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Martin Heidegger tem um papel fundamental na teoria política do reconhecimento. Sua obra Ser e Tempo55 exerce uma influência decisiva não só no tema por este trabalho abordado mas em grande parte do programa filosófico do século XX.

Heidegger se debruça sobre um problema ontológico, ou seja, o objetivo de trabalho é a investigação das questões que envolvem o significado do ser. O significado do ser é aparentemente uma questão enfadonha, seja pela sua banalidade ou pelo seu caráter deveras enigmático. O próprio Heidegger reconhece que este sempre foi um dos temas mais importantes da história da filosofia, mas surpreendentemente a tradição filosófica só nos oferece explicações gerais. Essa questão, fundamental em seu valor, por envolver aquilo de que em última análise estamos falando em qualquer

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Idem, Pg 264.

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circunstância, foi, ao ver de Heidegger “trivializado” pela tradição filosófica que deveria questioná-lo, aprofundar-se nele.

Sob outro aspecto um possível enfado diante da questão do ser se deve a alguns intrigantes preconceitos. O primeiro deles vem do fato de supor o ser como o mais universal dos conceitos que designa o que todos temos em comum, o que todas as coisas possuem intrinsecamente. O segundo pressupõe o ser como indizível, haja vista que algo universal como o ser que engloba todas as coisas teria um significado extremamente vago, não havendo uma característica definitiva. Um terceiro preconceito advém que todos já saberíamos o que é o ser, pela banalidade do verbo, que é utilizado com naturalidade por qualquer criança.

Não se deve esquecer que esses preconceitos contra a ontologia não são esclarecimentos, mas suposições sobre o ser, são o que Heidegger define como juízos ontológicos, enraizados na filosofia antiga. Heidegger responde a esses juízos ontológicos da seguinte maneira: em primeiro lugar, sobre a universalidade do conceito do ser, o fato de ser universal não exime a característica da obscuridade, o que Heidegger defende como o mais obscuro dos conceitos. Sobre o segundo juízo, o da indizibilidade, o de ser indefinível, Heidegger aponta que se é indefinível é portanto diferente de todas as entidades que interagimos na vida cotidiana, o que nos impele a diferenciar o que é ôntico do que é ontológico. As questões ontológicas envolveriam questões sobre o ser enquanto tal; questões ônticas diriam respeito, por seu turno a questões sobre entidades particulares. Sobre o terceiro aspecto, se temos uma compreensão adequada do que é o ser, não devemos esquecer que essa ‘compreensibilidade mediana’ merece um estudo

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mais aprofundado56. Porém esse simples (simples?) ato de perguntar suscita uma algo de muito relevante na teoria heideggeriana,57

é sobre o ato de perguntar e retomar questões que o ser se apóia. Podemos abordá-la em cinco dimensões: (1) Aquilo sobre que se pergunta é o ser; (2) aquilo a que se pergunta é o ente; (3) aquilo a que se pergunta deve ser encarado como entidades específicas, ou seja, ônticas, interrogadas em seu ser; (4) o significado do ser, aquilo que deve ser encontrado. Outra questão de grande importância quando se questiona é saber de onde a questão provém, qual a origem da questão, que é a chave da questão ontológica, (5) quem nós somos quando fazemos a pergunta, qual a essência de quem pergunta?58

É no quinto aspecto que reside o problema fundamental de Heidegger. A resposta poderia esclarecer o que seria, ou é a natureza humana. É não é de estranhar que essa questão define o sentido de nossa própria existência, haja vista que é uma questão permanente, ainda que passe desapercebida. O conceito que Heidegger utiliza para definir a essência do perguntador (frager) é dasein. A compreensão do dasein e da ontologia requer uma metodologia apropriada. Compreender é ampliar o horizonte de quem questiona, questionar o ser requer uma postura hermenêutica. A hermenêutica do

Dasein59 consiste nas interpretações, reinterpretações e assim sucessivamente de nossas interpretações do ser.

A hermenêutica do Dasein é ôntica e ontológica. Ela parte da explicação de entidades particulares rumo a explicação de entidades gerais como é ontológica, partindo

56 HEIDEGGER, 1999. Pg 29 – 30. 57 IDEM, Pg 30. 58

Somos aqui devedores da clareza da obra de Jonathan Rée, História e Verdade em Ser e Tempo. UNESP, 1999.

