) 5. EM SETE PONTOS REVISITEI 1- A emancipação humana 2- A racionalidade moderna 3- A existência que serei 4- Quando irreconheci 5- Colonizei a solidariedade 6- Das muitas culturas 7- Das quais, nada sei Marco Aurélio da Silva Freire.

(7) 6 SUMÁRIO. RESUMO. INTRODUÇÃO. 8. 10. CAPÍTULO I – BASES TEÓRICAS DA POLÍTICA DO RECONHECIMENTO: UMA APROXIMAÇÃO INICIAL 1.1 Charles Taylor e a Política do Reconhecimento; Universalismo e Relativismo de Direitos na Modernidade. 19. 1.2 Rousseau e Kant: Afinidades (Ir)Reconhecidas. 27. 1.3 Taylor: O Debate Liberal-Comunitário. 31. 1.4 Inautenticidade e Autenticidade em Heidegger. 40. 1.4.1. A Ontologia de Ser e Tempo. 40. 1.5 Conclusão: Limites da Tese Tayloriana. 45. CAPÍTULO II – A ESTRUTURA DE DESENVOLVIMENTO DA MORAL 2.1 Luta por Reconhecimento: Ética e Moral. 51. 2.2 Kant e a Teoria da Moral. 53. 2.3 Hegel e o Sistema Ético. 57. 2.3.1. 62. Reconhecimento na Dialética do Senhor e do Escravo. 2.4 Honneth e a Gramática Moral dos Conflitos Sociais. 65. 2.4.1. 66. A Estrutura das Relações Sociais de Reconhecimento. 2.5 Conclusão: Uma Concepção Formal de Eticidade. 73. CAPÍTULO III – O ARGUMENTO MULTICULTURALISTA 3.1 Nancy Fraser: Redistribuição e Reconhecimento. 78. 3.1.1 O Dilema Redistribuição-Reconhecimento. 80. 3.1.2 Coletividades Exploradas, Menosprezadas e Ambivalentes. 82. 3.1.3 Afirmação e Transformação. 86.

(8) 7 3.1.4 Escapando do Dilema?. 88. 3.2 Kymlicka: Multiculturalismos. 92. 3.2.1 Políticas de Identidade: Modelo Tradicional. 92. 3.2.2. Cinco Modelos de Multiculturalismo. 102. 3.2.2.1 Minorias Nacionais. 103. 3.2.2.2 Grupos Imigrantes. 104. 3.2.2.3 Grupos Etno-Religiosos Isolacionistas. 104. 3.2.2.4 Metecos. 106. 3.2.2.5 Afro-Americanos. 106. 3.3. 110. Conclusão: Direcionando o Debate Multicultural. CAPÍTULO IV – LIBERALISMO, DIREITOS E MORALIDADE 4.1 Multiculturalismo e Moralidade. 115. 4.2 Razão Pública como Princípio Normativo. 126. 4.3 Condições do Debate Multicultural. 132. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 139. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 143.

(9) 8. TÍTULO: TEORIA POLÍTICA DO RECONHECIMENTO: A CRÍTICA UNIVERSALISTA AO ARGUMENTO MULTICULTURALISTA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTADO E GOVERNO LINHA DE PESQUISA: TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA. RESUMO: Muitos trabalhos vindos da teoria política contemporânea dão atenção especial a políticas de reconhecimento. Esta tese tem como foco uma analise da relação entre teoria política e o argumento multiculturalista contemporâneo. Começo com uma análise do paradigma d’A Política do Reconhecimento de Charles Taylor e suas fontes teóricas e considero outros contemporâneos teóricos do reconhecimento com suas respectivas fontes teóricas como: Axel Honneth, Nancy Fraser, Will Kimlicka, John Rawls, e Jürgen Habermas. Posteriormente volto a analisar a interdependência entre reconhecimento, teoria crítica e universalismo de direitos. Em minha visão este é o único caminho rumo a um reconhecimento autêntico em sociedades democráticas, liberais e pluralistas. PALAVRAS-CHAVES: reconhecimento, multiculturalismo, liberalismo, universalismo, teoria crítica, democracia, autenticidade, desenvolvimento moral..

(10) 9. ABSTTRACT: Many works from the contemporary political theory give a special attention to politics of recognition. The following thesis focuses the analysis away from political philosophy and towards the politics of multiculturalism, while continuing explore the links between them. I begin with an analyses of the paradigm of The Politics of Recognition from Charles Taylor and his theoretical sources, and consider others contemporary theories of recognition and theirs sources, namely those of Axel Honneth, Nancy Fraser, Will Kimlicka, John Rawls and Jürgen Habermas. After I turn to analyze the interdependence between recognition, critical theory and universalism of rights. In my view this is the unique way to an authentic recognition in democratic liberals and pluralistics societies. KEYWORDS: Recognition, multiculturalism, liberalism, universalism, critical theory, democracy, authenticity, moral development..

(11) 10. INTRODUÇÃO. Movimentos teóricos são estranhamente parecidos nas suas diferenças. Em tempos já distantes, na década de 1860, Lord Acton1 considerava o nacionalismo como a mais atraente das idéias subversivas modernas.2 Defendendo o princípio da legitimidade universal, num período coincidente com o auge do poder imperialista britânico, Acton considerava superiores os Estados que englobam várias nacionalidades sem, no entanto, oprimi-las. Nesses Estados as nações esgotadas e decadentes são revigoradas pelo contato com uma vitalidade mais jovem. As nações que perderam os elementos da organização e a capacidade de governo, quer pela influência desmoralizante do despotismo, quer pela ação desintegradora da democracia, são resgatadas e reeducadas sob a disciplina de uma raça mais forte e menos corrompida.3 Descontando-se as diferenças entre a Europa neocolonialista e o mundo contemporâneo, algumas afinidades eletivas podem ser traçadas entre o nacionalismo do século XIX e o debate multiculturalista de nossos dias. Em suas reivindicações, defensores de uma pauta de direitos multiculturais ressaltam a forte impregnação ética dos ordenamentos jurídicos. Estes não seriam neutros, mas edificados a partir de valores e símbolos culturais que beneficiam uma identidade cultural majoritária. Modelos tradicionais de nacionalismo, como o de Acton, não reconheceriam o valor idêntico das 1. ACTON, Lord. Nacionalidade, in BALAKRISHNAN, Gopal. Um Mapa da Questão Nacional (org), Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p 37. 2 As outras duas eram o igualitarismo, crítico do princípio da aristocracia, e o socialismo de Babeuf, crítico da propriedade privada. 3 Acton, idem, pg 37.

(12) 11 diversas culturas que habitam um Estado, mas visariam seu englobamento a padrões de conduta geralmente definidos como eurocêntricos. A rigidez procedimental de algumas vertentes do liberalismo, seria ela mesma, um padrão ético eurocêntrico retoricamente definido como neutro – e universal. Por outro lado o argumento de Acton parece sustentar uma tese liberal. Poderíamos reivindicar o princípio da legitimidade universal de direitos, não por motivos de superioridade de raças ou de culturas (essas considerações axiológicas nunca foram o foco da tradição liberal), mas concordaríamos com Acton por um motivo inverso do que defende: a igualdade fundamental de direitos entre diferentes culturas no interior de um Estado é a melhor e mais segura medida de assegurar que identidades minoritárias não sejam perseguidas ou discriminadas. Certo princípio da isonomia orienta: “tratar os iguais igualmente, e os desiguais desigualmente”. Isso não responde absolutamente nada. Se a questão apresentada é como reconhecer o direito à diferença respeitando o direito a igual cidadania, aquela afirmativa oferece espaço a interpretações que podem variar ao infinito. Seguramente um Estado pode se valer dessa assertiva para sanar injustiças cometidas sobre uma certa categoria de cidadãos ou identidade cultural; mas existe o reverso dessa medalha. Sob a égide da isonomia, o Estado nazista tratou desigualmente os desiguais judeus... Em poucas palavras esta seria nossa problemática: como resolver do ponto de vista teórico o dilema entre individualidade e universalidade de direitos no Estado contemporâneo no que tange à cultura? Mas nosso trabalho não é, ainda, tão simples. Poderíamos dar uma definição provisória de liberalismo como: A essência do liberalismo reside em seu reconhecimento do desejo individual como fato básico de uma associação civil moderna. Não.

