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CAPÍTULO IV – LIBERALISMO, DIREITOS E MORALIDADE

IV. 2 – RAZÃO PÚBLICA COMO PRINCÍPIO NORMATIVO

O argumento multiculturalista deixa importantes questões em aberto: Que garantias uma cultura tem de que seus direitos serão respeitados mediante um fórum de debates públicos, especialmente quando é minoritária? E antes mesmo da possibilidade do êxito de suas reivindicações num debate público, em que termos esse debate deve ser travado? Quais as justificações morais e procedimentos adotados para que possa garantir o igual respeito a diferentes demandas?

Diante da complexidade das demandas em sociedades pluralistas, adotamos um modelo formal de democracia que possa servir como um minimun ético nos debates multiculturais. Ao nosso ver duas posições teóricas, se analisadas em conjunto, guardam os mais promissores esforços da teoria política contemporânea no tratamento de questões como as que vimos nos referindo. De um lado, o conceito de ‘razão pública’ de John

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Rawls, como é abordado na segunda parte de O Direito dos Povos,188 apresenta uma vigorosa justificação moral da democracia moderna. Ali é demonstrado como a democracia constitucional de uma perspectiva liberal, pode ser considerada justificável por cidadãos razoáveis mesmo que não aceitem uma doutrina abrangente do liberalismo. De outro lado o modelo de ‘política deliberativa’ como é desenvolvido Jürgen Habermas189 mostra como interesses divergentes e não-institucionalizados podem estabelecer acordos e chegar a uma coerência jurídica moralmente fundamentada.

A razão pública, nos termos que foi desenvolvida por John Rawls é um elemento característico de sociedades democráticas constitucionais. Ela explicita os valores morais e políticos que direcionam o comportamento dos governos com os cidadãos e dos cidadãos entre si.

Uma das principais características da democracia é o que Rawls vem chamar de pluralismo razoável, ou seja, as sociedades são permeadas por uma série de doutrinas abrangentes razoáveis que podem ser conflitantes. A razão pública não ataca nenhuma doutrina abrangente desde que ela não seja incompatível com os princípios de uma sociedade política democrática.190

A razão pública possui cinco aspectos diferentes:

(1) As questões de políticas fundamentais às quais se aplica; (2) as pessoas a quem se aplica (funcionários e candidatos a cargos públicos); (3) seu conteúdo como dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; (4) a aplicação dessas

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RAWLS, John. O Direito dos Povos. Martins Fontes, 2004.

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HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre a facticidade a validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. e A Inclusão do Outro. Rio de Janeiro: Loyola, 2002.

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concepções em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma da lei legítima para um povo democrático; (5) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivados das suas concepções de justiça satisfazem o critério da reciprocidade.191

Essa razão é pública de três maneiras distintas: ela é a razão do público, por ser a razão de cidadãos autônomos, seu tema é o bem público, por envolver questões referentes a justiça política, como questões constitucionais ou de justiça distributiva, e sua natureza e conteúdos são públicos devido ao fato de se expressarem de acordo com critérios de justiça política que respeitem o princípio da reciprocidade.192

Note-se que a razão pública não se envolve em todas as questões de justiça fundamental mas somente naquelas que são abordadas dentro de um espaço político público. É o espaço de ação de funcionários de governo, juízes em grau supremo, legisladores e candidatos a cargos públicos. É necessária essa distinção para que se separe o que, de um lado espaço político público, e o que é, de outro, cultura de fundo a razão pública não se aplica a esta última.193 A manutenção da razão é concretizada por cidadãos que não são funcionários do governo, ou candidatos a cargos públicos através dos instrumentos da democracia formal. Já que os cidadãos não podem votar em leis (a não ser mais raramente em referendos ou plebiscitos), a razão pública é efetivada no voto em representantes políticos. A vigilância sobre os funcionários públicos é, segundo

191 Idem, pg 175. 192 Idem, pg 176. 193

Idem, pg 177. Como o próprio Rawls reconhece, o conceito de cultura de fundo é semelhante ao conceito de esfera pública desenvolvido por Habermas e que será abordado por nós mais adiante.

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Rawls, o esteio da razão pública. Mas ele salienta que isso é um princípio moral; se fosse uma obrigação jurídica não seria compatível com a idéia de liberdade aqui defendida.194

Como foi afirmado, a idéia de razão pública se origina da combinação da cidadania com um regime democrático constitucional. Esse fundamento da cidadania política tem duas características: (a) é uma relação dos cidadãos com a estrutura básica da sociedade. (b) É uma relação de cidadãos formalmente livres e formalmente iguais que estabelecem as normas e exercem o poder no interior do corpo político. Aqui se apresenta a questão de como os cidadãos podem compartilhar simetricamente o poder político e em nome de que princípios eles podem justificar razoavelmente suas decisões perante o corpo social.