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das premissas fundamentais do ser para o desvelamento de tipos particulares; ambas entrelaçadas. Existir pressupõe ontologizar.

O Dasein não é apenas uma entidade que ocorre em meio a outras entidades. É antes uma entidade que se distingue onticamente pelo fato de que, em seu ser, é esse próprio ser que importa para ela. Mas então, a essa constituição do ser do Dasein pertence o fato de que, em seu ser, está presente uma relação dirigida para esse ser. E isso, por outro lado, significa que, de certa maneira e de forma em certa medida explícita, o Dasein entende-se a si mesmo em seu ser. É peculiar a essa entidade que, com e por meio de seu próprio ser, esse ser a ela se revele. A compreensão

do ser é, ela própria, uma característica determinante do ser do Dasein. O que distingue onticamente o Dasein é que

ele é ontológico60.

Quando investigamos questões ontológicas devemos lembrar que nós não apenas investigamos o Dasein, nós não apenas temos um Dasein, mas nós também somos um Dasein. Toda hermenêutica do Dasein também é uma hermenêutica sobre o Dasein. e sobre o que se fundamentaria essa ontologia fundamental do Dasein segundo Heidegger?

A ontologia fundamental deve ser buscada na analítica existencial do Dasein61. A base

de análise do Dasein é a própria existência do Dasein. A existência, e a essência de quem pergunta se desvela na existência de quem pergunta e não há outra base senão ela mesma. Nós somos Dasein. Mas em absoluto nós produzimos seu significado livremente, subjetivamente. Onticamente, é claro, o Dasein não é apenas o mais próximo, ou mesmo

mais próximo – nós próprios somos Dasein, cada um de nós. Apesar disso, ou

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Idem, pg 38

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exatamente por isso, ontologicamente ele é o mais distante.62 O Dasein é produzido na história, na tradição. E é, segundo Heidegger, numa compreensão equivocada de historicidade que reside o erro na compreensão de nós mesmos.

Todos nascemos dentro de uma tradição. Essa tradição nos fornece uma linguagem própria, fruto do desenvolvimento histórico. Quando nos expressamos, utilizamos um legado de incontáveis gerações que nos antecederam. Cada tradição é única, e seu legado um tesouro. A identificação com um historicismo herderiano para por aqui. Pois se por um lado Heidegger reconhece que a tradição é um tesouro cultural, pois revela o que cada povo possui em sua unicidade. É uma compreensão errônea dessa mesma tradição que impede o Dasein de atingir sua autenticidade. Quando nós investigamos uma tradição onticamente, apreendemos em relação a um determinado modo temporal, o presente. Isso poderia ser traduzido como observar o desenvolvimento da história linearmente, como se a fidelidade a um certo povo, a uma determinada tradição cultural, obrigasse sua celebração. Essa celebração da tradição seria perniciosa pois impediria o Dasein de se ampliar. Esqueceria o futuro celebrando o passado. O que a primeira vista, ou mesmo sob a ótica do historicismo herderiano seria a marca da autenticidade, aqui é justamente seu oposto. Herdar uma tradição não é o mesmo que celebrá-la, muito menos negá-la. Consistiria em abri-la ao futuro.

O Dasein, explicitamente ou não, é seu passado. E não apenas no sentido de que seu passado está como que arrastando atrás dele, e que o que passou pertence ao Dasein como uma propriedade ainda existente que por vezes tem sobre ele efeitos posteriores. O Dasein “é” seu passado na maneira de seu ser que, falando grosso modo, a cada vez

“acontece” a partir de seu futuro... Seu próprio passado – e

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isso significa sempre o de sua “geração” – não segue atrás do Dasein, mas já vai sempre à frente dele.63

1.5 – CONCLUSÃO: Limites da Tese Tayloriana

A política do reconhecimento tayloriana suscita uma série de críticas. A mais candente delas é, talvez, a tensão existente entre ideal de autenticidade, universalismo de direitos e as liberdades individuais que caracterizam o liberalismo. Esse problema, que pensadores como Charles Taylor discutem, traz à tona um conflito teórico oriundo das bases do pensamento moderno. A aqui não são apenas dois conceitos que se contrapõem, e se refutam, mas duas tradições que exercem uma relação complexa de afinidades e distanciamentos.