(13) 12 há valores ou normas preponderantes a que o homem esteja completamente e permanentemente obrigado.4. Em seus escritos de juventude, Hegel afirmava que nossa identidade é formada num movimento de luta por reconhecimento. A construção de nosso self não se daria pacificamente num ambiente isento de contradições, mas numa atmosfera dialética, caracterizada pelo conflito. O filósofo alemão aparentemente não perdeu a vitalidade, pois a questão do reconhecimento ocupa cada vez mais espaço na teoria social. Desde sua inserção definitiva no jargão teórico contemporâneo por Charles Taylor, ‘A Política do Reconhecimento’ vem despertando a atenção de pensadores das mais variadas matizes conceituais. Numa sociedade permeada pela variedade cultural, identidades locais vêm clamando como condição sine qua non de uma democracia substantiva, o reconhecimento de sua diferença. O problema que se coloca é como o Estado deve reconhecer essa diferença. Aqui dois argumentos ganham destaque: o multiculturalista e o liberal. A despeito das significativas diferenças em seu interior, o argumento multiculturalista pode ser resumido na seguinte fórmula: O Estado não é formado por um só povo, mas por identidades culturais, distintas entre si. Os titulares dessas identidades possuiriam maneiras peculiares de se relacionarem entre si e com o mundo que seriam irredutíveis aos outros modos de vida; um ordenamento jurídico indivisível sobre um território nacional não passaria de um artífice autoritário. O princípio da autonomia cultural exigiria o reconhecimento da autonomia política em face da constituição como. 4. OUTHWAITE, William & BOTTOMORE Tom. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. Verbete liberalismo, Pg 422..

(14) 13 pré-requisito da sobrevivência desses grupos. Fariam parte desse grupo pensadores como Will Kimlicka e Charles Taylor. O argumento liberal, assumindo-se os riscos da sintetização, afirma que o dever do estado é garantir os compromissos procedimentais, ou seja, assegurar a todos a possibilidade de um igual tratamento e de desenvolverem seus planos de vida da forma que melhor lhe aprouver. Garantem-se os direitos formais, mas os compromissos substantivos, o que deve ser uma vida boa, fica a cargo do indivíduo. É o pensamento comungado por Brian Barry e John Rawls, por exemplo. Este é o objetivo deste trabalho, criticar o argumento multiculturalista a partir de uma concepção de igualdade universal de direitos. Questão que evidencia sua importância, num ambiente pautado pela variedade cultural, que em geral, exige um igual reconhecimento de sua diferença. Este trabalho é dividido em quatro capítulos. No primeiro investigamos a tradição teórica que alimenta a “Política do Reconhecimento” e o debate liberal-comunitário na visão de Charles Taylor. O influente filósofo canadense serve como espinha dorsal de todo capítulo enquanto se identifica e analisa-se a tradição teórica que inspira o debate. Analisamos a tensão entre universalidade e relativismo, que marca a pauta de direitos e o teor cognitivo da moral na modernidade, contrapondo a tradição contratualista com uma tradição expressivista e historicista fundada na figura de Herder. Posteriormente investigamos Martin Heidegger em Ser e Tempo, uma obra que vai sedimentar todos o debate em torno do sentido da identidade e o sentido do reconhecimento nos debates teóricos contemporâneos..

(15) 14 No segundo capítulo abordamos a estrutura do desenvolvimento da moral. É a aquilo que se compreende como moral que direciona a justificação e o teor normativo do reconhecimento. Apresentamos ali a estrutura de desenvolvimento da moral na visão de Axel Honneth em Luta por Reconhecimento. Este quadro no qual o reconhecimento se realiza é divido por Honneth em três níveis. O primeiro modo de reconhecimento é a dedicação emotiva que tem como forma de reconhecimento as relações primárias, onde os seres humanos vivem as experiências do amor e da amizade, e que prepara o caminho para uma espécie de auto-relação em que os sujeitos alcançam uma confiança elementar em si mesmos,5 precedendo todas as outras formas e reconhecimento. Há um segundo nível, o das relações jurídicas na qual os indivíduos se reconhecem como portadores de direitos perante a sociedade e moralmente imputáveis desenvolvendo uma auto-relação prática de auto-respeito. O modo de reconhecimento é o respeito cognitivo. Existe ainda um terceiro modo de reconhecimento, o da estima social, que tem como forma de reconhecimento a comunidade de valores marcada pela solidariedade. Aqui a personalidade se realiza através do igual sentimento de honra e dignidade. Posteriormente estudamos duas visões clássicas que vão lastrear a filosofia moral na contemporaneidade; primeiramente Immanuel Kant, com a Metafísica dos Costumes e A Crítica da Razão Prática (obras definitivas na fundamentação liberal de moralidade); em seguida investigamos a visão hegeliana de razão, para ele compreendida como uma construção a partir de um processo dialético. Depois retornamos a Axel Honneth, no delineamento da gramática moral dos conflitos sociais. A moralidade nessa visão, só é compreensível quando se estabelece um padrão da estrutura das relações práticas de reconhecimento. A moral não é dada a priori, não é um imperativo universal, mas algo 5. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento, São Paulo: Ed 34, 2004, pg 177..

(16) 15 construído num ínterim de relações intersubjetivas diferenciadas. A moral só pode ser compreendida e corretamente abordada quando situada a partir de padrões cambiantes de vida humana. O terceiro capítulo apresenta o argumento multiculturalista. Tem como centro dois pensadores: Nancy Fraser e Will Kymlicka. Nancy Fraser equaciona as questões de justiça que envolvem diversas coletividades dentro de um ambiente de lutas pós-socialistas. Mostra que questões relativas à justiça requerem tanto redistribuição quanto reconhecimento. A natureza da justiça política não se esgota nem no reconhecimento legal dos problemas, nem numa redistribuição dos bens materiais. Fraser identifica dois tipos de injustiças acompanhadas dos devidos remédios. Existe a injustiça socioeconômica, enraizada na estrutura político-econômica da sociedade, esta injustiça tem como marcas a exploração econômica (no sentido marxiano do termo), a marginalização econômica (quando alguém é privado do trabalho, ou submetido a tarefas degradantes) e a privação (quando é negado padrão material digno). Para esses tipos de injustiça a solução é reestruturação político-econômica; e isso pode significar redistribuição de renda, reorganização do trabalho, ou outras transformações na base da sociedade que visem sanar essas deficiências. E existe a injustiça cultural ou simbólica. Aqui a injustiça está arraigada a padrões de representação social, interpretação e comunicação. Esse tipo de injustiça envolve dominação cultural, não-reconhecimento (ser considerado invisível por outras representações sociais) e o desrespeito, que é ter sua condição difamada ou estereotipada pela sociedade. Nesse caso o remédio é a reavaliação dos padrões culturais da sociedade, a partir de uma política positiva de reconhecimento dos direitos individuais e coletivos. Fraser trabalha com quatro tipos de coletividades.