Os cidadãos são considerados razoáveis quando oferecem uns aos outros termos e justos de cooperação de acordo com posições de justiça por eles consideradas razoáveis, ou seja, quando se consideram livres e iguais, e quando concordam em agir mediante as decisões adotadas. Essas decisões podem afetar certos interesses particulares, mas ainda assim podem ser consideradas razoáveis desde que os outros cidadãos envolvidos no processo concordem e aceitem esses termos como válidos também para si.195 Esse é o critério da reciprocidade. Os cidadãos podem, e irão naturalmente divergir sobre quais as concepções de justiça são consideradas mais razoáveis, mas vão concordar que todas elas, desde que atendam aqueles pré-requisitos, são minimamente razoáveis.

Um cidadão participa da razão pública quando delibera a partir de concepções consideradas razoáveis, quando delibera a partir de concepções que os outros cidadãos, tão livres e iguais quanto ele também possam aquiescer como razoáveis. Dentro de uma

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Idem, pg 179.

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sociedade democrática todos os cidadãos devem possuir esses princípios, de acordo com os quais se guiem. Segundo Rawls, esses princípios de liberdades básicas são ancorados naquilo que o liberalismo define como ‘posição original’. Esse princípio afirma que cada

pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.196 Essa forma de justiça, definida por Rawls como justiça como equidade é apenas uma das formas que o liberalismo pode assumir. Tendo como elemento imanente o princípio da reciprocidade, o liberalismo pode assumir três formas: (a) uma lista de direitos, tais como liberdades e oportunidades básicas; (b) uma atribuição especial essas garantias (direitos, liberdades e oportunidades) no que diz respeito à persecução do bem geral; e (c) medidas que assegurem aos cidadãos os meios adequados para que possam perseguir seus propósitos e que possam desfrutar de suas liberdades.197

Todos esses liberalismos expressam conteúdos diferenciados do que seja liberalismo e dos conteúdos do que vem a ser a razão pública. O debate liberal se dá em torno das interpretações desses princípios. O liberalismo não fixa uma definição do que se pretende que seja o liberalismo correto. Uma visão pode ser considerada válida ainda que seja minoritária durante muito tempo, o que define sua legitimidade é a adesão aos princípios da reciprocidade.

Ainda há uma diferença entre a razão pública e a razão secular e valores seculares. A razão em seu sentido secular tem como objeto doutrinas abrangentes de bem, que não são religiosas. Como se sabe, o debate sobre doutrinas abrangentes ainda é muito amplo para os objetivos da razão pública. Mesmo o debate em torno de questões morais

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Rawls, John. Uma Teoria da Justiça. Martins Fontes, 2003. pg 64.

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seculares ainda é amplo para a razão pública. Mesmo Rawls reconhecendo que o liberalismo tem um conteúdo moral imanente, ressalta que esse conteúdo faz parte da alçada da política e dos valores políticos da concepção liberal. Essas concepções políticas possuem três características básicas:

Primeiro, os seus princípios aplicam-se a instituições políticas e sociais básicas (a estrutura básica da sociedade); Segundo, elas podem ser apresentadas independentemente da doutrinas abrangentes de qualquer tipo (embora possam ser, naturalmente, sustentadas por um consenso de sobreposição razoável de tais doutrinas); e

Finalmente podem ser elaboradas a partir de idéias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de um regime constitucional, tais como as concepções dos cidadãos como pessoas iguais e livres, e da sociedade como um sistema justo de cooperação. 198

Um exemplo do campo de ação da razão pública dentro dos valores políticos pode ser observado, a partir do valor da autonomia: ela pode ser encarada de duas maneiras: autonomia política, a independência jurídica, a igualdade formal de direitos; como pode ser entendida como autonomia moral, ou seja, o corpo de valores que conferem sentido ao que o individuo define como concepções de boa vida, suas crenças e ideais variados. Como a autonomia moral pode muitas vezes defender valores que não satisfaçam o princípio da reciprocidade , ela deixa de ser objeto da razão pública. A autonomia moral não é não é um valor político, no sentido apresentado por Rawls, enquanto a autonomia política, por satisfazer aqueles critérios é.

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A razão pública, poderia então, analisar a questão das identidades culturais de duas maneiras: por um lado seria um problema de generalização de direitos individuais, a partir do momento que se considerassem os membros dessas identidades como desprovidas daqueles elementos que caracterizam a autonomia política. Por outro lado seria uma questão moral, onde seus membros defenderiam a legitimidade de suas crenças no interior de uma cultura de fundo. Mas observe- se em relação à primeira dimensão do problema, que a razão pública não se direciona a identidades culturais, ela se dirige sobretudo a indivíduos que não possuem seus direitos, sua participação política, enfim, sua autonomia política respeitada. Como se refere também as instituições públicas que são objetivo da razão política pública. Questões referentes ao valor moral intrínseco de culturas, tomadas individualmente, não fazem parte do escopo da razão pública, não fazem parte do espaço político público, mas da cultura de fundo.