Charles Taylor argumenta que onde a natureza do bem requer sua busca comum,

essa é a razão para que ela seja uma questão de política pública64. Talvez este seja o ponto mais controverso da tese de Taylor. Não exatamente pela declaração em si, mas principalmente quando faz questão de conciliar liberalismo com afirmações do tipo

natureza do bem e busca comum.

O arcabouço teórico utilizado por Taylor é uma associação entre o pensamento herderiano e o liberalismo político. Taylor evidencia a importância da autenticidade na formação da identidade moderna, e esta autenticidade individual é colocada lado a lado

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Idem, pg 48.

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Taylor, Charles. Argumentos Filosóficos. Pg 264. Taylor faz essa afirmação visando justificar que a natureza do bem do Estado do Quebec dependia da proteção da língua francesa por um dispositivo constitucional. Vide sua classificação dos bens.

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com a autenticidade coletiva, como faz Herder. Enquadrar um indivíduo ou coletividade em formas de vida que não sejam fiéis a sua originalidade única é como lançar o Dasein numa existência inautêntica. A defesa da autenticidade de um “Dasein social” pode ser considerada um bem comum, justificando inclusive, a subordinação dos direitos individuais em nome de políticas públicas que visem a manutenção daquele objetivo.

O que torna o argumento de Taylor problemático não é exatamente a asserção acima, mas sim sua conciliação com o que ele vem a chamar de liberalismo político. Já vimos que Taylor expõe dois tipos de liberalismo; o liberalismo 1 que é rigidamente procedimental, e o liberalismo 2, mais atenuado, defendido por Taylor. Segundo Taylor aquele liberalismo de tipo 1, que universaliza direitos e deixa questões pertinentes a identidade cultural, só para dar um exemplo, a cargo do indivíduo, seria ineficiente para tratar os problemas de sociedades complexas como as contemporâneas.65

Quando Taylor utiliza conceitos como natureza do bem e busca comum ele não apenas ressalta sua dívida com uma tradição historicista, mas acaba contradizendo conceitos basilares de qualquer corrente que se diga liberal.

Bem comum é um conceito extremamente problemático na tradição do liberalismo político desde que Schumpeter escreve Capitalismo, Socialismo e

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Jürgen Habermas esclarece o texto de Taylor da seguinte maneira: Com isso não se deve permitir ao Estado (no sentido do liberalismo 1) que ele persiga quaisquer outros fins coletivos a não ser garantir a liberdade individual ou o bem-estar e segurança pessoal de seus cidadãos. Ao contrário, o modelo alternativo (no sentido do liberalismo 2) espera do Estado que ele em geral garanta, sim, esses direitos fundamentais, mas que além disso também se empenhe em favor da sobrevivência e fomento de uma “determinada nação, cultura, ou religião, ou então de um número limitado de nações culturas e religiões.” HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Rio de Janeiro: Loyola, 2001; pg 244.

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Democracia. 66 Seguindo um programa de forte matiz weberiana, feriu de morte o que denominou de Doutrina Clássica da Democracia, assim resumida por Schumpeter:

A filosofia da democracia do século XVIII pode ser enunciada na seguinte definição: o método democrático é o arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir- se para realizar a vontade desse povo.67

Nesse modelo de democracia, há um pressuposto que os indivíduos são capazes de chegar ao discernimento do que é socialmente bom, ou mal, através da razão. Esta razão, por sua vez emanaria de cada consciência individual no silenciar das paixões, daí extrair-se-ia um substrato ético, comum a todas as consciências. Todas as deliberações fundadas nesse princípio resultariam no bem comum, ou pelo menos não seriam contrárias a ele. Schumpeter apresenta três argumentos centrais visando a superação dessa doutrina. O primeiro deles é que não existe algo que seja o bem comum unicamente

determinado,68 ou seja, não existe um bem que as pessoas concordem racionalmente. Para pessoas diferentes o bem comum significa necessariamente coisas diferentes.

O segundo argumento consiste que ainda que o bem comum signifique o mesmo para diferentes pessoas, isso não significaria respostas igualmente definidas para

questões isoladas69. Mesmo havendo certas concordâncias, em relação ao suprimento de

uma necessidade, a estratégia de solução variaria ad infinito.

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SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Zahar, 1984.