(17) 16 distribuídas entre os três tipos ideais apresentados: Classes exploradas, que precisam de redistribuição de renda; coletividades como gênero e raça; que precisam de remédios ambivalentes, ou seja, redistribuição e reconhecimento; e as sexualidades menosprezadas que precisam de reconhecimento. Em seguida apresentamos o argumento de Kymlicka. Este analisa que uma leitura procedimental do liberalismo é incapaz de compreender a complexidade de culturas societais como as que caracterizam as democracias ocidentais. Sociedades pluralistas exigiriam uma compreensão multicultural de direitos que ao mesmo tempo em que preservassem a autonomia e liberdades individuais também preservasse um espaço de proteção às culturas minoritárias de uma sociedade. Kymlicka diferencia cinco tipos de minorias: minorias nacionais; grupos imigrantes; grupos etno-religiosos isolacionistas; ‘méticos’ e afro-americanos. A partir dessa diferenciação, o debate multicultural pode ser, segundo Kymlicka, redirecionado em dois sentidos: Não é mais sustentável a tese de que justiça pode ser definida como rigidez procedimental. Afirma que a rigidez procedimental causa desvantagens para grupos específicos. São necessárias regras comuns a todos os indivíduos, mas que se garantam regras diferenciadas para diversos grupos em casos isolados. Daí se conclui que o multiculturalismo da forma que foi proposto, combate às injustiças, e não cria outras injustiças que beneficiam grupos minoritários. No capítulo IV expomos nossa tese central: do ponto de vista da afirmação dos direitos, é imprescindível que se compreenda as reivindicações multiculturais como situadas numa estrutura de desenvolvimento da moral como a apresentada por Axel Honneth. Somente a partir do momento que se interpretem as demandas multiculturais.

(18) 17 como pertencentes ao rol das relações jurídicas ou de uma comunidade de valores, é possível delimitar a responsabilidade jurídica na solução dos problemas culturais das minorias. A partir do momento que o multiculturalismo foi enquadrado numa estrutura normativa da moral é possível estabelecer uma conexão entre o modelo de reconhecimento de Axel Honneth e a idéia de razão pública como foi desenvolvida por John Rawls em “O Direito dos Povos”. Rawls desenvolve um modelo de razão específico para a abordagem de questões referentes ao espaço político público. São os princípios morais e de aplicação prática da razão justamente no espaço caracterizado por Honneth como Direito. É a aplicação da razão pública de Rawls no espaço das relações jurídicas. Aqui há uma defesa de um núcleo entrelaçado entre o comunitarismo e o liberalismo. Independentemente das concepções que aquelas duas tradições possuam do valor cognitivo da moral é possível analisar conjuntamente o campo de ação de uma razão pública na resolução de problemas do direito. Muitas questões preconizadas pelo argumento multiculturalista são, ao nosso ver, demandas relacionadas aos compromissos substantivos individuais, ou seja, são relativas à forma de reconhecimento denominada por Axel Honneth de comunidade de valores. Numa terminologia rawlsiana, poderíamos chamar esse espaço de cultura de fundo, ou em termo característico de Jürgen Habermas, de esfera pública. A maneira mais apropriada de organização da agenda de debates da esfera pública pela sociedade civil é, na tese aqui defendida, a partir das condições de participação política estabelecidas por Habermas..

(19) 18 Ao se perceber o multiculturalismo como pertencente a um espectro de relações críticas mutáveis, adotando o modelo de razão pública como princípio generalizante e efetivo de direitos, temos então definido um modelo teórico capaz de identificar habilmente as diferentes demandas que atingem sociedades complexas como são as democracias constitucionais contemporâneas..

(20) 19 CAPÍTULO I: BASES TEÓRICAS DA POLÍTICA DO RECONHECIMENTO (UMA APROXIMAÇÃO INICIAL). I.1 – CHARLES TAYLOR E A POLÍTICA DO RECONHECIMENTO: Universalismo e Relativismo de Direitos na Modernidade. Identidade e reconhecimento são questões fundamentalmente modernas. A preocupação em torno de como nossa autocompreensão é desenvolvida e como esse processo é, pelo menos em parte, determinado pela ação do meio social sobre o indivíduo é uma questão de nosso tempo. Não significa, em absoluto, afirmar que as pessoas da Idade Média ou da Antiguidade não possuíam identidade, mas sim que a modernidade transforma profundamente a compreensão desses fenômenos. Seguindo a proposta apresentada por Charles Taylor em As Fontes do Self6 e em Argumentos Filosóficos7 duas mudanças tornaram candente a discussão em torno da identidade e do reconhecimento: a primeira é a substituição do paradigma da honra pelo paradigma da igualdade; a segunda é o desenvolvimento da noção de identidade individualizada. Fala-se do paradigma da honra para exemplificar o tipo de sociedade característico do Antigo Regime, o conceito de honra está intimamente ligado aos privilégios sociais. A idéia de honra, característica das sociedades aristocráticas, é, com o fim do Antigo Regime, substituída pela idéia de igualdade. Diferentemente da honra, a. 6 7. TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. Loyola,1997. TAYLOR, 2002..

(21) 20 igualdade é aqui tratada com um sentido universalista, não como direito de uma casta ou elite política, mas como um elemento de pertencimento que possa enquadrar todos os seres humanos numa idéia de igual respeito. Essa transformação esconde um confronto ético que aborda a relação entre honra e dignidade. Taylor apresenta dois modelos de ética que marcaram a articulação das compreensões ocidentais de bem. Em primeiro lugar podemos citar a ética da honra. Nesse modelo a preocupação com a honra é tida como a marca maior de um homem honrado. Ela pode ser compreendida como a ética cavalheiresca. A vida do guerreiro, do cidadão ou do cidadão- soldado é considerada superior à existência meramente privada, dedicada as artes da paz e ao bem estar econômico.8 Um segundo modo de articulação da compreensão do que é bom está inscrito na ética estóica; nessa visão (inspirada em Platão) o orgulho é denunciado. A virtude não está na vida pública nem na excelência no ágon guerreiro. A vida superior é aquela regida pela razão, sendo a própria razão definida em termos de uma concepção de ordem, no cosmo e na alma. A vida superior é aquela na qual a razão governa os desejos e sua inclinação para o excesso, a insaciabilidade, e efemeridade, o conflito.9 Uma nova compreensão ética é inaugurada com o pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Rousseau articula as duas concepções éticas anteriormente demonstradas. Concorda com a ética estóica ao denunciar que a ética da honra torna os homens escravos da opinião do outros e vincula o respeito à aquiescência desses valores dito honrados. Mas Rousseau não despreza completamente o primeiro modelo de ética ao ressaltar que a honra é também importante. Rousseau realiza essa operação articulando a igual estima de todos os cidadãos no interior de um governo. 8 9. TAYLOR, 1997. pg 36. Idem, pg 36..

