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CAPÍTULO IV – LIBERALISMO, DIREITOS E MORALIDADE

IV. 1 – MULTICULTURALISMO E MORALIDADE

É razoável afirmar que a identidade é formada numa relação de intersubjetividade. Dessa perspectiva somos claros em defender a crítica tipicamente comunitarista em relação a doutrinas que analisam a identidade humana como algo fechado em si mesmo. Charles Taylor talvez seja um dos que mais abertamente criticaram essa visão naturalista de identidade como self pontual.

Para Taylor a identidade moderna e suas concepções de bem estão intrinsecamente situadas num espaço moral. Minha identidade é definida pelos

compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou o horizonte em cujo âmbito posso tentar determinar caso a caso o que é bom, ou valioso, ou o que se deveria fazer ou aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros termos, trata-se de um horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma posição.172 É o espaço sócio-cultural no qual fomos formados que define e posiciona nossa linguagem, nossas interpretações do mundo, nossos pré-conceitos e ideais de boa vida.

Da mesma maneira é bem verdade que somente somos no interior de nossa teia de interlocução. Obviamente que não se diz que essa teia de interlocução seja um território em seu sentido geográfico onde o sujeito deve respeitar as barreiras, é justamente isso

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que Taylor combate. Só podemos conferir significação a entes que se encontram em nosso campo lingüístico. Não há pensamento fora da linguagem. E não há compreensão de realidade que antes não passe pelo pensamento.

Norbert Elias foi muito bem sucedido em demonstrar (com um tanto de simpatia, é bem verdade) como os padrões de conduta (civilizados), disseminam-se no interior de uma sociedade a partir das classes mais altas em direção as classes mais baixas. Após serem incorporados no interior de sua sociedade, os valores das “mães-pátrias do homem

branco ” (termo dele) são transmitidos para além do próprio ocidente.

A partir da sociedade ocidental – como se ela fosse uma espécie de classe alta – padrões de conduta ocidentais “civilizados” hoje estão se disseminando por vastas áreas fora do Ocidente, seja através do assentamento de ocidentais ou através da assimilação pelos estratos mais altos de outras nações, da mesma forma que modelos de conduta antes se espalharam no interior do próprio Ocidente a partir desse ou daquele estrato mais alto.173

Os padrões de conduta e de avaliação social seriam erigidos a partir da fórmula

homem-branco-europeu-heterossexual174, submetendo então uma série de coletividades a normas de conduta exógenas, inautênticas. Essas normas privilegiariam aqueles indivíduos e coletividades que mais se aproximassem desse tipo idealizado.

É perfeitamente possível, então, aceitar a tese de que a subjetividade pode ser vítima de injustiças ou violências simbólicas, e que a teia de interlocução na qual a identidade é formada está exposta a elementos autoritários. Esses elementos autoritários

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ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.Vol 2. pg 212.

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simbólicos e socioeconômicos aprisionam muitas identidades em formas má- reconhecidas ou não-reconhecidas de existência. Tem um lugar respeitável na teoria democrática contemporânea a preocupação com formas errôneas de reconhecimento, desrespeito, injustiças culturais. São essas injustiças as responsáveis pela identidade inautêntica, são eles, os outros (das mann) verdugos da identidade alheia, que lançam o

dasein em seu inferno.175

É então pré-condição da justiça que o indivíduo possa desenvolver sua identidade autenticamente, seja a nível individual, como também ao nível de sua cultura. Quando aquiescemos que a formação subjetiva depende, pelo menos em parte, da qualidade do contexto cultural no interior do qual a identidade se desenvolve, é compreensível defender a necessidade do respeito e da valorização intercultural. Culturas segregadas, vítimas de perseguição ou estereotipadas não são a possibilidade de não-reconhecimento, mas sim o não-reconhecimento atuando na sociedade. O não-reconhecimento gera a inautenticidade.

Mas a identidade é formada dentro de um quadro crítico de reconhecimento. Não é um processo estático que envolve selves pontuais, que como mônadas somadas formam sua cultura, que por seu turno interage pontualmente com outras culturas e a partir disso reclamam seus direitos. O reconhecimento é intersubjetivo e possui uma gramática moral de desenvolvimento própria. Assim Axel Honneth demonstrou em Luta por Reconhecimento. O ser humano é um projeto, esse projeto possui chances de realizações e ruínas.