67 Idem, 313. 68 Idem, pg 314. 69 Idem, pg 315.

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A terceira objeção, em face dos argumentos apresentados anteriormente, é que não existe por assim dizer uma vontade geral que possa buscar esse bem comum. O bem comum, não é algo simplesmente inexistente, mas não pode ser perseguido por que não há uma vontade articulada que possa buscá-lo. Não existe, segundo Schumpeter uma vontade geral articulada por parte dos cidadãos que pudesse buscar o bem comum.70

Mesmo atentando para a diferença entre posições ontológicas e questões de defesa, Charles Taylor distancia sua posição ontológica e sua defesa política do liberalismo. Um dos argumentos basilares do liberalismo é que na defesa dos direitos individuais reside o cerne da democracia. Taylor foge dessa racionalidade; num artigo intitulado Republicanismo, Liberalismo e Racionalidade,71 Melo demonstra que a argumentação tayloriana se afasta do liberalismo (Melo o compara ao liberalismo de Rawls) tanto por questões ontológicas (Rawls seria um defensor do atomismo) quanto se afastaria do liberalismo por seu posicionamento político. Melo argumenta que entre o

modelo da participação ativa e o da “cidadania via judicial” – centrado na proteção de direitos – Taylor prefere o primeiro.

Taylor compreende a cultura, assim como Herder72, e, porquê não dizer, Heidegger, como linguagem. A formação da linguagem se dá em meio a uma rede de interlocução.

Este é o sentido em que não se ser um self por si só. Só sou um self em relação a certos interlocutores: de um lado, em relação aos parceiros

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Idem, pg 313.

71

MELO, Marcus André. Republicanismo, Liberalismo e Racionalidade. Lua Nova, 2002; n 55-56, pg 57- 84. pg 68.

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Taylor has been one of the principal exponents of this herderian vision of language in Anglo-American philosophy. BENHABIB, 2002; pg 55.

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de conversação que foram essenciais para que eu alcançasse minha auto-definição; de outro, em relação aos que hoje são cruciais para a continuidade da minha apreensão de linguagens de autocompreensão – e, como é natural, essas classes podem sobrepor-se. Só existe um self no âmbito do que denomino “redes de interlocução”.73

Não faz sentido falar de self fora de seu contexto lingüístico. Um self só pode ser autêntico, só pode existir, dentro dessa rede de interlocução. A preservação dessa rede de interlocução é por sua vez condição sine qua non da autenticidade individual. Defender a comunidade lingüística é tão importante quanto defender os direitos subjetivos do indivíduo. Esta é uma razão para que esta defesa seja passível de uma política pública que a proteja. O bem comum, aqui compreendido, é a casa comum, é a defesa da rede de interlocução, compartilhada por um povo ou grupo cultural, por conseguinte – como é a língua francesa para o Quebec.

O que Taylor não atenta é que no seio daquelas redes de interlocução podem existir conflitos individuais. A afirmação de uma política cultural ou nacional, pode muito comumente, digladiar-se com políticas feministas por exemplo. Ou algo muito mais elementar, não necessariamente organizado e gritante, mas que é um elemento fundante do moderno Estado democrático de direito: Um indivíduo, ao mesmo tempo em que possui o direito de perpetuar sua comunidade, sua tradição cultural, tem o direito de sair dela, de negá-la – se assim o desejar74. A vinculação numa tradição cultural não é

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TAYLOR, 1997, pg 55.

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Seyla Benhabib em “The Claims of Culture”, por sua vez, questiona:It’s both theoretically wrong and politically dangerous to conflate the individual’s search for the expression of his/her unique identity with politics of identity/difference. The theoretical mistake comes from homology drawn between individual and collective claims, a homology facilitaded by the ambiguities of the term recognition. Politically such a

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perpetuada por uma obrigação jurídica, mas como Habermas salienta: Normalmente, as

tradições culturais e as formas de vida que aí se articulam reproduzem-se ao convencer do valor de si mesmas os que as assumem e as internalizam em suas estruturas de personalidade; ou seja, elas se reproduzem ao motivar os indivíduos a uma apropriação e continuação produtivas de si mesmas.75

move is dangerous because it subordinates moral autonomy to movements of collective identity; I would argue that the right of modern self to authentic self-expression derives from the moral right of the modern self to the autonomous pursuit of the good life, and not vice-versa. Princeton, 2002; pg 53.

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