(22) 21 republicano que honre a todos igualmente. Sob a égide da vontade geral, todos os cidadãos virtuosos devem ser igualmente honrados. Nasce a era da dignidade.10 A tradição política contratualista surge como um divisor de águas no que vem a ser chamado de igual respeito. Ainda que se tenha em mente a miríade de autores reunidos sob essa definição, poderíamos resumir esse campo como um horizonte políticofilosófico o qual reúne (como representantes mais significativos) pensadores como Thomas Hobbes11, John Locke12, Jean-Jacques Rousseau13 e Immanuel Kant. Apesar das diferenças entre esses pensadores (não raro abissais) alguns paralelos conceituais são possíveis; entre eles: (1) Existe uma natureza humana comum, em todos os homens, de todos os lugares e em todos os tempos (universalismo); (2) Essa natureza imanente e imutável concerne ao homem certos direitos igualmente universais e inalienáveis (jusnaturalismo14); (3) O Estado e a sociedade civil surgem a partir de um contrato entre os homens visando à proteção daqueles direitos universais e inalienáveis. Esse movimento teórico hegemônico no iluminismo favorece o desenvolvimento de um ideário político jurídico identificado com o universalismo. A igualdade fundamental entre os homens necessita de um ordenamento que equalize essa mesma igualdade. Este é o cerne do contrato social, a articulação dos indivíduos visando à proteção de direitos que fundamentam a concepção de Estado.. 10. TAYLOR, 2002. pg 258. HOBBES, Thomas. Leviatã. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural:1999. 12 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2002. 13 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999. 14 Segundo essa teoria, o poder do Estado tem um limite externo: que decorre do fato de que, além do direito proposto pela vontade do príncipe (direito positivo), existe um direito que não é proposto por vontade alguma, mas pertence ao indivíduo, a todos os indivíduos, pela sua própria natureza de homens, independentemente da sua participação desta ou daquela comunidade política. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. UNB, 1997, pg 15. 11.

(23) 22 Thomas Hobbes deixa tal problemática evidente quando fala do bellum omnium contra omnes, característica do estado de natureza15, onde o medo da morte violenta leva os homens a traçarem um pacto de obediência, no qual cada um delega seus direitos individuais, principalmente o direito de dispor da vida e dos corpos dos outros homens, desde que tenha garantias de que seus iguais também o façam. Esses direitos são delegados a um homem ou assembléia. Nesse pacto surge o Estado, esse deus mortal que pacifica a sociedade, pondo em prática a única obrigação do soberano: garantir a sallus populli (segurança do povo)16.. Hobbes realiza esse construto teórico baseado não numa pretensa desigualdade fundamental entre súdito e soberano, mas ao contrário, fundamenta sua teoria numa igualdade fundamental entre todos os homens:. A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto a força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação,. 15. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu futuro é incerto; conseqüentemente não há cultivo de terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da terra, nem computo do tempo, nem artes nem letras, não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo da morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta (HOBBES, 1999:109). 16 Não tenho a intenção nem é o foco de meu estudo adentrar-me detalhadamente nos motivos de efetivação do contrato social para Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. A breve incursão teórica que se segue tem o objetivo de demonstrar o funcionamento e os desdobramentos teóricos ulteriores do paradigma universalista clássico..

(24) 23 quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados do mesmo perigo17.. Percebe-se que por mais que a biografia de Thomas Hobbes esteja aproximada com o convencionalmente chamado Antigo Regime18, as premissas básicas da fundamentação política são erigidas sobre princípios modernos, universais. John Locke também utiliza os conceitos de “estado de natureza”, “contrato”, “Estado”, porém, faz um delineamento distinto do anteriormente demonstrado. por. Thomas Hobbes. Para John Locke, o estado de natureza não é um estado de guerra, é um estado de relativa paz, onde os homens desfrutam de direitos naturais mais amplos que os anteriormente defendidos por Hobbes. Na hipótese lockiana, os cidadãos já dispõem do direito à liberdade, à segurança e a propriedade;. Contudo, embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; ainda que naquele estado o homem tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses, não possui, no entanto, liberdade para destruir a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão quando isto seja exigido por algum uso mais nobre do que a simples conservação. O estado de natureza tem uma lei de natureza a governá-lo e que a todos submete; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que apenas a consultam que sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses19.. Por qual motivo, então, os cidadãos trocariam uma situação que aparentemente não é má (estado de natureza), visando instituir outro arranjo que não parece ser bem melhor (Estado)? Locke desfaz essa dúvida argumentando que a partir de um contrato 17. HOBBES, 1999: 107. RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. São Paulo: Brasiliense, 1984. 19 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Martin Claret, 2002. Pg.91. 18.

(25) 24 entre os cidadãos o Estado surge como um árbitro para possíveis conflitos que possam surgir. O Estado para John Locke não é a finalidade da sociedade, mas apenas um instrumento que visa a proteção dos direitos naturais dos cidadãos através da manutenção dos compromissos procedimentais entre eles. O Estado não é uma entidade superior à sociedade civil, mas uma instituição que pode perder sua legitimidade tão logo desrespeite qualquer dos direitos naturais citados.. Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela.20 É a primeira grande formulação da teoria política liberal. Uma outra transformação característica da modernidade é o florescimento da compreensão de identidade individualizada no fim do século XVII, o ideal de autenticidade. A concepção de uma unicidade identitária está ancorada numa visão de que o certo e o errado não se restringem a conseqüências calculadas, mas que o bem está relacionado a um conteúdo moral imanente ao sujeito. A moralidade tem, de certo modo, uma voz interior21. Essa voz interior, inaugurada pela modernidade difere qualitativamente da visão de bem dos antigos,. 20 21. IDEM, pg. 96. TAYLOR, 2002, pg. 243..

(26) 25 A noção antiga do bem, quer ao modo platônico, como chave da ordem cósmica, quer na forma do bem viver a Aristóteles, estabelece um padrão para nós na natureza, independentemente de nossa vontade. A noção moderna de liberdade que se desenvolve no século XVII retrata isso como a independência do sujeito, sua determinação de seus próprios propósitos sem interferência da autoridade externa. A segunda veio a ser considerada incompatível com a primeira.22. Não se trata aqui de encontrar a fórmula do bem em si mesmo, objetivamente perceptíveis e universalmente válidas, mas de ouvir a voz da moralidade que só é palatável ao sujeito na sua originalidade autônoma. O igual respeito estaria atrelado ao reconhecimento de todos em sua autenticidade. O que o final do século XVIII acrescenta é a noção de originalidade. Isso ultrapassa o conjunto fixo de vocações, chegando a noção de que cada ser humano tem uma “medida” original e irrepetível. Somos todos chamados a viver de acordo com nossa originalidade. 23. A autenticidade faz parte de uma concepção iluminista segundo a qual os indivíduos possuem um conteúdo moral interno imanente, uma idéia de Bem. Essa voz da natureza dentro de nós, nos guia na direção ‘da coisa certa a fazer ’, o importante a ser dito é que não fazemos devido a pressões externas, mas devido a nossa voz interior, que Rousseau chamou de “sentimento de existência24”. Esse conceito ganha, porém sentido crucial graças ao pensamento pós-Rousseau, ligado ao nome de Herder. Herder apresentou a idéia de que cada um de nós tem um modo original de ser humano: cada pessoa tem sua própria medida.25 O conceito de originalidade herderiano atinge dois níveis; originalidade do indivíduo, e originalidade de um povo. Na mesma 22. TAYLOR, 1997, pg. 113. . Idem, 482. 24 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os Devaneios do Caminhante Solitário. Brasília: UNB, 1986. pg76. 25 TAYLOR, 2002, Pg 244. 23.