Honneth estabelece padrões de reconhecimento intersubjetivo calcado em três estágios: o amor, que gera a autoconfiança; o direito que desenvolve o auto-respeito; e a

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solidariedade que desenvolve a auto-estima. Dialeticamente Honneth também estabelece as formas de desrespeito características a cada estágio do reconhecimento: o desrespeito das relações primárias, marcado pelos maus tratos e pela violação física; o desrespeito das relações jurídicas, exemplificado na privação de direitos e na exclusão; e o desrespeito da comunidade de valores calcado na degradação e na ofensa.

Vimos que a tese multiculturalista (como a defendida por Will Kymlicka) reivindica uma gama de direitos especiais que permita o livre florescimento de identidades culturais variadas. O argumento é sagaz: ainda que se parta do pressuposto da equidade formal de direitos, da imputabilidade moral universal do indivíduo dentro de um ordenamento jurídico, a manutenção dessa juridicidade depende muitas vezes que o estado conceda um upgrade normativo para coletividades ou grupos de indivíduos que são ameaçados, privados de direitos e excluídos por uma cultura dominante. Nesse momento a justiça reclamaria o princípio da isonomia (Tratar os iguais igualmente e os

desiguais desigualmente) para manter aquela mesma juridicidade. Desigualmente

posicionados na sociedade, as minorias culturais necessitariam de ações afirmativas, ou de proteções externas que protegessem sua existência autêntica e, por conseguinte a autenticidade de seus membros – Uma relativização normativa.

Apoiando-se no quadro de reconhecimento desenvolvido por Honneth, é possível situar o conjunto de reivindicações multiculturais num padrão formal de eticidade. O segundo estágio do modo de reconhecimento, o respeito cognitivo, dimensionado na imputabilidade moral do indivíduo marca as relações jurídicas. É a forma de reconhecimento caracterizada pelo direito.

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O direito parte do pressuposto que um ordenamento jurídico só pode ser considerado válido se puder contar aprioristicamente com a disposição de todos os indivíduos em obedecer às leis. Essa obediência é valida na medida em que a lei é capaz de submeter-se ao livre assentimento de todos os indivíduos que são abarcados por ela, decidindo racional e autonomamente, sobre questões morais.176 O direito tem como pressuposto a universalidade da imputabilidade moral de seus membros, e sua participação na formação do corpo de direito como criador e beneficiário.

Todas as formas de reconhecimento possuem um potencial evolutivo. No caso do direito esse potencial evolutivo se encontra na ampliação da compreensão das capacidades morais dos indivíduos e (a partir das lutas sociais que ampliam esses direitos), no aumento gradual dos pressupostos básicos de sua participação no corpo político. Daí a distinção entre direitos liberais de liberdade, direitos políticos de participação e direitos sociais de bem estar.177 O potencial evolutivo do direito é a generalização dos direitos e a sua materialização. O móbil do direito é a sua universalização e efetivação.

O direito, na visão de Honneth, tem como potencial evolutivo a generalização de direitos e sua materialização. Que saída adotar, dessa maneira, no combate a injustiças culturais e socioeconômicas (nos termos apresentados por Nancy Fraser) ou hierarquia econômica e de status (nas palavras de Will Kymlicka)?178

Temos aqui um problema de relações jurídicas. Ao ver de Kymlicka, as injustiças provenientes da hierarquia econômica imiscui minorias de direitos numa situação de 176 HONNETH, 2OO3, pg 188. 177 Idem, pg 189. 178

Há que se fazer uma breve clarificação conceitual. Honneth não utiliza o dístico ‘redistribuição’ e ‘reconhecimento’. Para ele, a redistribuição socioeconômica está inserida no reconhecimento. Ela faz parte do segundo estágio evolutivo da luta por reconhecimento: as relações jurídicas.

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desvantagem que só pode ser combatida ao se conferirem direitos especiais aquelas identidades culturais. O combate à hierarquia de status é fundamental para que elas possam participar da vida social em situação de equidade com outras identidades.

Nancy Fraser, como vimos, é cética em relação a esse tipo de remédio por ela denominado multiculturalismo dominante. No seu entender esse tipo de remédio somente prolongaria a injustiça cultural ao positivar legalmente aquilo que deveria ser combatido. Do ponto de vista teórico, nós também acordamos com Axel Honneth, que os direitos sociais e políticos devem caminhar rumo a universalização. Todos os indivíduos independentemente de identidade cultural devem ser beneficiados pela generalização e efetivação dos direitos.