(27) 26 intensidade que cada indivíduo possui sua própria medida cada povo possui também um caráter peculiar, seu volksgeist, devendo ser fiel a ele. O desrespeito de um povo a sua cultura autêntica gera, na melhor das hipóteses, um estrangeiro de segunda categoria. A natureza humana seria como um projeto a ser expresso; cada ser humano, cada geist, seria uma possibilidade expressão. A maneira pela qual este geist exprime-se, determina sua autenticidade ou seu fracasso. Só há uma maneira de fugir do fracasso: obedecendo a voz da natureza que só é passível de ser sentida quando entramos em contato com o nosso ser interior. E é partir da fidelidade a essa voz interior que devemos nos expressar:. A individuação expressiva tornou-se um dos pilares da cultura moderna. Tanto que mal a percebemos, e achamos difícil aceitar que seja uma idéia tão recente na história humana e que teria sido incompreensível em épocas anteriores. Além disso, essa noção de originalidade como vocação não se aplica somente aos indivíduos. Herder também a usou para formular uma noção de cultura nacional. Diferentes Völker têm sua forma própria de ser e não devem traí-la macaqueando os outros. (...) Essa é uma das idéias originadoras do nacionalismo moderno.26 O princípio do igual respeito, característica central da modernidade apóia o seguinte conflito: uma primeira noção requer que tratemos o individuo de uma maneira avessa às diferenças. Uma segunda noção afirma que devemos promover a particularidade. A partir desse dilema que é lançado o desafio maior da política moderna: como reconhecer o direito à diferença respeitando o direito a igual cidadania?. 26. TAYLOR, 1997, 482..

(28) 27 I.2 - ROUSSEAU E KANT: AFINIDADES (IR)RECONHECIDAS. A política do reconhecimento veio a significar duas coisas distintas, comumente antagônicas, e inseparavelmente vinculadas. De um lado ressalta-se a política do universalismo que enfatizou a igual dignidade de todos os cidadãos, política cujo conteúdo tem sido a equalização de direitos e privilégios. Em contrapartida o desenvolvimento da moderna noção de identidade, originou a política da diferença. Todos devem ter tido reconhecido sua identidade peculiar. Eis a essência do problema e que é talvez a maior contribuição de Charles Taylor em Argumentos Filosóficos; como reconhecer politicamente as diferenças, a originalidade de cada identidade, numa mesma constituição sem gerar discriminação ou favoritismos, e como universalizar a igualdade sem suprimir as diferenças individuais? Essa problemática se apóia em duas tradições distintas do liberalismo na teoria política: Rousseau e Kant. No modelo político rousseauneano três coisas são interligadas: a liberdade, a ausência de papéis determinados, e o propósito comum. A liberdade dos cidadãos permanece em consonância com sua igual dignidade, sem existir uma desigualdade política fundamental. Esses cidadãos em conjunto deliberam o bem comum sob o signo da Vontade Geral. O problema é que em nome da Vontade Geral, desde os jacobinos, cometeram-se algumas das mais terríveis barbáries sociais. Segundo Taylor, mesmo onde o terceiro elemento é descartado, a fusão entre liberdade igual com a ausência de.

(29) 28 diferenciação e papéis tem sido o motor da supressão das diferenças individuais, como no feminismo27. Outra vertente da tradição democrática é apresentada por Kant. Esses modelos não reconhecem elementos como Vontade Geral, ou diferenciação de papéis, eles visam apenas a uma igualdade de direitos concedidos aos cidadãos. Segundo Taylor, nessa discussão se confrontam duas visões de liberalismo. A primeira, mais radical, defende uma pauta de direitos, na qual todos os indivíduos são considerados igualmente, é o modelo kantiano, criticado por não abarcar as diferenças. Outra perspectiva é a de um liberalismo mais moderado que em casos extremos estabelece metas comuns, aceita certas diferenciações entre os indivíduos, visando justamente o reconhecimento de sua autenticidade. Charles Taylor filia sua teoria política à essa tese. Os pensadores tipicamente idealizados por Taylor são Kant e Rousseau. Há comumente na teoria política contemporânea uma contraposição dessas duas figuras, onde Rousseau e seus sucessores são usados como representantes do comunitarismo enquanto Kant e os seus, como símbolos do liberalismo. A despeito das idiossincrasias das duas tradições, que não temos a intenção de debater aqui, há entre as bases das duas colunas uma afinidade eletiva mais profunda do que se imagina. Os conceitos que servem de base da ação política para Rousseau e Kant são respectivamente os de “Vontade Geral” e “Imperativo Categórico”. Há uma identificação de Rousseau com o modelo decisionístico de democracia (a marca central desse modelo decisionístico é que a deliberação política ocorreria a partir da agregação da maioria dos votos de uma dada comunidade). Esse é o ponto de partida para se acusar Rousseau de teórico da tirania da maioria. Esta conclusão ocorre devido a um mal-entendido dos 27. Idem, Pg 259..

(30) 29 conceitos rousseauneanos de Vontade de Todos e Vontade Geral. Para Rousseau existe uma diferença substancial entre esses dois termos, que ele deixa bem claro nos cinco primeiros capítulos do livro 2 de “O Contrato Social28”. Seguem-se duas citações expressivas da diferenciação: Há comumente muita diferença entre Vontade de Todos e Vontade Geral. Esta se prende somente ao interesse comum; a outra ao interesse privado e não passa de uma soma de vontades particulares29. E mais: deve-se compreender nesse sentido que menos que o número de votos, aquilo que generaliza a Vontade é o interesse comum que os une30. A vontade geral não é a vontade de todos ou da maioria, mas também não pode ser caracterizada como vontade individual, seria então um substrato ético que uniria o particular com o geral, a parte com o todo. E o que garantiria o sucesso dessa operação? Resposta: Um elemento muito apreciado pelo iluminismo e quase insuspeito no século XVIII; a razão. Há em Rousseau (como em todo seu contexto histórico-filosófico) a crença de que no silêncio das paixões, pensando racionalmente, as decisões corretas seriam alcançadas. O propósito comum existente no pensamento de Rousseau, a partir da Vontade Geral e do bem comum, não deve ser confundido com a quantificação de um horizonte coletivo, o conceito de Vontade Geral é o horizonte ético compartilhado pela comunidade, e não o resultado prático. Kant, como se sabe, possui como pedra angular de sua filosofia do direito e política o imperativo categórico. Na “Crítica da Razão Prática” define o imperativo categórico pela máxima: Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre como princípio de uma legislação universal.31 O imperativo categórico é um. 28. In Os Pensadores, Abril Cultural. Idem, Pg 91. 30 Idem, pg 97. 31 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Martin Claret, PG 40. 29.

(31) 30 dever moral a priori da razão, definido a partir dos princípios da razão prática pura. Isso significa dizer que os seres humanos são moralmente impelidos a agir. Essa ação é individualmente motivada e regulada subjetivamente. Se existe uma vontade, ela pertence a um ator, e sua manifestação é regulada pelo que Kant denomina ‘autonomia’ (capacidade de agir racionalmente sozinho). Essa é a diferença entre leis morais e jurídicas, as morais são interiormente reguladas, as jurídicas, por sua vez, externamente. A despeito da carga de individualismo que este conceito carrega, não podemos afirmar que o imperativo categórico autojustifica a ação particular. O imperativo categórico apesar de motivado e regulado subjetivamente, só pode ser avaliado em relação ao Outro. É a capacidade de universalização e convívio numa mesma atmosfera de vontades distintas que define a validade da ação individual.. Princípios práticos são proposições que encerram uma determinação geral da vontade, trazendo em si várias regras práticas. São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira unicamente para sua vontade; são por outro lado, objetivos ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é válida para a vontade de todo ser racional32.. Tanto Rousseau quanto Kant tentam superar a dicotomia entre particular e universal, a diferença é que Rousseau o faz a partir do geral, dando primazia a ele, enquanto Kant realiza esta tarefa do particular. O que Charles Taylor faz é utilizar o modelo rousseauneano para justificar uma submissão do indivíduo. a uma decisão. coletiva, coisa que segundo Taylor o procedimentalismo kantiano não permitiria. Aí. 32. Idem, Pg. 27..

(32) 31 reside o engano conceitual de Taylor: em Rousseau quando o indivíduo obedece a uma lei, obedece a si mesmo, pois participou legitimamente do processo de sua criação. Mais que isso, a condição da liberdade é a obediência a essa lei, pois para Rousseau, ser livre é obedecer às leis. No pensamento de Kant a liberdade também está sujeita a leis, haja vista que define (como já dissemos) dois tipos de leis. A obediência às leis jurídicas também seria condição de liberdade, pois na filosofia de Kant o Estado e o direito são a positivação político-jurídica da lei moral, do imperativo categórico.. I.3 – TAYLOR: O DEBATE LIBERAL-COMUNITÁRIO – A questão dos Bens.. Em seu artigo “Propósitos Entrelaçados: o Debate Liberal-Comunitário”33, Charles Taylor chama a atenção que as diferenças entre liberais e comunitários sobre a teoria da justiça mais parece um debate entre dois “partidos”; de um lado estariam pensadores como John Rawls e Ronald Dworkin (partido L) e do outro, pensadores como Michael Sandel, Michael Walzer, e Alasdair MacIntyre (partido C). Apesar das diferenças genuínas entre esses dois grupos Taylor afirma que existe também uma grande quantidade de propósitos entrelaçados e mesmo confusão na apresentação dos termos do debate.. Segundo o autor, essa confusão ocorre porque duas questões distintas são. abordadas em conjunto, indistintamente. Taylor denomina essas questões de ‘questões ontológicas’ e ‘questões de defesa’. Por questões ontológicas Taylor compreende os fatores reconhecidos e invocados para explicar a vida social. Fazem parte dos termos aceitados 33. TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos, São Paulo: Loyola, 2000..

(33) 32 como últimos na ordem de dessa explicação. É o debate existente entre ‘atomistas’ e ‘holistas’. Os atomistas podem ser entendidos como individualistas metodológicos; nessa corrente duas coisas são relevantes: (a) a ordem de explicação, você pode e deve explicar ações, estruturas e condições em termos das propriedades dos constituintes individuais; e em (b) a ordem da deliberação, você pode e deve explicar as ações em termos das propriedades dos constituintes individuais. 34 Questões de defesa, por sua vez, refere-se às posições morais ou políticas adotadas. Dentro de uma ampla possibilidade de posições podemos identificar de um lado os defensores de primazia das liberdades e direitos individuais, e de outro extremo defensores da primazia da vida comunitária e do bem das comunidades.35 Aqui se encontra o debate entre ‘individualistas’ e ‘coletivistas’. Aqui podemos encontrar as diferenças entre liberais, como Dworkin, defensores da neutralidade do Estado em relação às concepções de boa vida adotadas pelos cidadãos, e de outros pensadores que acreditam que uma sociedade democrática precisa de alguma definição aceita em comum de boa vida – esta é a posição a ser defendida por Taylor. Para exemplificar essa questão, Taylor utiliza a obra “Liberalism and the Limits of Justice” de Michael Sandel36. Segundo Taylor esse livro é ontológico, no sentido a pouco descrito, enquanto que a resposta que a vertente liberal da teoria política tem dado é sobretudo uma resposta de defesa. Nessa obra Sandel demonstra que diferentes formas de engajamento social (atomistas e holistas) demandam diferentes concepções de identidade e de self (selves ‘libertos’ e selves situados). Segundo Taylor esse trabalho é uma contribuição à ontologia social, e ontologicamente essas teses devem ser 34. Idem, pg 197. Idem, pg 198. 36 SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge, Inglaterra, 1982. 35.

(34) 33 compreendidas. Assumir uma posição ontológica não equivale a defender coisa alguma. Sua posição ontológica, se verdadeira, pode mostrar que a ordem social favorita de seu vizinho é uma impossibilidade ou acarreta um preço que ele ou ela não leva em conta.mas isso não deve nos induzir a pensar que a proposição equivalha à defesa de alguma afirmativa.37 O que Sandel realiza, segundo Taylor, é um questionamento sobre a possibilidade de edificar uma comunidade forte em torno da compreensão comum que faça da justiça a principal virtude, ou se essa mesma comunidade deve definir algum outro bem que defina a vida comunitária. Nesse ponto reside a fonte dos enganos da teoria política, quando essas afirmações normativas são tomadas como recomendações38. Cada posição do debate atomismo-holismo pode ser combinada com qualquer posição da questão individualista coletivista. Há não apenas individualistas atomistas (Nozick) e coletivistas holistas (Marx), mas também individualistas holistas (Humboldt) – e até coletivistas atomistas.39 Taylor se considera um individualista holista. E considera surpreendente que um posicionamento ontologicamente favorável ao holismo possa ser confundido com uma defesa do coletivismo. Segundo o autor isso decorre de um preconceito atomista que assola boa parte da teoria filosófica anglo-saxã. Esse liberalismo ontologicamente desinteressado inclinar-se-ia à ignorância dessas diferenças. Uma das explicações para essa ignorância se deve a predominância de concepções identificadas com o liberalismo procedimental. Nessa corrente a sociedade é identificada como uma associação de indivíduos cada um com seu ideal e com seu plano de boa vida. A função da sociedade deve ser de facilitar esse plano e vida o máximo possível e seguir 37. TAYLOR, 2000, pg 199. Idem, pg 201. 39 Idem, pg 201. 38.

(35) 34 um princípio de igualdade.40 As éticas das sociedades procedimentais são antes uma ética do direito que uma ética do bem. O que importa nelas é a igualdade no tratamento dos indivíduos e a maximização dos direitos e liberdades individuais. Ela não define aprioristicamente os bens que devem ser promovidos, mas antes define que procedimentos devem ser adotados na promoção das preferências individuais. Essa vertente política é comumente definida como irrealista por, segundo Taylor, não levar em consideração as impossibilidades ontológicas e comunitárias de uma proposta procedimental. Essa crítica se deve a ausência de uma concepção compartilhada de bem. A viabilidade de bens socialmente endossados pela comunidade foi levantada por pensadores filiados a vertente cívico-humanista. Essa vertente possui como um dos principais eixos temáticos quais as condições para a existência de uma sociedade livre. Para esta tradição, que conta com pensadores como Maquiavel, Montesquieu e Tocqueville,. toda sociedade política exige alguns sacrifícios e requer algumas. disciplinas de seus membros41. A diferença entre os sacrifícios e disciplinas exigidos numa sociedade livre e as mesmas exigências feitas a partir de um regime despótico e que, no despotismo a disciplina é mantida pela coerção, enquanto que numa sociedade livre ela é mantida pela vertu dos cidadãos. Essa vertu pode ser alcançada quando os cidadãos enxergam as leis como uma extensão deles mesmos, como um ato de sua própria vontade. Nesse ponto reside o que Taylor define como patriotismo. Este patriotismo se baseia numa identificação com os outros num empreendimento comum. 40 41. Idem, pg 202. Idem, pg 202..