Mas isso talvez ainda não seja suficiente para defender a universalização do tratamento cultural. Uma posição sobre isso é que as políticas redistributivas ainda sim são seletivas, elas selecionam um segmento a ser beneficiado por elas. Os multiculturalistas reclamam então que muitas culturas têm como raiz do seu mau posicionamento na hierarquia de status, a má distribuição socioeconômica. Requerem assim, garantias que membros de suas identidades culturais sejam contemplados com direitos especiais nas políticas públicas como forma de inclusão social. Um exemplo disso são leis que concedem benefícios educacionais a estudantes negros. Nesse ponto concordamos com Brian Barry:

Segundo Barry, o argumento proposto pelos multiculturalistas tende a diagnosticar erradamente o problema das minorias. Geralmente os problemas levantados por esses teóricos não estão enraizados na cultura, e a solução seria em torno de políticas

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universalistas, ao contrário do relativismo político jurídico tão comum ao multiculturalismo.

The other class of demands made in the name of culture that I claim should be rejected consists of demands for the incorporation into the law of the land of systems of personal law that offend against fundamental principles of equality before the law179.

Aqui não cabe ao estado definir metas do que é boa vida, ma sim prezar que todos os indivíduos tenham a igual possibilidade de desenvolver sua identidade. Os compromissos substantivos ficariam a cargo do indivíduo, o estado cuidaria que os compromissos procedimentais fossem respeitados, a partir de uma equalização, de um igual tratamento.

É a condição social do individuo e não o pertencimento a uma determinada cultura ou etnia que deve legitimar a política pública. Como Barry salienta no caso das políticas afirmativas educacionais para negros:

(...) it is doubtful that under-inclusive policy is good politics. It is bound to create resentment – which cannot be dismissed as unjustified – among others similarly placed who cannot see why they should be denied the same benefits. And it builds the policy on a perilously small constituency, which does not even punch its weight politically in accordance with its numbers. Universalistic policies that track individual deprivation are not only more equitable than group- based policies; they may well also be a good deal better able to attract and sustain political support, despite their greater total cost. For example, a

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federal program that puts extra resource into every school that has any number of children in it who suffer from deprivation will benefit hundreds of thousands of school all over the country. In contrast, only ghetto schools, so extra resources for such schools will not directly benefit anybody outside the ghetto180.

Essa é a base de nosso argumento da crítica universalista ao multiculturalismo. As políticas redistributivas possuem diferenças em relação às políticas de afirmação de direitos, com sua importância própria, mas o caminho da equidade está na universalização dos direitos, e não em sua relativização.

Retornando a tese honnethiana, percebemos a eleição do argumento universalista no combate as injustiças socioeconômicas e culturais. Mesmo as políticas redistributivas ao elegerem um seguimento da sociedade a ser beneficiado, o fazem mediante critérios imparciais do ponto de vista cultural e tem como objetivo, como força motriz a generalização do direito e não sua relativização.

Mas ainda resta uma dúvida: mesmo livres da hierarquia de direitos (marcada pela privação e pela exclusão) minorias culturais podem ser vítimas da hierarquia de status. Isto é, culturas historicamente marginalizadas, tendem a continuar sofrendo pré- conceitos e injustiças culturais mesmo quando possuem direitos civis, políticos e sociais reconhecidos pelo Estado. Identidades afro-descendentes, por exemplo, são por vezes estereotipadas no interior da sociedade e submetidas a normas sociais identificadas com o

homem-branco-europeu-heterossexual. Que tipo de caminhos o Estado deve adotar no

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combate a esse mal. Até que ponto são bem vindas leis que garantam a sobrevivência e estimule o desenvolvimento de uma identidade cultural específica?

Nancy Fraser demonstra as limitações que uma política de afirmação de reconhecimento pode ter no combate à injustiça cultural ou simbólica. Ela é partidária de uma saída ligada a desconstrução dos símbolos hegemônicos que vise a transformação profunda dos padrões valorativos que regem a sociedade. Mas Fraser não toca em qual seria o papel do Estado na Reparação desse mal.

A interpretação de Luta por Reconhecimento nos oferece uma resposta interessante. Questões relativas a identidades culturais fariam parte do terceiro estágio do modo de reconhecimento: a estima social, dimensionada nas capacidades e propriedades da identidade individual, marca da comunidade de valores. É a forma de reconhecimento caracterizada pela solidariedade.