(36) 35 específico42. A república funciona como esse empreendimento comum que vincula os cidadãos numa espécie de solidariedade vinculada a partir de uma história comum. Em contraposição a esse ideário republicano, influenciado pela visão que pensadores como Thomas Hobbes, John Locke, e Bentham ajudaram a construir, a sociedade é compreendida como algo independente da ética republicana e dos objetivos coletivos. Para essa visão as sociedades são estabelecidas como conjuntos de indivíduos que objetivam benefícios individuais através da ação comum. A ação é comum, mas sua meta permanece individual. O bem comum é obtido a partir de bens individuais, sem deixar restos.43 Uma das raízes do pensamento atomista reside num equívoco ontológico que ignora as diferenças entre questões para mim e para você e questões para nós. Para Taylor uma questão pode ser para mim quando percebo algo individualmente; mas a partir do momento que eu comunico essa percepção, ou seja, a partir do momento que eu inicio um diálogo sobre essa percepção, ela passa a ser algo para nós. Uma conversação não é a coordenação de ações de indivíduos diferentes, mas uma ação comum nesse sentido forte, irredutível; ela é nossa ação.44 Mas a teoria da linguagem tayloriana ainda guarda uma outra mudança importante que possui reflexos diretos em sua teoria política dos bens. É a passagem que a comunicação realiza da intimidade para o espaço público. Num primeiro plano, quando há uma comunicação, há um diálogo, uma partilha de informações que são relevantes. Aqueles a quem comunicamos coisas fazem parte de nossa intimidade, são aqueles que partilhamos o que é para nós. Mas a partir que essas informações relevantes tomam parte 42. Idem, pg 203. Idem, pg 205. 44 Idem, pg 205. 43.

(37) 36 na mídia e ocupam um lugar no espaço público elas mudam sua natureza. Eles deixam de ser para mim-e-você e se tornam para-nós45. Taylor diferencia as coisas que tem valor para você e para mim e coisas que tem valor para nós. São eles 1- Bens ‘mediatamente’ comuns; esses compreendem aqueles bens que podem ser fruídos individualmente ou compartilhadamente. Cada momento dessa fruição conota uma valoração distinta. Uma piada, como exemplifica o próprio Taylor, pode ter uma significação se a leio sozinho, como pode ter outra significação se escuto alguém contando essa mesma piada. 2- Bens imediatamente comuns; essa categoria engloba aqueles bens que pressupõe por si mesmos um significado comum, sendo por isso mesmo mais valiosos. A amizade é um exemplo de um bem imediatamente comum. 3- Bens convergentes; daqui faz parte a ação instrumental coletiva. Como por exemplo a economia, a defesa nacional, a segurança; são bens coletivamente proporcionados que não podemos desfrutar de outra maneira. Podemos falar normalmente desses bens como ‘comuns’ ou ‘públicos’.46. As repúblicas, na tradição cívico-humanista, seriam movidas a partir dos bens imediatamente partilhados. O cidadão observa a lei como uma representação de sua dignidade e da dignidade de seu concidadão, imediatamente. A lei não funcionaria apenas como um bem convergente, como um mecanismo instrumental de persecução dos 45. Para ilustrar essa passagem do artigo de Taylor poderíamos utilizar um adágio popular que diz “Todo mundo sabe; todo mundo sabe que todo mundo sabe... mas ninguém comenta”. Seria como um segredo partilhado que as pessoas evitam falar publicamente, como por exemplo um comportamento ilícito de um político: existe um ‘conhecimento’ de seus atos, mas essa interpretação passa a ser qualitativamente diferenciada sua interpretação quando esse comportamento irrompe na mídia, ou em algum fórum que o torne público. 46 TAYLOR, 2000, pg 206-7..

(38) 37 objetivos individuais. O vínculo de solidariedade com meus compatriotas numa república que funcione se baseia num sentido de destino partilhado em que o próprio partilhar tem valor.47 A definição do regime republicano requer uma ontologia distinta do atomismo. Ela deve diferenciar a ação coletiva (convergente) da ação comum (imediata). A disciplina subjacente de um regime republicano, segundo Taylor, seria a única capaz de animar o patriotismo numa sociedade livre. A solidariedade republicana está na base da liberdade48. A liberdade aqui é compreendida como liberdade de participação. As instituições livres dependem da participação dos cidadãos. O modelo cívico-humanista engloba as liberdades negativas em seu arranjo institucional, mas nesse modelo as liberdades negativas estão comumente submetidas às liberdades republicanas de participação. O patriotismo está associado à liberdade. Aqui se inicia a crítica republicana ao liberalismo procedimental (críticas endossadas por Charles Taylor): esse modelo é ontologicamente falho por entender os indivíduos como possuidores de planos individualmente valorados e independentes uns dos outros. E é falha quanto a uma questão de defesa por ser instrumentalmente projetada unicamente para a busca de bens convergentes. Uma sociedade liberal pode excluir o bem comum socialmente endossado, mas não pode excluir o direito como é comumente compreendido. Aqui residiria outra falha do liberalismo na compreensão dos bens. O conceito de bem pode ter duas interpretações: de um lado pode ser compreendido em sentido amplo como o conjunto das coisas valiosas que buscamos; e pode ser compreendido em sentido estrito como planos de vida ou modos de vida assim. 47 48. Idem, pg 208. Idem, pg 209..

(39) 38 avaliados49. Uma sociedade liberal pode não possuir um bem no sentido estrito, mas não pode se furtar de considerar o direito como um bem em sentido amplo. Taylor realiza uma leitura ontológica do liberalismo. Nessa leitura, o patriotismo poderia ser conciliado com o liberalismo, a partir do momento que os cidadãos observassem o ordenamento jurídico como um bem a se defendido em comum. Ele quer dizer que uma defesa política do liberalismo não obriga uma visão ontologicamente atomista. Mas na prática um liberal procedimental pode ser holista; e, mais do que isso, o holismo captura muito melhor a prática real de sociedades que se aproximam desse modelo ... é essencial não confundir a questão ontológica do atomismo-holismo com questões de defesa que opõe individualismo a coletivismo.50 Taylor durante toda sua exposição, contrapõe dois grandes modelos: de um lado o modelo ‘A’, nesse modelo há uma concentração nos direitos individuais, e num direcionamento das ações governamentais que seja movido a partir das preferências dos cidadãos. Esse é o núcleo que deve ser protegido. De outro lado Taylor apresenta o modelo ‘B’; para este modelo é na participação num autogoverno que reside a essência da liberdade. É essa liberdade que deve ser assegurada. O autor percebe esses dois modelos como incomensuráveis. Pessoas com uma visão atomista vão se inclinar ao modelo A, enquanto holistas vão se inclinar ao modelo B. Não interessa ao autor, nesse momento dizer qual o modelo correto, mas refletir sobre qual desses modelos pode servir de pano de fundo ontológico que defina a dignidade do cidadão num patriotismo viável.51 Taylor exemplifica que certas sociedades além da democracia, possuem como base de seu patriotismo uma cultura nacional que gira em torno de instituições livres, mas 49. Idem, pg 210. Idem, pg 214. 51 Idem, pg 217. 50.

(40) 39 que também incorporam como elemento definidor de sua identidade uma língua ou história comum. Taylor cita o exemplo do Quebec como destaque de seu argumento. Para essa sociedade (e ele deixa claro que para muitas outras) o procedimentalismo liberal não se adequa porque elas não podem se considerar neutra em relação a todas questões consideradas virtuosas. Uma sociedade como o Quebec não pode deixar de se dedicar a defesa e à promoção da língua e da cultura francesas, mesmo que isso envolva alguma restrição às liberdades individuais. ... Um governo capaz de ignorar esse requisito ou não estaria refletindo a vontade da maioria ou mostraria uma sociedade a tal ponto desmoralizada que estaria próxima da dissolução.52 Taylor oferece o caso do Quebec como exemplo empírico de análise. Uma tensão surgida quanto aos direitos naturais do Quebec quase gerou sua separação do resto do Canadá. O Canadá estabeleceu uma pauta de direitos em 1982 (Carta de Direitos Canadense) que alinhava todos os indivíduos do país na mesma condição jurídica. O Quebec sentiu-se afetado, pois dispunha de uma agenda de reivindicações visando a defesa da língua francesa. No fim das contas o Quebec conseguiu a aprovação de uma carta de direitos especiais visando a proteção da língua francófona. Taylor avalia se essa variação política é condizente com uma sociedade liberal. Indiscutivelmente, cada vez mais sociedades se mostram hoje multiculturais, no sentido de incluir mais de uma comunidade cultural que deseja sobreviver. A rigidez do liberalismo procedimental pode rapidamente tornar-se impraticável no mundo de amanhã53.(...) Onde a natureza do bem requer sua busca comum, essa é a razão para que ele seja uma questão de política. 52 53. Idem, pg 220. Idem, Pg 266..

(41) 40 pública54. De acordo com Taylor, a sobrevivência cultural do Quebec dependia de certas medidas restritivas quanto ao uso de outras línguas, que não a francesa. Essas medidas diferenciadas, não se aplicariam a problemas como pena de morte, teriam um alcance mais limitado. Uma sociedade liberal pode dispor desses métodos de contenção das liberdades individuais desde que haja uma boa razão para isso.. I.4 – INAUTENTICIDADE E AUTENTICIDADE EM HEIDEGGER. I.4.1 – A ONTOLOGIA DE SER E TEMPO. Martin Heidegger tem um papel fundamental na teoria política do reconhecimento. Sua obra Ser e Tempo55 exerce uma influência decisiva não só no tema por este trabalho abordado mas em grande parte do programa filosófico do século XX. Heidegger se debruça sobre um problema ontológico, ou seja, o objetivo de trabalho é a investigação das questões que envolvem o significado do ser. O significado do ser é aparentemente uma questão enfadonha, seja pela sua banalidade ou pelo seu caráter deveras enigmático. O próprio Heidegger reconhece que este sempre foi um dos temas mais importantes da história da filosofia, mas surpreendentemente a tradição filosófica só nos oferece explicações gerais. Essa questão, fundamental em seu valor, por envolver aquilo de que em última análise estamos falando em qualquer 54 55. Idem, Pg 264. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, 1999..

(42) 41 circunstância, foi, ao ver de Heidegger “trivializado” pela tradição filosófica que deveria questioná-lo, aprofundar-se nele. Sob outro aspecto um possível enfado diante da questão do ser se deve a alguns intrigantes preconceitos. O primeiro deles vem do fato de supor o ser como o mais universal dos conceitos que designa o que todos temos em comum, o que todas as coisas possuem intrinsecamente. O segundo pressupõe o ser como indizível, haja vista que algo universal como o ser que engloba todas as coisas teria um significado extremamente vago, não havendo uma característica definitiva. Um terceiro preconceito advém que todos já saberíamos o que é o ser, pela banalidade do verbo, que é utilizado com naturalidade por qualquer criança. Não se deve esquecer que esses preconceitos contra a ontologia não são esclarecimentos, mas suposições sobre o ser, são o que Heidegger define como juízos ontológicos, enraizados na filosofia antiga.. Heidegger responde a esses juízos. ontológicos da seguinte maneira: em primeiro lugar, sobre a universalidade do conceito do ser, o fato de ser universal não exime a característica da obscuridade, o que Heidegger defende como o mais obscuro dos conceitos. Sobre o segundo juízo, o da indizibilidade, o de ser indefinível, Heidegger aponta que se é indefinível é portanto diferente de todas as entidades que interagimos na vida cotidiana, o que nos impele a diferenciar o que é ôntico do que é ontológico. As questões ontológicas envolveriam questões sobre o ser enquanto tal; questões ônticas diriam respeito, por seu turno a questões sobre entidades particulares. Sobre o terceiro aspecto, se temos uma compreensão adequada do que é o ser, não devemos esquecer que essa ‘compreensibilidade mediana’ merece um estudo.

(43) 42 mais aprofundado56. Porém esse simples (simples?) ato de perguntar suscita uma algo de muito relevante na teoria heideggeriana,57 é sobre o ato de perguntar e retomar questões que o ser se apóia. Podemos abordá-la em cinco dimensões: (1) Aquilo sobre que se pergunta é o ser; (2) aquilo a que se pergunta é o ente; (3) aquilo a que se pergunta deve ser encarado como entidades específicas, ou seja, ônticas, interrogadas em seu ser; (4) o significado do ser, aquilo que deve ser encontrado. Outra questão de grande importância quando se questiona é saber de onde a questão provém, qual a origem da questão, que é a chave da questão ontológica, (5) quem nós somos quando fazemos a pergunta, qual a essência de quem pergunta?58 É no quinto aspecto que reside o problema fundamental de Heidegger. A resposta poderia esclarecer o que seria, ou é a natureza humana. É não é de estranhar que essa questão define o sentido de nossa própria existência, haja vista que é uma questão permanente, ainda que passe desapercebida. O conceito que Heidegger utiliza para definir a essência do perguntador (frager) é dasein. A compreensão do dasein e da ontologia requer uma metodologia apropriada. Compreender é ampliar o horizonte de quem questiona, questionar o ser requer uma postura hermenêutica. A hermenêutica do Dasein59 consiste nas interpretações, reinterpretações e assim sucessivamente de nossas interpretações do ser. A hermenêutica do Dasein é ôntica e ontológica. Ela parte da explicação de entidades particulares rumo a explicação de entidades gerais como é ontológica, partindo. 56. HEIDEGGER, 1999. Pg 29 – 30. IDEM, Pg 30. 58 Somos aqui devedores da clareza da obra de Jonathan Rée, História e Verdade em Ser e Tempo. UNESP, 1999. 59 IDEM, pg 69. 57.

(44) 43 das premissas fundamentais do ser para o desvelamento de tipos particulares; ambas entrelaçadas. Existir pressupõe ontologizar.. O Dasein não é apenas uma entidade que ocorre em meio a outras entidades. É antes uma entidade que se distingue onticamente pelo fato de que, em seu ser, é esse próprio ser que importa para ela. Mas então, a essa constituição do ser do Dasein pertence o fato de que, em seu ser, está presente uma relação dirigida para esse ser. E isso, por outro lado, significa que, de certa maneira e de forma em certa medida explícita, o Dasein entende-se a si mesmo em seu ser. É peculiar a essa entidade que, com e por meio de seu próprio ser, esse ser a ela se revele. A compreensão do ser é, ela própria, uma característica determinante do ser do Dasein. O que distingue onticamente o Dasein é que ele é ontológico60.. Quando investigamos questões ontológicas devemos lembrar que nós não apenas investigamos o Dasein, nós não apenas temos um Dasein, mas nós também somos um Dasein. Toda hermenêutica do Dasein também é uma hermenêutica sobre o Dasein. e sobre o que se fundamentaria essa ontologia fundamental do Dasein segundo Heidegger? A ontologia fundamental deve ser buscada na analítica existencial do Dasein61. A base de análise do Dasein é a própria existência do Dasein. A existência, e a essência de quem pergunta se desvela na existência de quem pergunta e não há outra base senão ela mesma. Nós somos Dasein. Mas em absoluto nós produzimos seu significado livremente, subjetivamente. Onticamente, é claro, o Dasein não é apenas o mais próximo, ou mesmo mais próximo – nós próprios somos Dasein, cada um de nós. Apesar disso, ou. 60 61. Idem, pg 38 Idem, pg 40..

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