Enquanto no reconhecimento jurídico, o direito age como um intermediário entre os indivíduos representando suas características universais, a comunidade de valores calcada na estima social vai enfatizar as diferenças individuais num contexto intersubjetivo. Ela não se dá somente na obediência a um ordenamento jurídico comum, ela se dá no convívio sob um horizonte ético compartilhado. Esses objetivos éticos são claramente variáveis, como variáveis também são as relações jurídicas. A forma de reconhecimento da comunidade de valores marcada pela solidariedade é possível quando se não apenas se garante ao outro o direito de desenvolver sua individualidade ou a particularidade de sua cultura. A solidariedade é desenvolvida sobretudo quando o desenvolvimento livre da identidade do outro é considerado como algo valioso para mim

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e para toda sociedade. Significa que todo o sujeito recebe a chance de experiênciar a si

mesmo, em suas próprias relações e capacidades como valioso para a sociedade.181

Muito esclarecedor nesse tema é o trabalho de Dominique Vidal sobre a Linguagem do Respeito.182 Nesse artigo Vidal aborda analisa a reivindicação de respeito como elemento central no discurso político das camadas populares urbanas no Brasil.183 Aqui o desejo do respeito é visto como direito de ser reconhecido legítimo pela sociedade. Para o brasileiro citadino pobre, o sentimento de pertencer à humanidade é

muito mais importante que a redução da desigualdade social.184 O brasileiro pobre em seu discurso raramente condena sua condição social, o que comumente reclamado é o modo como as camadas socialmente superiores o fazem se sentir inferiorizado. Essa interiorização ocorre através de palavras ou atos que gerem humilhação ao lembrar uma situação de inferioridade.

Esse desrespeito, segundo Vidal, é mais comum no ambiente de trabalho, quando nas palavras do brasileiro o patrão trata seus funcionários como cachorro, com as instituições do estado, como a truculência da polícia ou desprezo de outros funcionários públicos. A humilhação é compreendida como a ausência de formas específicas de vida

pelas quais os seres humanos exprimem sua humanidade.185

Segundo Vidal no discurso político do brasileiro citadino pobre o indivíduo não busca imediatamente a satisfação de interesses materiais, mas o respeito de ser

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HONNETH, 2003, pg 210.

182

VIDAL, Dominique. A Linguagem do Respeito. A Experiência Brasileira e o Sentido da Cidadania nas Democracias Modernas. Dados – Revista de Ciências Sociais, vol 46, n. 2, 2003.

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Vidal utiliza um programa claramente influenciado por Axel Honneth para demonstrar a gramática moral da luta pelo reconhecimento no Brasil. Porém o termo ‘respeito’ tem um sentido mais amplo que o utilizado por Honneth. Enquanto para Honneth o respeito faz parte das relações jurídicas, para Vidal esse termo plana entre as relações jurídicas de respeito e a comunidade de valores com a auto-relação prática da auto-estima.

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Idem, pg267.

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considerado autônomo e individualizado. Essa luta por reconhecimento avança em duas direções: (a) primeiro no reconhecimento a partir das lutas sindicais e das mudanças constitucionais de 1988 que incorpora certos direitos aos trabalhadores desenvolvendo assim a auto-relação prática do respeito. (b) Essas reivindicações expressam a necessidade do respeito à dignidade e de ser reconhecido como indivíduo nas diferentes modalidades de existência da vida humana.186

Nós podemos deduzir o seguinte da análise de Honneth em relação ao multiculturalismo. (a) O Estado, enquanto organismo universalizante e generalizador do direito não se refere a minorias de direitos ou grupos étnicos, mas sim a indivíduos considerados universalmente na sua imputabilidade moral. (b) O reconhecimento comunidade de valores é um integrante legítimo da gramática de desenvolvimento das relações de reconhecimento, mas não faz parte das relações jurídicas entendidas no sentido estrito apresentado por Honneth.

O desenvolvimento da auto-estima é indubitavelmente favorecido pela efetivação das garantias jurídicas. Somente cidadãos que possuem a auto-relação prática do auto- respeito desenvolvida têm totais condições de desenvolverem a auto-relação prática da auto-estima. Mas a auto-estima não se desenvolve mediante a positivação de direitos especiais de solidariedade, em termos liberais faz parte dos compromissos substantivos do cidadão que compartilham um horizonte ético comum. Em termos rawlsianos poderíamos defini-la como cultura de fundo.187

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Idem, pg 281.

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A cultura de fundo inclui, então, a cultura de igrejas e associações de todos os tipos e de instituições de aprendizado em todos os níveis, especialmente universidades, escolas profissionais, sociedades científicas e outras. Além disso a cultura política não-pública faz a mediação entre a cultura política pública e a cultura de fundo. Esta abrange os adequadamente denominados meios de comunicação de todos os tipos.

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Um passo importante na compreensão do multiculturalismo foi dado: suas demandas foram examinadas de acordo com um padrão crítico de moralidade. As lutas sociais só fazem sentido dentro de um panorama mais amplo de compreensão das relações intersubjetivas. Agora resta um outro passo igualmente importante: estabelecido os padrões morais de análise dos comportamentos éticos, é necessário agora estabelecer as pré-condições procedimentais de acordo com as quais essas relações serão debatidas.